Ricardo Machado, Patricia Fachin e João Vitor Santos entrevistam Muniz Sodré, IHU Online, 9 de junho de 2021
Embora no senso comum o termo “obscenidade” sugira uma conotação sexual, em seu sentido etimológico a palavra se refere à falta de mediação. Ou seja, diz respeito àquilo que, no contexto público, emerge sem nenhum tipo de mediação social. Talvez seja, de fato, a melhor palavra para definirmos o que se tornou o capitalismo e, consequentemente, a política institucional brasileira. “Portanto, o neoliberalismo é o ‘capitalismo obsceno’”, propõe Muniz Sodré, em entrevista por videochamada ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Os partidos ficaram tão obscenos quanto o discurso do neoliberalismo. Além de não representarem coisa nenhuma, ficou obscenamente evidente a luta deles por raspas e restos das verbas do orçamento”, acrescenta.
Em meio a tudo isso há a plataformização e a inteligência artificial, que, muito antes de serem alheias a este contexto, dão certa materialidade às formas políticas que vivemos. “A sociedade de plataforma, portanto, cria uma vida artificial, a vida digital, que está sendo intensificada pela inteligência artificial. Isso não quer dizer que a inteligência artificial seja totalmente dissociada da nossa vida. Não, ela é associada à estupidez humana, ou seja, a inteligência artificial não é vacinada contra a burrice e a estupidez humana. Basta ver que podemos ter um sistema de inteligência artificial avançado e ter um presidente como Bolsonaro, ou seja, é o bios virtual incorporando a estupidez e o horror”, sustenta.
É desse caldo cultural que emerge o que Sodré chama de sociedade incivil. “Essa sociedade [incivil], antes de mais nada, implica um esvaziamento da representação parlamentar. Isso quer dizer, juridicamente, do ponto de vista político, que os mecanismos estão aí, as eleições ocorrem, pode haver uma democracia, mas cada vez menos essa democracia representa a sociedade civil”, descreve. “Ela é um processo formal que culmina no voto no dia das eleições, o que é celebrado como espetáculo da democracia, mas o voto pode não significar mais nada em termos de representação popular”, complementa. A seguir a entrevista.
O senhor compreende o neoliberalismo como uma nova forma de consciência do capitalismo. De que forma o neoliberalismo como a nova consciência incide sobre a política e os espaços de representação democráticos?
Temos que partir da aceitação da ideia e da evidência de que o capital não tem a ver apenas com a economia; o capitalismo é a lei estrutural do valor. O que isso significa? Significa que a ideia de valor é uma ideia de compatibilização da estrutura econômica com as maneiras através das quais essa estrutura se insere e está inserida na vida social. Então, o valor diz respeito à economia, mas diz respeito também à política, aos comportamentos e à existência.
Capitalismo: a lei organizacional do mundo
Ser lei estrutural do valor como é o capital, é ser lei da organização do mundo. O capital é uma lei de organização do mundo; não é apenas o dado técnico do reaproveitamento do excedente e a reinjeção dele no sistema produtivo capitalista. Mas o capitalismo da economia produtiva, aquela economia em que se tem os donos dos meios de produção, os trabalhadores e um afrontamento na luta constante entre capital e trabalho – o trabalho sempre historicamente tentando reapropriar aquele excedente que é a mais-valia que o capital ganha –, acabou e mudou. Hoje, na verdade, o trabalhador, o antigo operário que ainda existe, mas que não é dominante, luta para poder trabalhar. Ele luta no trabalho e não apenas para recuperar o excedente, porque hoje o trabalho é escasso e o emprego também. A luta hoje é para ter trabalho, mas, claro, um tipo de trabalho sobre o qual se possa ter algum controle.
Finanças
No capitalismo produtivo de antes, o produtor precisava do trabalhador e o capital era acompanhado de doutrinas, que poderia ser a de bem-estar social, de convencimento do trabalhador de que a exploração dele era justa, ou seja, toda a ideologia burguesa de convencimento da necessidade da justeza da exploração. Hoje, a forma dominante da gestão da riqueza e da produção são as finanças, o capitalismo financeiro, um capitalismo que tem pouca conexão ou nenhuma com a produção real. É o capitalismo que aufere seus lucros e que se movimenta a partir do valor já realizado pela força de trabalho, pela economia produtiva. É o capitalismo dos títulos, o capitalismo rentista, que não tem nenhum compromisso com os territórios em que ele se movimenta. Ele é abstrato e tem compromisso com sua própria lógica, que pode ser a bolsa, os títulos do Tesouro, a movimentação securitária, ou seja, é um capitalismo ancorado em papéis de grandes lucros e de grandes desigualdades sociais. Aquele discurso de antes, da ideologia conservadora e burguesa do capital, foi esvaindo e não há muita necessidade dela porque não tem mais tanto trabalhador para convencer. Tem que convencer as classes médias, altas e emergentes de que o capital é a saída e o destino. Nas finanças, isso é o máximo da abstração.
Neoliberalismo: o ativismo do capital
Pois bem, o neoliberalismo é um discurso e o ativismo direto do capital. Portanto, o neoliberalismo é o “capitalismo obsceno”, no sentido que Jean Baudrillard gostava de usar a palavra obsceno: “ob” em latim é “em frente de” e “sceno” é de “cena”, ou seja, obsceno é algo que nasce na sua frente sem mediações sociais necessárias. A obscenidade é isso. A obscenidade sexual é o sexo que aparece sem a mediação amorosa ou institucional; é aquilo que está na sua frente.
O discurso direto do capital é obsceno porque ele não precisa mais de grandes mediações institucionais. É a fala obscena do dinheiro como um vórtice que engole e arrasta você. É aquela atração pelo ouro da qual Marx falava. Os sábios, em sociedades tradicionais, sempre pressentiram que o ouro, a joia e o meio de troca arrastam a consciência. Isto é o que vivemos hoje, quer dizer, essa lógica obscena do dinheiro: o dinheiro abstrato, do papel, do título, da riqueza que se acumula ilimitadamente. Os grandes ricos de hoje, que podemos ver lendo a revista Forbes, são cada vez mais ricos, obscenamente ricos e alguns até começam a tentar empregar as fortunas socialmente porque não têm o que fazer com tanto dinheiro.
Alguns dobraram a riqueza durante a pandemia.
Sim, alguns dobraram ou triplicaram a riqueza. O ministro da Economia [Paulo Guedes], por exemplo, é um grande ganhador de dinheiro na bolsa, é um milionário ou bilionário das finanças, ligado ao Banco BTG Pactual. Estou falando de um, mas algumas pessoas dobraram ou triplicaram sua riqueza porque o capital financeiro não tem a ver com a vida real das pessoas. O capital jamais gostou realmente de gente; deu emprego forçado porque precisava. É por isso que os neoliberais falam tão mal do serviço público e do Estado. Mas onde estão as melhores oportunidades de emprego no Brasil? É no serviço público. O capital não gosta de gente e o capitalismo financeiro muito menos. Não é que não gosta, ele odeia; ele não tem a ver com as pessoas concretas, mas, sim, com a sua própria lógica, com a bolsa, com o abstrato; é o máximo poder da abstração.
O neoliberalismo em termos econômicos não é tão diferente do liberalismo clássico. Ele é o capitalismo. Mas, em termos de discurso, ele até pode ser modernizador. É um grande engano dizer que o neoliberalismo é o discurso do atraso. Ele pode ser muito modernizador, mas não tem compromisso com o progresso humano, com a alma humana, com a vida concreta e real das sociedades. É esse discurso que estou chamando de ativismo direto do capital, que passa por cima das organizações, das instituições e, portanto, das pessoas, das famílias, das religiões, embora tudo isso seja indiretamente influenciado.
A religião, por exemplo, hoje é fortemente influenciada por essa ideologia do dinheiro. De certo modo, para as seitas fundamentalistas, Deus foi substituído pela dopamina, que é aquele neurotransmissor da felicidade. O sucesso dos fundamentalismos com relação ao catolicismo é porque eles lidam melhor com o dinheiro e sabem falar de dinheiro. Ouvimos obscenamente alguém dizer na televisão: “Se você deve ‘dez real’, Cristo lhe dá um benefício. Se você deve ‘vinte real’, você tem dois benefícios”. Não conheço nada mais obsceno do que isso. Cristo é alguém comparado a um vendedor de automóveis, com quem você poderia comprar um carro usado. Eu estou me lixando, na verdade, para os aspectos teológicos dessa questão – a minha fé é outra –, mas não posso deixar de me escandalizar e de chamar a atenção para isso, que é obsceno numa escala menor. É isto o neoliberalismo: ele é o discurso direto do capital.
Como o senhor compreende que a sociabilidade de plataforma impacta na sociedade e quais suas consequências sobre ela?
A rede eletrônica é uma coisa nova, mas a sociabilidade de rede é velha. Todas as cidades do passado se organizaram em torno de três coisas. Primeiro, ao redor do monumento, que poderia ser a Igreja, o forte ou um palácio. Depois, na modernidade, a sociedade era organizada ao redor das fábricas, quer dizer, é a sociedade como produção e não como reverência a um monumento, a uma divindade, mas ali também a sociedade era organizada em redes, como a rede de esgoto, uma rede fluvial para a distribuição de água. Tem sociedades em que, inclusive, o nome da cidade é “Rede de Águas”.
O nome da cidade Guadalajara, no México, significa, em árabe, “rio de merda, rio de fezes”, que é o esgoto. Nunca estive em Guadalajara, mas lá deve ter esgotos de origem árabe – por isso que os árabes são peritos em esgotos. Quando você visita esgotos em Istambul, na Turquia, é um programa turístico fantástico. Então, as sociedades têm redes subterrâneas, mas também redes sociais que são as redes familiares de parentesco. Você está dentro de uma rede – às vezes podemos nem nos dar conta disso – que é chefiada pelos seus pais e constituída dos seus amigos, familiares. Você age dentro de uma rede, de um grupo de redes, e essas redes são muito importantes socialmente. Mas há redes que combatem e lutam contra as organizações estatais ou as instituições formais; por exemplo, um clã líbio ou um clã árabe, aquela rede de famílias que de repente fica contra o Estado porque os seus interesses são mais tribais e familiares do que sociais. Então, as redes podem, eventualmente, se dissociar da sociabilidade mais ampla. Quando a rede se dissocia, ela não é mais uma rede funcional, mas disfuncional.
Sociabilidade de plataforma
A sociabilidade de plataforma, em geral, pode ser disfuncional com relação a instituições e outras organizações e às vezes compete com as instituições dominantes. Ou seja, é assim que a ação das redes eletrônicas pode ser disfuncional com relação ao comportamento familiar ou político das pessoas. Assistimos isso ocorrer o tempo inteiro nas redes eletrônicas; não pensamos muito bem nessa característica da rede para além da eletrônica, mas ela existe.
Por que a sociabilidade de plataforma tende a ser disfuncional? Uso um conceito nos meus livros de bios virtual. Bios é uma palavra grega usada em Platão e Aristóteles para designar não a vida nua, da carne – isso é zoe – mas uma forma em que você existe dentro da sociedade. Então, se você está numa universidade, você está dentro do bios theoretikós, está dentro do bios do conhecimento. Se você está na política ou na sociedade de modo geral, você está dentro do bios politikos. Se você está na esfera dos prazeres, que inclui a comida, o sexo, o namoro, você está no bios apolausticós. Então, existem três bios que, segundo Platão e Aristóteles, estruturam a sociedade. Aventei, em mais de um livro, um quarto bios, que chamo de bios midiático, que é um bios virtual, uma forma de vida. O bios virtual atravessa os outros e é abstrato, é criado pela mídia, pelos meios de comunicação e por todos os aparelhos e ferramentas que constituem não apenas instrumentos técnicos, mas dispositivos de organizar e orquestrar a vida de cada um de nós – podemos falar a distância por meio de um celular ou de um computador.
A sociedade de plataforma, portanto, cria uma vida artificial, a vida digital, que está sendo intensificada pela inteligência artificial. Isso não quer dizer que a inteligência artificial seja totalmente dissociada da nossa vida. Não, ela é associada à estupidez humana, ou seja, a inteligência artificial não é vacinada contra a burrice e a estupidez humana. Basta ver que podemos ter um sistema de inteligência artificial avançado e ter um presidente como Bolsonaro, ou seja, é o bios virtual incorporando a estupidez e o horror, que influi na política. Então, a sociabilidade de plataforma é isto: é uma sociabilidade artificial, técnica, gerada por dispositivos de comunicação.
Como o senhor define “uma sociedade incivil”?
Parti da ideia de Gramsci – que já aparece em Hegel e é trabalhada por Lenin –, a qual popularizou seu pensamento, de que a sociedade é organizada em torno da produção, que tem a ver com a sociedade política. A sociedade política é aquela do Estado, dos aparatos do Estado, do parlamento, dos poderes da República. Ao redor disso tem uma sociedade diretamente antenada com a produção, mas próxima da sociedade política, que é a sociedade civil. A sociedade civil é organizada ao redor do sistema produtivo e deixa de lado os setores não diretamente produtivos, que é a plebe, o povo pobre, os subalternos, os excluídos.
O progresso e a organização da sociedade ocidental giram em torno do desenvolvimento da sociedade civil. Foi isso que Gramsci chamou de ocidentalização, que significa o avanço que a sociedade civil pode ter dentro da sociedade em que se vive. Aí nos perguntamos se a sociedade civil em que vivemos é plenamente ocidentalizada ou não. Isso é variável. A sociedade brasileira é razoavelmente ocidentalizada. Foi por isso que depois da ditadura militar surgiram os partidos políticos. Mas na medida em que a sociedade civil perde os laços fortes com a sociedade política e com a produção, ela tende a ficar girando ao redor de si mesma, enquanto os partidos e a política – como agregação humana e espaço das lutas de classe – deixam de ser dominantes. A política vai perdendo sua função e se tornando disfuncional com relação à sociedade civil, que vai ficando de “cabeça para baixo” ou, como se diz no Sul, “de ponta-cabeça”. Então, a sociedade civil é a sociedade civil “de ponta-cabeça”.
O que isso significa em termos concretos? Não é a sociedade mal-educada, não é a sociedade não civilizada, mas, sim, uma sociedade incivil. Essa sociedade, antes de mais nada, implica um esvaziamento da representação parlamentar. Isso quer dizer, juridicamente, do ponto de vista político, que os mecanismos estão aí, as eleições ocorrem, pode haver uma democracia, mas cada vez menos essa democracia representa a sociedade civil. Ela é um processo formal que culmina no voto no dia das eleições, o que é celebrado como espetáculo da democracia, mas o voto pode não significar mais nada em termos de representação popular.
A philia na sociedade incivil
Depois, nessa incivilidade, existem as relações sociais de solidariedade e cooperação, que são raras, mas não são escassas. É o que os gregos chamavam de philia – a amizade cívica, que vemos emergir nas crises. Nessa pandemia, vimos partir de gente pobre a iniciativa de distribuir cestas básicas, bolsas, de ajudar aqui e ali – isso é philia –, mas, além disso, grupos de solidariedade, de amizade, que estão nos clubes, nas universidades – e isso também é philia. Na sociedade incivil, a philia, como agregação, é fraca. Existe uma philia negativa porque os dois mecanismos estruturantes desses laços na sociedade são o amor e o ódio. A philia implica uma relação amorosa – e aqui temos que entender não só as relações entre os sexos, mas relações de pai e mãe, de amigos, com professores etc. Essas relações, que são de amor, vão dando lugar a outro tipo de agregação, que é a agregação pelo ódio, que assume uma forma social.
Fascismo como forma de vida
Muitas vezes julgamos determinados movimentos de exasperação social por critérios político-partidários e isso é um erro. Por exemplo, o nazismo na Alemanha pode ser visto a partir de um critério político: um partido no poder, o nacional-socialismo, que Hitler dirigia e comandava, voltado para a guerra. Mas o fascismo mussoliniano não era exatamente partidário, embora existisse o partido fascista; ele era, na verdade, uma forma de vida. O maior inimigo do fascista não era tanto o judeu, mas o vizinho dele no mesmo prédio, que podia não ser um fascista, mas não comungava com as suas ideias. Então, o fascista está de olho no vizinho e o guarda está de olho no passante para ver se destoa e se é estranho à sua forma de vida, para poder denunciá-lo e matá-lo. Portanto, mais do que o nazismo, o fascismo é uma forma de vida que atravessa gerações. O partido nazista na Alemanha acabou, mas ele sobrevive em formas fascistas nos grupos chamados neonazistas, que tatuam a cruz gamada e querem pegar judeus, negros.
Do ponto de vista histórico, isso é perigoso, mas caricatural: um careca com a cruz gamada na cabeça. O fascismo é estruturante, vive de ódio e o ódio, portanto, é uma força agregadora: agrega para desagregar, é uma paixão destrutiva. Se diz em latim: destructum. Assim como tem libido, tem destructum. É possível observar isso na criança: ela brinca, mas deixa aflorar o destructum dela com muita facilidade. Ela tenta quebrar o brinquedo, dá um tapa no amiguinho. Mas isso ocorre porque a criança ainda não sabe quem é ela e quem é o outro. Destructum é inerente ao ser humano; só que, com a vida adulta, você vai civilizando e policiando o destructum. E isso não é apenas individual, mas pode ser social. As formas de sociopatia são formas de destructum social, de desagregação social. A psicopatia é individual, mas a sociopatia é coletiva. Estamos experimentando no Brasil formas sociopatas e temos um grupo sociopata no poder. É isto a sociedade incivil: é a sociedade que aponta para a morte ou para a desaparição da sociedade civil.
Como podemos pensar os fatores que levaram Bolsonaro ao poder? São esses mesmos que ainda o mantém na presidência? Por quê?
Depois do regime militar, os partidos tiveram uma função relativamente estruturante ou reestruturante da República no Brasil, mas, do ponto de vista democrático, da democracia de massas, não fizeram nada e não tiveram efeito nenhum. As paixões negativas se exacerbaram e a esquerda brasileira não fez nada por isso, não fez grandes coisas.
A esquerda brasileira desconheceu as grandes questões nacionais. A grande questão nacional, desde antes da abolição da escravatura, é a questão da terra, de quando a terra foi apropriada para a agricultura de exportação. Por isso o Movimento dos Sem Terra – MST é um grande movimento social, apesar de suas distorções. O segundo grande movimento social é o movimento antirracista, que é o mais antigo deste país, pois a abolição não resolveu o problema de fundo. Ao contrário, o racismo e o preconceito racial permaneceram ao longo do século XX e a esquerda nunca prestou atenção a isso, pois sempre achou, com Marx na cabeça, que se tratava de uma contradição secundária. Acreditou que a educação, a renda e o acesso a bens de consumo resolveria isso, o que é um erro de visão, de ótica.
Ora, a sociedade foi sofrendo esse divórcio entre a vida real e concreta das massas, dos despossuídos, dos deseducados, pois toda educação é um fragmento da política. O sujeito que diz “temos que despolitizar a educação” está indo ao encontro do que Brecht dizia: “o pior analfabetismo é o analfabetismo político”. Não se trata aqui de falar de um político-partidário, mas do político-social, de perder de vista o sentido da integração social, pois tudo está integrado socialmente. Isso foi se esgarçando de tal modo que aparece um buraco na vida social, uma espécie de buraco negro, como aqueles que estão no espaço, onde não sabemos o que acontece com o que é absorvido. Esse buraco negro social é este vórtice em que desaparece o que é sólido, como diz a frase de Marx no Manifesto Comunista, “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, isto é, tudo que é sólido desmancha neste buraco negro social.
Nós nos vimos diante de um governo de 14 anos do PT, que foi um governo de natureza populista de esquerda ou centro-esquerda, com benefícios assistencialistas inegáveis à população e, apesar do mensalão e outras coisas, uma certa postura governamental. Independente de quedinhas antidemocráticas, como querer controlar a imprensa (“querer”, mas sem insistir muito nisso quando havia reação), pois toda imprensa incomoda os governantes, inclusive o Lula. Mesmo com esses deslizes se tratava de um governo. Era um governo, digamos assim, “normalzinho”. Só que isso provocou uma fissura social que polarizou uma parte da sociedade que virou somente ódio. O Bolsonaro vem desse buraco negro. E, já que falei de Guadalajara, vale lembrar que ele veio de uma rede subterrânea em termos sociais, que é uma rede de esgotos. Bolsonaro é o esgoto que aflorou, é o esgoto social que aflorou.
Povos brasileiros
Tem essa coisa do “povo brasileiro” que sempre foi mitificado. Não existe isso de povo brasileiro. Existem povos brasileiros. Se levarmos em conta somente povos indígenas, são 324, que falam 274 línguas diferentes. Há ainda o povo negro, o povo de santo, o povo de candomblé, que se reconhece como povo. Eu sou do candomblé, e é muito comum se ouvir a expressão o “povo de santo”. O povo de santo é a população negra que pratica os cultos. No Rio Grande do Sul, por exemplo, há uma classe branca e dirigente que não sabe muito sobre o quanto há de batuques e de gente nos terreiros gaúchos. Inclusive eu já estive na Assembleia Legislativa para falar sobre o tema. Os batuques são muito importantes também no Uruguai, tem muita casa de Umbanda lá, mas as pessoas sabem pouco disso. Grande parte dos produtos vendidos no Mercado Modelo da Bahia não são fabricados lá, mas sim no Rio Grande do Sul. E nós não sabemos da latência desses povos.
As populações urbanas, especialmente do Sul e do Sudeste, são preocupadas com sua segurança pessoal, e a esquerda, de certo modo, subestimou a questão da segurança nas cidades. Assim como subestimou a questão da segregação espacial, do racismo habitacional e deixou esses territórios à solta, talvez por razões eleitorais. O Rio de Janeiro talvez seja o pior exemplo de tudo isso, pois 52% do território é ocupado por tráfico e milícias. É daí que vem o comportamento de destrudo (thanatos) que emerge à superfície e que viu em Bolsonaro a possibilidade de votar no ódio. Nós temos que analisar a função do ódio nisso tudo, pois muita gente que votou em Bolsonaro votou por ódio, não por amor a ele, mas por ódio ao PT. As pessoas dizem “já que é tudo do mesmo jeito, vamos, então, votar no pior. Vamos ver o que o diabo nos traz”.
Que leitura o senhor faz das manifestações de 29M?
[Silêncio] Olha… [silêncio novamente]… as ruas, em determinados momentos, são mais esclarecedoras que as epistemologias sociais e políticas. Sempre foi assim. Nas ruas é que sentimos a temperatura, que auscultamos o interior do corpo social. Essas ruas podem ser ameaçadoras ou não. É necessário, então, distinguir o tipo de manifestação.
Na semana anterior estavam nas ruas as motocicletas, as duas “motociatas” de Bolsonaro, no Rio de Janeiro e em Brasília. Mas quando observamos o que de fato ocorreu, como no caso do Rio de Janeiro, o governo do Estado havia colocado mil motociclistas a acompanhar. Ora mil policiais acompanhando a manifestação como partícipes é um bocado de coisa. Depois, clubes de motociclistas foram convocados, o que se trata, claramente, de um tipo de grupo social com pouco compromisso cívico, e descrevendo de um modo um pouco caricatural, formado por tiozões (em geral, há poucos jovens) com casaco de couro, uma ou outra tatuagem e a motocicleta com escapamento aberto para fazer barulho. É uma forma de intimidar. Quando vemos no cinema os Hells Angels chegando nas cidadezinhas, evidentemente, as pessoas se sentem intimidadas, mesmo que não tenham nada a ver com aquilo, pois se cinquenta caras gordos ou fortes, armados – seja com correntes, seja com armas – entram numa cidade pequena com aquele barulho, alguém vai atravessar na frente? Não. Sentir essa intimidação é normal, natural. Agora multiplique esse número por dez, depois mais dez, e já temos 5 mil motociclistas no Rio de Janeiro fazendo um barulho desgraçado. Trata-se do quê? Intimidação.
#29M
O movimento do dia 29 de maio foi um movimento de protesto. Tratou-se das entranhas do corpo social dizendo alguma coisa. Foi arriscado, porque naquele contexto tem contaminação e não sabemos o tanto de contaminação que vai sair dali. Embora a maioria estivesse de máscara, houve aglomeração. Então as ruas acabaram fazendo aquilo que estavam criticando em Bolsonaro, mas, por outro lado, do ponto de vista político foi algo muito significativo.
O pronunciamento que Bolsonaro fez na televisão no dia 2 de junho, à noite, foi burocrático, ancorado no Produto Interno Bruto – PIB, o qual ele não entende, pois se trata de algo relativamente independente do governo. O Bolsonaro, nesse pronunciamento, foi comportado, não xingou ninguém com aquela língua presa que ele tem. Foi um relatório meio amedrontado, o que mostra que ele ficou intimidado pelas ruas do dia 29 de maio. A partir de agora ele deve dobrar apostas, sem dúvidas, mas está em uma saia justa. Pior ainda, está em uma saia justa com o Exército, que não está satisfeito com essa história do [ex-ministro da Saúde Eduardo] Pazuello. Por isso eu achei extremamente importante aquela ida às ruas no dia 29 de maio.
Diante deste cenário, que saídas podemos vislumbrar?
[Silêncio]… Presumo que teremos uma eleição em 2022 polarizada, não há candidato de centro e eu, pessoalmente, não sou amigo nem a favor de centro político. Deve ser uma eleição polarizada entre Lula e Bolsonaro, se Bolsonaro chegar lá. Portanto, a saída política, por menos que eu goste deste retorno do PT, é a retomada de um certo equilíbrio, uma certa dignidade de discurso, o que seria normal em qualquer tempo, mas que para nós já é muito.
Depois, a recomposição política do Brasil, além da recomposição sanitária do país, a questão da vacina e da erradicação da Covid-19, que eu temo possa voltar todo ano, tornando-se cíclica. Essa é uma missão. Os partidos ficaram tão obscenos quanto o discurso do neoliberalismo. Além de não representarem coisa nenhuma, ficou obscenamente evidente a luta deles por raspas e restos das verbas do orçamento. Pode-se fazer como slogan aquela canção do Cazuza, Maior abandonado.
Sobre a recomposição política, que é algo que não sabemos no que vai dar, faço algumas sugestões no meu livro – Sociedade incivil (2021) –, no capítulo final, propondo uma alternativa com bases mais locais, sem ser o municipalismo. É preciso, portanto, acreditar na política. Eu sou uma pessoa que acredita na política e acho que fora da política não há saída. Talvez fosse o caso de acrescentar à Constituição uma frase dita por alguém de cujo nome não me recordo, em tom de chiste, que diz o seguinte: “A partir de hoje todo político deverá ter vergonha na cara e revoguem-se as disposições em contrário”. Eu nunca vi nada tão obsceno quanto a classe política brasileira.
Muniz Sodré de Araújo Cabral é graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, mestre em Sociologia da Informação e Comunicação – Université de Paris IV (Paris-Sorbonne) e doutor em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É livre-docente em Comunicação pela UFRJ, onde atualmente é professor emérito. Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional de 2005 a 2011, órgão vinculado ao Ministério da Cultura. Possui cerca de 40 livros publicados nas áreas de Comunicação e Cultura, cujo mais recente é Sociedade incivil. Mídia, iliberalismo e finanças (Petrópolis: Vozes, 2021). Ocupa a cadeira 33 na Academia de Letras da Bahia