A política climática se deslocou para o centro do palco. Apesar da persistência de pequenos grupos de negacionistas, atores políticos de colorações variadas estão se tornando verdes. Uma nova geração de jovens ativistas insiste para que deixemos de nos evadir da ameaça moral posta pelo aquecimento global. Recriminando os mais velhos por terem roubado seu futuro, esses militantes reivindicam não só o direito de tomar todas as medidas necessárias para salvar o planeta como a responsabilidade por fazê-lo. Ao mesmo tempo, movimentos favoráveis ao decrescimento se fortalecem. Convencidos de que estilos de vida consumistas estão nos levando à beira do abismo, eles almejam uma transformação dos modos de vida. No mesmo sentido, comunidades indígenas, do Norte e do Sul globais, ganham mais apoio a lutas que apenas recentemente foram reconhecidas como ecológicas. Há muito tempo engajadas na defesa de seu habitat e de seus meios de vida ante a invasão colonial e o extrativismo corporativo, elas encontram novos aliados, nos dias de hoje, entre aqueles que procuram modos não instrumentais de se relacionar com a natureza. As feministas também infundem nova urgência a preocupações ecológicas.
Estabelecendo relações histórico-psíquicas entre ginofobia e desprezo pela Terra, elas mobilizam as formas de vida que sustentam a reprodução tanto social como natural. Enquanto isso, uma nova onda de ativistas antirracistas inclui a injustiça ambiental entre seus alvos. Adotando uma visão expandida do que significa “desfinanciar a polícia”, o movimento Black Lives Matter demanda um redirecionamento maciço de recursos para comunidades racializadas, em parte, para limpar depósitos de lixo tóxico que destroem a saúde.
Até mesmo os social-democratas, ultimamente cúmplices do neoliberalismo ou desmoralizados por ele, encontraram sobrevida na política climática. Reinventando-se como proponentes de um Novo Acordo Verde, eles pretendem reconquistar o apoio perdido da classe trabalhadora, associando a adoção de energia renovável a empregos sindicalizados com altos salários. Para não serem deixadas de fora, vertentes do populismo de direita também estão esverdeando-se. Abraçando um “eco-nacional-chauvinismo”, elas propõem preservar os “próprios” espaços verdes e recursos naturais excluindo “outros” (racializados). Forças no Sul global também estão engajadas em diversos fronts. Enquanto algumas sustentam um “direito ao desenvolvimento”, insistindo em que o ônus de mitigar as mudanças climáticas deva recair sobre as potências do Norte, que expelem gases de efeito estufa há duzentos anos, outras levantam a bandeira dos “comuns” ou da “economia social ou solidária”, e outras ainda, vestindo o manto do ambientalismo, utilizam esquemas neoliberais de compensação de carbono para cercar terras, desapossar aqueles que delas vivem e controlar novas formas de monopolizar o sistema de arrendamentos. Por fim, há hoje interesses financeiros e corporativos diretamente envolvidos também. Lucrando substancialmente com a crescente especulação das commodities ambientais, eles estão empenhados, não só economicamente mas também politicamente, em garantir que o regime climático global permaneça centrado no mercado e favorável ao capital.
Em síntese, a ecopolítica se tornou ubíqua. Não mais propriedade exclusiva de movimentos ambientais independentes, a mudança climática agora aparece como uma questão crítica a respeito da qual todos os atores políticos devem posicionar-se. Incorporado a uma série de agendas concorrentes, o tema é moldado de várias formas a depender dos diferentes compromissos que o acompanham. O resultado, por baixo de um consenso superficial, é um acalorado dissenso. De um lado, um número crescente de pessoas agora considera o aquecimento global uma ameaça à vida como a conhecemos no planeta Terra. De outro lado, elas não compartilham a mesma opinião nem sobre as forças sociais que ocasionam esse processo nem sobre as mudanças sociais necessárias para pará-lo. Elas concordam (mais ou menos) quanto aos aspectos científicos do problema, mas discordam (mais ou menos) em relação à política.
Ainda assim, as palavras “concordar” e “discordar” são insuficientes para expressar a situação. Nos dias de hoje, a ecopolítica se desdobra dentro de uma crise epocal, e é marcada por ela. Uma crise ecológica, certamente, mas também uma crise econômica, social, política e de saúde pública, ou seja, uma crise geral, cujos efeitos se espalham por todos os lugares, abalando a confiança em visões de mundo estabelecidas e nas elites governantes. O resultado é uma crise de hegemonia e um espaço público “selvagem”. Não mais domada por um senso comum prevalente que elimina opiniões realmente inovadoras, a esfera política é agora lugar de uma busca frenética não apenas por políticas públicas melhores mas por novos projetos políticos e modos de vida. Fixando raízes bem antes do surto de covid-19, mas enormemente intensificada por ele, essa “atmosfera inquietante” permeia a ecopolítica que forçosamente se desenvolve em seu interior. Dessa maneira, o dissenso climático é preocupante, não “apenas” porque o destino da Terra está em jogo, não “apenas” porque o tempo é curto mas também porque o clima político se encontra, igualmente, destroçado pela turbulência.
Nessa situação, salvaguardar o planeta requer a construção de uma contra-hegemonia. O que é preciso é transformar a presente cacofonia de opiniões em um senso comum ecopolítico capaz de orientar um projeto de transformação amplamente compartilhado. Por certo, tal senso comum deve atravessar o conjunto de visões conflitantes e identificar com exatidão o que deve ser modificado na sociedade para cessar o aquecimento global, unindo, de forma efetiva, as descobertas comprovadas da ciência do clima a uma abordagem igualmente rigorosa das causas histórico-sociais da mudança climática. Para se tornar contra-hegemônico, todavia, um novo senso comum deve transcender o “meramente ambiental”. Ao lidar com toda a extensão da nossa crise geral, ele deve conectar o seu diagnóstico ecológico com outras preocupações vitais, entre as quais estas: insegurança habitacional e negação dos direitos trabalhistas; desinvestimento público em reprodução social e subvalorização crônica do trabalho de cuidado; opressão império-étnico-racial e dominação de sexo e gênero; desapossamento, expulsão e exclusão de migrantes; militarização, autoritarismo político e brutalidade policial. Sem dúvida essas questões estão entrelaçadas com a mudança climática e são por ela exacerbadas; porém, o novo senso comum deve evitar um “ecologismo redutivista”. Longe de tratar o aquecimento global como um trunfo que se sobrepõe a todo o restante, ele deve reconstruir os passos dessa ameaça até as dinâmicas sociais subjacentes, que são em si causas de outras dimensões da presente crise. Apenas lidando com todas as principais facetas dessa crise, “ambiental” e “não ambiental”, e revelando as conexões entre elas, poderemos começar a construir um bloco contra-hegemônico que fundamente um projeto comum e possua a relevância política para persegui-lo de forma efetiva.
É uma tarefa e tanto. Mas o que traz esse projeto para o âmbito do possível é uma “feliz coincidência”: todos os caminhos nos levam a um único destino, qual seja, o capitalismo. O capitalismo, no sentido que definirei abaixo, representa a causa sócio-histórica da mudança climática e a principal dinâmica institucionalizada que precisa ser desmantelada para interrompê-la. O capitalismo, assim definido, porém, também está profundamente implicado em formas aparentemente não ecológicas de injustiça social –– da exploração de classe à opressão imperial e racial e à dominação sexual e de gênero. E o capitalismo ainda ocupa um lugar central nos impasses sociais aparentemente não ecológicos – em crises relativas ao cuidado e à reprodução social, em crises financeiras, de cadeias de suprimento, salariais e trabalhistas, de governança e desdemocratização. O anticapitalismo, desse modo, poderia – e, de fato, deveria – tornar-se a principal ideia que moveria o novo senso comum. Por revelar as conexões entre as múltiplas dimensões da injustiça e irracionalidade, ele representa a chave para o desenvolvimento de um poderoso projeto contra-hegemônico de transformação ecossocial.
Para todos os efeitos, essa é a tese que sustentarei aqui. No que se segue, eu a desdobro em três diferentes níveis, que reforçam e complementam uns aos outros. Primeiro, no nível estrutural, afirmo que o capitalismo, entendido corretamente, abriga uma profunda contradição ecológica que o predispõe, de modo não acidental, a crises ambientais. Mas sustento que, longe de ser algo isolado, essa contradição está entrelaçada com várias outras, igualmente endêmicas ao capitalismo, e não pode ser enfrentada adequadamente abstraindo delas. Passando, em seguida, para o registro histórico, descrevo as formas específicas que a contradição ecológica do capitalismo assumiu nas diversas fases de desenvolvimento do sistema até o presente. Contra um ecologismo isolado, essa história revela o emaranhamento pervasivo da crise e da luta ecológica com outros tipos de crise e de luta, das quais elas nunca estiveram completamente separadas em sociedades capitalistas. Chegando, por fim, ao nível político, defendo que hoje a ecopolítica transcenda o “meramente ambiental” para se tornar antissistêmica em todos os sentidos. Chamando a atenção para o entrelaçamento do aquecimento global com outras facetas críticas da nossa crise geral, sustento que os movimentos ambientais deveriam se tornar transambientais, posicionando-se como participantes de um bloco contra-hegemônico emergente, centrado em um anticapitalismo que poderia – pelo menos, em princípio – salvar o planeta.