Jamil Chade, El País Brasil, 8 de dezembro de 2020
Em meados dos anos noventa, um tratamento contra o vírus HIV já existia, permitindo ampliar a sobrevivência daqueles que tinham sido infectados. Mas esse benefício da ciência praticamente só era uma realidade para aqueles que viviam em países ricos. O tratamento custava em média 10.000 dólares por ano e, assim, um paciente na África precisaria do equivalente a 20 anos de salários para pagar por apenas alguns meses do coquetel de remédios que deveria tomar para o resto de sua vida.
Nem todos eles teriam sido salvos se os remédios chegassem antes. Mas certamente milhões de famílias poderiam ter evitado o pior e prolongado a vida —inclusive produtiva— de seus entes queridos.
Trinta anos depois, o mundo caminha para repetir uma história similar e revelar que a humanidade sofre de uma amnésia aguda quando o tema é salvar vidas.
Diante da pandemia da covid-19, vacinas começam a chegar ao mercado e a ciência revela todo seu esplendor em promover um resultado em tempo recorde. No Reino Unido, uma senhora de 90 anos, Margaret Keenan, entrará para a história como a primeira a receber a vacina num país ocidental, nesta terça. Para muitos, a esperança é de que aquela dose represente o começo do fim de um pesadelo.
Mas nem essa ciência é para todos nem esse recorde é universal. Como já foi dito antes, se na primeira vez a história ocorreu como uma tragédia, ela se repete como uma farsa.
Atualmente, mais de 50% da capacidade de produção de vacinas no mundo já está reservada ou comprada por um grupo pequeno de países que, juntos, representam apenas 13% da população mundial. Levantamentos da Universidade Duke, nos EUA, revelam que Canadá, EUA e UE já garantiram doses que seriam suficientes para vacinar várias vezes toda sua população. Já dezenas de Governos simplesmente não contam com nem sequer uma dose.
Na esperança de garantir maior acesso e um melhor equilíbrio na distribuição, cem países em desenvolvimento apresentaram um projeto ambicioso: suspender patentes de produtos relacionados com a covid-19 e, assim, garantir sua produção genérica para permitir uma queda acentuada de preços e uma maior fabricação pelo mundo. Mas nem todos estão de acordo.
Nesta quinta-feira, uma reunião na Organização Mundial do Comércio (OMC) pode começar a definir qual o caminho que será tomado. Fundamental para a inovação, as patentes também são monopólios estabelecidos para recompensar o inventor pelos riscos que assumiu. Mas a qual preço para a humanidade?
Em salas elegantes em Genebra, negociadores de países desenvolvidos e detentores dessas patentes circulam na OMC com argumentos eloquentes, aparentemente sofisticados e repletos de diplomacia para justificar uma recusa ao projeto.
Para esse grupo, basta seguir a lei internacional de propriedade intelectual para assegurar um abastecimento. Por essas normas, um país pode solicitar a importação de um produto genérico caso uma situação de emergência exija. Na teoria, isso pode fazer sentido. Mas a realidade é que, em alguns casos, tal autorização poderia levar até três anos para ser concedida. Quantos morrerão até lá?
Alguns desses negociadores usam ainda de argumentos reais: de que vale quebrar uma patente para um remédio, tratamento ou vacina se a estrada até chegar a um certo povoado não existe?
Ao mencionar fragilidades dos países pobres, eles parecem ignorar como, no caso da Aids, os remédios genéricos transformaram a realidade de dezenas de países.
Eles tampouco citam dados da ONU que revelam que, durante a atual pandemia, a importação per capita de produtos médicos destinados a mitigar o impacto da covid-19 foi 100 vezes maior nos países ricos, em comparação às economias mais pobres do mundo.
Tampouco é mencionado como, na Itália, dois engenheiros resolveram usar uma impressora 3D para fabricar válvulas para respiradores de um hospital foram processados por violar regras de patentes. Quantas vidas aquela impressora teria salvo?
Uma vez mais, a crise sanitária de 2020 escancara a falácia de que o avanço da ciência funciona para todos. Por décadas, empresas abandonaram pesquisas sobre doenças que afetavam os mais pobres e que, portanto, não renderiam dividendo aos investidores. Elas foram chamadas de “doenças negligenciadas”, um nome hipócrita para falar, no fundo, de povos negligenciados.
Outro argumento que se desfaz na atual pandemia é de que empresas privadas precisam ser devidamente recompensadas por suas apostas na pesquisa de uma nova vacina, que poderia não funcionar. Elas têm razão. Mas, antes, precisariam revelar como, apenas no caso da covid-19, receberam o equivalente a 12 bilhões de dólares em recursos públicos de Governos para garantir suas inovações.
A equação é clara: o risco é coletivo. Se uma aposta numa vacina não funcionar, a empresa tem a segurança de ser resgatada por dinheiro público. Mas, em caso de vitória, a patente é sua recompensa e o lucro, obviamente, é privado.
A longo da atual pandemia, empresas têm alegado que precisam de 1 bilhão de dólares para desenvolver uma vacina e, portanto, querem a proteção de suas invenções. Esse mesmo setor privado, porém, não revela quanto recebem em isenções fiscais, em apoio de instituições públicas de inovação e nem qual será a margem de lucro de seu novo produto.
Na atual crise, há ainda um casamento silencioso sendo estabelecido. Nas negociações internacionais, Governos de países ricos garantem a proteção a suas multinacionais e indicam que não vão aceitar a ideia da quebra de patentes de produtos relacionados com a covid-19 na OMC. Em troca, recebem garantias de que serão os primeiros a serem abastecidos pelas vacinas.
Para preencher o vácuo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se apressou para criar um sistema que permita que uma parcela dessa inovação chegue aos países mais pobres e que essas populações não sejam pisoteadas na corrida pela salvação. Assim, a aliança mundial de vacinas —a Covax— foi estabelecida.
Mas a iniciativa vive uma falta crônica de recursos e simplesmente, com o que tem em caixa, não conseguirá atingir seu objetivo de chegar a 1 bilhão de pessoas até o final de 2021 em mais de 90 países.
Em eventos na ONU, na OMS, no G20 ou em outros fóruns internacionais, não são poucos os líderes que fazem discursos garantindo que a vacina precisa ser um bem público internacional.
Mas não aceitam a quebra de patentes nem abrem seus bolsos para garantir que a inovação chegue aos países mais pobres. Promessas vazias e uma fraude à humanidade.
Uma vez mais, os ricos vão ser os primeiros a serem imunizados. Enquanto isso, o restante —frequentemente mais escuro, mais exausto, mais distante de seus sonhos e mais desprotegido— faz uma fila interminável de esperança na forma de uma dose da vacina.
Em 2020, existe a cura para muitas doenças que matam. Existem alimentos para abastecer três planetas. E existem pessoas dispostas a ir ao socorro dessas populações. O que nem sempre existe é o compromisso politico para que isso se transforme em realidade.
O que existe hoje no mundo é um sistema que serve para estancar o sangue de uma ferida mais profunda, sem que a estrutura de poder seja modificada e sem que o monopólio seja desfeito. Para as veias abertas do mundo, o que temos no momento são curativos improvisados e insuficientes, prestes a definhar.
Assim como nos anos noventa, fica mais uma vez claro em 2020 que a vida ou a morte não dependem apenas do avanço da ciência. Mas de quem você é e onde, por acidente, nasceu.