Neoliberalismo favoreceu algumas mulheres no mercado. Mas ilusão de representatividade excluiu a maior parte e produziu crise dos cuidados, jornadas insanas e violência. Reação requer ir muito além do feminismo corporativo
Ana Correa entrevista Nancy Fraser, Infobae, 12 de julho de 2021
Poderíamos apresentar Nancy Fraser como uma das filósofas e intelectuais mais importantes do mundo, ou dizer que é uma rockstar da teoria feminista, e as duas definições serão apropriadas. Conhecida sobretudo por suas pesquisas e teorias sobre justiça e globalização, seus trabalhos foram e continuam sendo citados, há décadas, por quem promove reformas nos sistemas de representação, com perspectivas feministas.
Fraser é reconhecida internacionalmente até mesmo por aqueles que são alvo de suas críticas, como o sistema político internacional ou o feminismo que ela chama de neoliberal progressista (onde, cada vez que tem uma oportunidade, inclui de Hillary Clinton a Christine Lagarde e Sheryl Sandberg, chefe operacional do Facebook).
Professora da The New School de Nova York, ganhadora de diversos prêmios, deu aulas em universidades prestigiosas de todo o mundo e recebeu bolsas de grandes instituições. Esta acadêmica, nascida em Baltimore, diferencia as etapas dos feminismos da segunda onda dos Estados Unidos em duas fases: uma de luta pela distribuição e outra pelo reconhecimento.
Atualmente, reconhece uma fase de superação, que é a transnacional, e alerta sobre o perigo de que o feminismo corporativo seja funcional a um sistema capitalista que trata muito mal as mulheres trabalhadoras, as mais pobres, as cuidadoras, as deslocadas e as negras.
Para Fraser, nesta etapa, o feminismo deveria se unir aos setores majoritários e mais necessitados. Para isso, redigiu um manifesto que se chama Feminismo para os 99%, que escreveu junto com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya.
Como parte deste chamado a também se unir com os setores ambientalistas, Fraser propõe criar um movimento para resistir à atual hegemonia capitalista. Fala sobre isso em Contrahegemonía ya, livro que foi publicado [em espanhol] por Siglo XXI, no ano passado, e no qual estão presentes as bases do feminismo para os 99% e a crise do sistema capitalista neoliberal.
Conversamos com Nancy Fraser sobre todos estes temas e sobre a pandemia, as políticas mundiais de vacinação, o populismo de direita e a cultura do cancelamento.
na Correa, com tradução no IHU Online
Poderíamos apresentar Nancy Fraser como uma das filósofas e intelectuais mais importantes do mundo, ou dizer que é uma rockstar da teoria feminista, e as duas definições serão apropriadas. Conhecida sobretudo por suas pesquisas e teorias sobre justiça e globalização, seus trabalhos foram e continuam sendo citados, há décadas, por quem promove reformas nos sistemas de representação, com perspectivas feministas.
Fraser é reconhecida internacionalmente até mesmo por aqueles que são alvo de suas críticas, como o sistema político internacional ou o feminismo que ela chama de neoliberal progressista (onde, cada vez que tem uma oportunidade, inclui de Hillary Clinton a Christine Lagarde e Sheryl Sandberg, chefe operacional do Facebook).
Professora da The New School de Nova York, ganhadora de diversos prêmios, deu aulas em universidades prestigiosas de todo o mundo e recebeu bolsas de grandes instituições. Esta acadêmica, nascida em Baltimore, diferencia as etapas dos feminismos da segunda onda dos Estados Unidos em duas fases: uma de luta pela distribuição e outra pelo reconhecimento.
Atualmente, reconhece uma fase de superação, que é a transnacional, e alerta sobre o perigo de que o feminismo corporativo seja funcional a um sistema capitalista que trata muito mal as mulheres trabalhadoras, as mais pobres, as cuidadoras, as deslocadas e as negras.
Para Fraser, nesta etapa, o feminismo deveria se unir aos setores majoritários e mais necessitados. Para isso, redigiu um manifesto que se chama Feminismo para os 99%, que escreveu junto com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya.
Como parte deste chamado a também se unir com os setores ambientalistas, Fraser propõe criar um movimento para resistir à atual hegemonia capitalista. Fala sobre isso em Contrahegemonía ya, livro que foi publicado [em espanhol] por Siglo XXI, no ano passado, e no qual estão presentes as bases do feminismo para os 99% e a crise do sistema capitalista neoliberal.
Conversamos com Nancy Fraser sobre todos estes temas e sobre a pandemia, as políticas mundiais de vacinação, o populismo de direita e a cultura do cancelamento.
Eis a entrevista
Você já havia antecipado que a terceira fase do feminismo, após a etapa da luta pela igualdade e o reconhecimento, seria um feminismo transnacional. Por que acredita que esta etapa se caracterizou pela luta contra as violências?
Não é uma pergunta fácil de responder. Em teoria, poderia ter sido desenvolvida com um outro enfoque, poderia ter sido em torno da liberdade reprodutiva ou algo assim. Há certos elementos ou contingências na história e na política que não podemos deduzir literalmente de nossas teorias. O ponto é que em qualquer problema que surja ou se torne a questão de fundo da reivindicação das mulheres, o que conta é o modo como é abordado e se leva ou não ativistas e outros a seguir o fio do que acontece para se conectar com outras coisas.
Minha opinião é que não é possível entender adequadamente e muito menos lutar contra a violência de gênero, caso não se compreenda a sua ligação com a divisão do trabalho por gênero, com a exploração capitalista e a instrumentalização do trabalho das mulheres, caso não se compreenda sua conexão com o militarismo e com as políticas predatórias, com o freio à liberdade reprodutiva das mulheres, etc.
Essas coisas estão relacionadas, fazem parte de um sistema de dominação de gênero e isso, por sua vez, faz parte de um sistema ainda maior que está relacionado à dominação racial e de classe, à destruição ecológica. Por isso, acredito que esse lugar onde as pessoas começam a lutar e a reivindicar, em determinado momento, depende da situação que estão vivendo e é uma luta que pode se tornar transnacional, caso se propague. E estas coisas, como digo, não estão estritamente determinadas por nada.
O que importa é a capacidade de fazer conexões e ampliar a luta, para acolher mais pessoas, mais preocupações, mais regiões e mais problemas. E é isso que considero emocionante nas lutas atuais: as lutas recentes que, você tem razão, em muitos lugares concentram-se na violência contra as mulheres, mas tocam uma fibra muito dramática para muitas pessoas em todo o mundo, em continentes muito separados, de fato, e isto nos dá a oportunidade, acredito, de aprofundar nosso entendimento e de avançar em uma luta mais ampla, mais sofisticada, mais radical e, portanto, de melhorar nossas possibilidades para conseguir uma mudança real.
Você também alertou que o crescimento do movimento feminista se dá em um contexto no qual crescem movimentos de novas direitas. A que você atribui isso? Considera que existe alguma forma de resistir a esse fato?
É sumamente interessante, quero dizer, a primeira coisa que eu gostaria de observar é que nem todos, mas a maioria destes movimentos de extrema direita projeta uma imagem um tanto regressiva e reacionária da masculinidade, citemos Bolsonaro, no Brasil, Viktor Orbán, na Hungria, ou o próprio Donald Trump, que não está exatamente onde estava há alguns meses, mas que continua sendo um fator de poder.
Em todos estes casos, não gosto de utilizar a frase, mas seria uma “masculinidade tóxica”, representam uma espécie de retrocesso aos estilos patriarcais mais antigos, a algumas versões pré-modernas da masculinidade. E isso é muito interessante porque até o seu surgimento enfrentávamos um rosto diferente do poder masculino, mais moderno, mais burocrático, mais corporativo, e isso é algo que considero que não conseguimos prever, mas podemos entender e eu o entenderia pessoalmente como uma estranha forma de rebeldia populista contra o capitalismo corporativo burocrático que, diga-se de passagem, não era muito amigo das mulheres, não era amigo das mulheres pobres, das mulheres da classe trabalhadora, das mulheres negras, por exemplo.
Ainda que esse capitalismo burocrático não tenha sido amável com essas mulheres, sim, conseguiu atrair o apoio de certas correntes dominantes do feminismo, das corporações liberais, das Christine Lagarde do mundo, das Hillary Clinton, das Sheryl Sandberg do mundo, não sei qual seria o exemplo argentino para exemplificar, mas tenho certeza que deve existir algum.
De qualquer modo, esta tendência de feminismo favorável aos negócios corporativos, o feminismo de “romper o teto de cristal”, estava muito integrada ao capitalismo moderno neoliberal anterior, ligado ao Vale do Silício, Hollywood, Wall Street, que apresentava uma imagem atraente e, de fato, penso que o papel desse feminismo corporativo foi uma forma de pinkwashing (lavagem rosa) nesse neoliberalismo, sabe ao que me refiro, para lhe conferir uma espécie de rosto amigável para a mulher.
Chamo essa expressão política de neoliberalismo progressista, basicamente, há décadas, tem tornado a vida muito mais difícil para as pessoas da classe trabalhadora de todos os gêneros e cores e não é de se surpreender que provoque uma reação violenta, um retrocesso. E uma forma de retrocesso, não a única, mas uma delas é este novo populismo autoritário de direita que, como disse, apresenta-se como uma espécie de retorno pró-igreja, pró-família, pró-patriarcado e, dessa maneira, parece estar rejeitando o neoliberalismo progressista, certamente está rejeitando o componente feminista do progressismo neoliberal.
Às vezes, apresenta-se, como no caso de Trump, rejeitando o período do neoliberalismo, ainda que isso seja uma farsa e uma ilusão. De qualquer modo, acredito que o ponto de partida para uma análise feminista realmente útil é compreender o papel que o feminismo corporativo desempenhou para apontar e legitimar o neoliberalismo progressista e, portanto, para ajudar a criar as condições para o surgimento dessa raivosa revolta masculinista contra o neoliberalismo progressista que levou aos Trumps, os Bolsonaros, os Orbáns, etc.
A teoria da reprodução social versus a reprodução econômica, quando foi formulada, já partia de uma assimetria entre o homem como gerador de poder econômico e a mulher no âmbito doméstico e do cuidado. A pandemia nos fez retroceder no enfrentamento desta discussão. É possível fazer esse debate apenas em termos de distribuição, sem o reconhecimento?
Estas categorias são úteis para analisar alguns aspectos dessa conjuntura, mas diante dessa pandemia de Covid, estamos em uma espécie de tormenta perfeita de irracionalidade e injustiça capitalista, porque acredito que é o ponto de encontro onde todas estas mesmas linhas de irracionalidade capitalista predatória convergem.
Em primeiro lugar, comecemos com o aspecto ecológico. Falemos da explicação mais provável de como o vírus chegou até nós, os seres humanos. O vírus esteve em morcegos, em cavernas remotas, durante muito tempo, e nos foi transmitido por meio de algumas espécies intermediárias. As espécies intermediárias nos transmitem o Covid-19, e o mesmo aconteceu com outros SARS, com o HIV. Agora, a questão é: por quê? Por que agora?
Eu acredito que há uma resposta simples. É uma combinação de desmatamento tropical e mudanças climáticas. Isso é o que leva esta espécie a migrar, deslocar-se e encontrar espécies com as quais nunca havia estado antes e, portanto, por meio dessas espécies, chegar a nós. Portanto, falemos da destruição da floresta amazônica e da floresta tropical do leste e o sul da Ásia.
Muitas dessas coisas parecem se originar na Ásia ou África, mas não é só daí. De qualquer modo, é este desenvolvimento capitalista que está criando o ímpeto para que as espécies migrem para se aproximarem de novos organismos estressados ou se aproximarem repentinamente entre elas.
Agora, de qualquer modo, os efeitos já seriam horríveis para os seres humanos, mas foram agravados de forma incalculável por uma das características que este capitalismo irracional e injusto desenvolveu, que é o vazio do poder público durante as últimas décadas do neoliberalismo. O que quero dizer é que nessas quatro décadas, a linha compartilhada de nossos recursos, nossa saúde, nossos recursos de tratamento, nossas capacidades de pesquisa, nossa capacidade de inventar, descobrir e produzir vacinas, aumentar a produção de equipamentos de proteção pessoal, máscaras e ventiladores, etc., tudo isto foi privatizado, não totalmente, mas, sim, em grande escala.
Entregamos os recursos que precisamos para combater uma pandemia para as corporações e instituições com fins lucrativos que não têm nenhum interesse no bem-estar público, estão interessados em suas declarações de lucros e nos preços de suas ações na Bolsa.
Posso dizer que há um país que destacaria como uma brilhante exceção a isso e, pode ser que você fique surpresa, mas é Cuba que agora produziu uma quinta vacina e a reparte. Cuba não é modelo de democracia, certamente, mas neste ponto, em particular, é uma contratendência. Então, temos os países ricos acumulando vacinas, por um lado, e por outro sei que regiões como a América Latina estão sofrendo pela impossibilidade de ter acesso às vacinas a tempo. E não me refiro simplesmente aos países muito pobres, cito inclusive países como a Argentina e o Brasil.
Então, digamos que o neoliberalismo realmente minou nossa capacidade para combater a pandemia e, claro, é completamente contraproducente. Não se pode lutar contra a pandemia só em alguns países ricos, como bem sabemos, diante do surgimento de novas variantes, como a Delta. Isso levará todos à ruína. É completamente irracional essa forma de condução.
Depois, há um lado da reprodução social, que você já mencionou, e que tem a ver novamente com o neoliberalismo, em essência, confiscar nossas energias, nosso tempo, nossa capacidade de reprodução social. E o que fez o neoliberalismo? Por um lado, exigiu austeridade, razão pela qual os estados cortaram drasticamente o gasto no que chamamos de reprodução social: tudo o que estava sendo feito antes no que diz respeito aos cuidados dos idosos, cuidado diurno, gasto em educação, gasto em saúde, etc., etc. Isso devolveu todo esse trabalho às famílias, comunidades, e sabemos o que isso significa para as mulheres, em geral. Ao mesmo tempo, reduziu os salários a um nível tão baixo que exigiu muitas mais horas de trabalho assalariado remunerado por lar, o que exigiu que as mulheres dediquem cada vez mais de seu tempo ao trabalho remunerado e também mais tempo ao não remunerado.
Se o gasto social é cortado, então, cria-se uma grande crise dos cuidados, uma enorme crise de tempo e uma enorme crise de atenção. Vimos isso de modo muito evidente durante a pandemia, quando as escolas fecharam e fizeram a transição ao ensino remoto, quando os recursos para os cuidados dos idosos entraram em colapso e as creches foram fechadas, quando todos os tipos de serviços comunitários foram fechados.
De repente, tudo estava de novo nos lares. E aí vimos essas cenas incríveis de mulheres tendo reuniões de trabalho pelo zoom, em seus carros, enquanto seus filhos batiam na porta gritando: “mamãe, ajuda-me com minha tarefa de álgebra”. Ou seja, uma multitarefa levada a níveis de loucura.
E, claro, esses são os casos de mulheres afortunadas, que ainda possuem trabalhos que podem fazer de forma remota. Outras perderam seus trabalhos e sua renda e, como resultado, perderam suas casas e seus apartamentos, ou conseguiram manter, mas precisam sair e ocupar lugares na linha de frente que são perigosos e inseguros, com o risco de infectarem a si mesmas e suas famílias. Depois, claro, sabemos quais mulheres estavam em determinada situação. Dependeu muito da classe e a cor ou a raça.
Também existe uma questão de trabalho essencial. Deixando de lado os profissionais médicos, qual trabalho foi considerado essencial? Mão de obra agrícola? Matadouros, trabalho de empacotamento de carne? Delivery e compra em armazéns? Entregas da Amazon para permitir que as pessoas que podiam ficar em sua casa obtivessem o que precisavam sem sair? Isso é o novo, esse é novo rosto da classe trabalhadora agora, fortemente feminizado, fortemente racializado. Seu trabalho também é essencial, mas são descartáveis, podem ser enviados ao perigo e se ficam doentes e morrem, “oh, que pena”.
Em outras palavras, o que estou dizendo é que em todas essas formas podemos ver o quanto o capitalismo é irracional, como é profundamente sexista e racializado. E, com tudo isso, hesito em dizer, mas não poderíamos ter pedido uma melhor lição de teoria social do que o que estamos vendo. Mas, o que fazemos com essa lição? Como podemos usar a lição para lutar contra esse sistema que está nos matando? Então, sim, redistribuição e reconhecimento são categorias apropriadas para analisar alguns aspectos, mas acredito que há lições ainda mais profundas, aqui, nesta pandemia.
Qual é a sua opinião a respeito da contribuição do feminismo em massa à agenda pública? Quais são os riscos do feminismo de elite? E como o feminismo nos países subdesenvolvidos pode querer mudar as estruturas de produção e de justiça, por exemplo, se atualmente não pertence a elas?
Essa é uma pergunta muito interessante e importante. Comecemos voltando ao que disse antes e vejamos como um tipo de feminismo liberal corporativo, o feminismo de ‘rompamos o teto de cristal’ nos conduziu pelo caminho errado, ao feminismo que quando fala nos meios de comunicação se concentra na meritocracia, no management profissional das mulheres. Elas ganham e obtêm alguns benefícios deste feminismo.
Mas eu acredito que a hegemonia desse setor deu ao feminismo em geral uma má reputação entre muitas pessoas e penso que isso explica porque temos uma reação patológica que ganha o apoio de ao menos alguns setores dos mais pobres, a classe trabalhadora masculina, e acredito que, na realidade, de algumas mulheres também, por estranho que pareça, que veem na figura de alguém como Bolsonaro um homem forte que pode protegê-las, seja do crime ou do que for.
Penso que a primeira tarefa é nos dissociar desse feminismo e dizer: “não, parem, aqui, estamos tentando construir outro feminismo”. E suponho que acrescentaria, nesta perspectiva, que não há um só feminismo, temos que renunciar esta ideia de uma irmandade global, “a irmandade é poderosa”.
Não, o feminismo é um campo de debate, está dividido por classes, está dividido por cor, está dividido por ideologia, e penso que a primeira coisa é reconhecer isso e depois dizer: estamos lutando por este feminismo contra esse feminismo, não estamos lutando apenas contra o patriarcado, mas estamos lutando também contra esses feminismos que nos conduzem pelo caminho errado.
Um de meus projetos recentes foi o chamado Feminismo para os 99%, este manifesto que escrevi em coautoria com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya e que buscou articular um caminho alternativo. Não é algo que simplesmente inventamos. Isso está acontecendo no mundo. Talvez lhe demos um nome a partir do Occupy Wall Street e de outros movimentos populistas de esquerda, diferentes do tipo de populistas de direita dos quais falávamos antes.
Penso que este feminismo dos 99% poderia ser uma espécie de guarda-chuva sob o qual poderiam estar esses feminismos dos quais falávamos antes, das mulheres que não fazem parte do sistema no sentido de que não estão no centro do poder, talvez nem sequer no mercado de trabalho formal e, em alguns casos, mulheres indocumentadas, migrantes. Todo um conjunto de mulheres que o feminismo de ‘romper o teto de cristal’ não levou em consideração.
Acredito que é aqui onde está a esperança e o futuro do feminismo, pois vimos para onde nos conduz o feminismo que fez parte do neoliberalismo progressista. Não apenas conduz a uma piora das condições de vida da grande maioria das mulheres, mas a Trump, a Bolsonaro e à reação contra alguns postulados feministas.
É interessante, por certo, que existe uma exceção no populismo de direita que é o dirigido por mulheres, por exemplo, o de Marine Le Pen, na França. Esse é um interessante contraexemplo de todos esses machistas e isso provavelmente exige uma análise em si da política de gênero francesa, que eu mesma não acredito estar em condições de dizer algo interessante, mas, sim, quero ressaltar como algo que deveria ser examinado.
Sobre o risco de que tenhamos um feminismo com foco nas políticas de reconhecimento e não de distribuição. Considera que talvez as reivindicações de algumas feministas de querer cancelar artistas, trabalhos ou música é algo que pode nos distrair de um objetivo principal de mudança estrutural que garanta os direitos dos mais vulneráveis?
Isso é algo que me preocupa em dois níveis. Por um lado, como dissemos, confunde alguns tipos de política de representação ou de símbolos que vemos nos meios de comunicação com a política (política real, política com P maiúscula), e é uma visão que pode nos levar a buscar coisas que nos distanciam da verdadeira luta.
Por outro lado, preocupa-me que se organize um “pensamento de grupo” autoritário, porque sabemos que há casos em que se cancela pessoas que não merecem. Os erros ocorrem. Mas não tem como corrigi-los com este modus operandi. Então, entramos na lógica de Trump e dos QAnon, e é um terreno que me parece problemático. O que não quer dizer que não esteja certo que Harvey Weinstein fosse para a prisão. E, sim, é algo ruim que Bill Cosby tenha sido libertado por causa de um detalhe técnico do julgamento.
Por exemplo, quando se quer mudar o texto de um livro escrito 200 anos atrás ou um filme.
Exato. Especialmente porque penso que temos que ter uma visão mais complexa sobre a tradição artística, a tradição literária, cinematográfica, temos que entender que todos, todo ser humano, inclusive nós temos defeitos, temos perspectivas, temos pontos cegos, qualidades boas, qualidades ruins e não quero negar, abandonar ou censurar a arte que me produz incômodo.
Há um exemplo ao qual sempre volto: Lolita, de Vladimir Nabokov, o livro mais politicamente incorreto que possamos imaginar é também uma obra mestre. Não gostaria de proibir a leitura desse livro, que jovens garotos não o leiam porque esteja proibido, ao contrário, gostaria que continue sendo lido. É um exemplo de que as coisas mais problemáticas e as mais brilhantes podem estar entrelaçadas.
O feminismo não deveria ser uma forma de pensamento de grupo, o feminismo tem que ser uma luta que ilumine todas as complexidades de nossa vida. Mesmo quando identifica formas estruturais de opressão e dominação verdadeiramente problemáticas, que expõem jovens mulheres a determinados abusos, inclusive abusos sexuais. Por outro lado, podemos ser capazes de entender que exista uma obra de arte que fale sobre essa mesma relação abusiva. Este é o mundo em que vivemos. Não sou em nada fã do cancelamento cultural.
Hoje, em 2021, quem são as pessoas que você considera que podem liderar a contra-hegemonia ao neoliberalismo conservador, nos Estados Unidos e no mundo?
Penso que nessa situação, a própria luta está o tempo todo criando novas figuras. Posso dizer que nos Estados Unidos temos todos os tipos de pessoas que estão emergindo, pessoas com enorme carisma e capacidade de liderança como AOC, Alexandria Ocasio-Cortez, por exemplo, que é fantástica.
Com efeito, na semana passada, uma brilhante mulher negra, chamada India Walton, vencia as primárias democráticas em Buffalo, Nova York, para a prefeitura da cidade. Em razão de ser uma cidade totalmente democrata, será a próxima prefeita de Buffalo, uma das cidades mais importantes do estado de Nova York. Ela também é uma socialista democrática, como Ocasio-Cortez. E este é um nome sobre o qual pessoas distantes de certos círculos não tinham ouvido falar até a semana passada, mas agora está na manchete de todos os jornais do país. Este é só um exemplo e a cada semana há novos exemplos.
Ao mesmo tempo, quero reconhecer as figuras heroicas que resistem há décadas nesta luta: Noam Chomsky, Angela Davis, etc. Temos magníficas figuras jovens novas e também aquelas figuras que continuam e seguem, ano após ano.
Estas são as condições em que vivemos, é um tempo intenso, um momento de uma crise social geral, uma crise não só da economia, ou da ecologia, mas de toda a civilização, de toda a ordem social. Nas condições em que estamos, veremos o pior e também o melhor, e o que precisamos fazer é ter a esperança de que o melhor possa vencer ao pior, porque estão acontecendo muitas coisas ruins e também emergindo pessoas más na liderança.
Falhamos como civilização, por não ter um plano de vacinação em nível global?
Absolutamente. É um indício do absoluto fracasso, da absoluta irracionalidade e disfuncionalidade e injustiça da ordem atual. Tem isso, tem o clima. No mesmo sistema social que está criando estas falhas, encontramos enormes avanços científicos. Sabemos que as vacinas são possíveis, que há coisas que podemos fazer para combater as mudanças climáticas, não é que não existam soluções, não é uma fatalidade, não é que deva ser assim.
Então, onde estão as forças sociais e políticas que podem se organizar para insistir em que a estrutura de poder atual tem que ir embora e um sistema completamente novo precisa substituí-la? Há soluções, só que este sistema está bloqueando-as. Precisamos de um novo sistema social que possa implementar estas respostas.