A vontade de Putin em estabelecer uma potência, a necessidade de confinar o gigante russo pelo relançamento dos nacionalismos e a ilusão atlantista de poder administrar um projeto hegemónico numa fase difícil, são ingredientes que, combinados, criaram uma situação explosiva e de resultados incalculáveis.
Salvatore Cannavò, Esquerda.net, 27 de fevereiro de 2022
A guerra que a Rússia desencadeou contra a Ucrânia é uma guerra inaceitável e, como todas as guerras, injustificável. A sua natureza imperial, sustentando uma estratégia nacionalista que alarga a esfera de influência russa e que, por esta via, funciona como argumento para condicionar e bloquear a vida política interna já tinha ficado clara no longo discurso com que Vladimir Putin justificou o reconhecimento das duas repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk.
Esse discurso pretendeu associar o futuro da Rússia ao seu passado czarista, quando a Ucrânia era universalmente reconhecida como o "berço" da cultura russa moderna, o núcleo da "Rus" de Kiev que se estendia entre a atual Bielorrússia e a Rússia. A culpa da sua independência e, na essência, do seu nacionalismo galopante, explica Putin, seria mesmo de Lenine que, segundo o autocrata do Kremlin, estaria manchado por uma falha grave, a autodeterminação. Putin acusa Lenine de fomentar o nacionalismo. Tal acusação faz-nos sorrir, mas, considerando o papel do líder bolchevique no processo de autonomia das várias repúblicas, é verdadeira na sua substância e ajuda a compreender o espírito do discurso de Putin e a aceleração nacionalista que pretendeu dar a esta fase do seu poder.
E, de facto, Lenine, quando em 1919 se dirigiu "aos trabalhadores e camponeses da Ucrânia", lembrou que a independência daquele país "foi reconhecida pelo Comité Executivo Central dos Sovietes de toda a República Socialista Federativa Soviética da Rússia e pelo Partido Comunista Bolchevique Russo. Portanto, é óbvio e universalmente reconhecido que somente os trabalhadores e camponeses da Ucrânia podem e irão decidir, no seu Congresso Nacional dos Sovietes, se a Ucrânia se deve fundir com a Rússia ou estabelecer uma república autónoma e independente e, neste último caso, que vínculo federativo deve ser estabelecido entre esta república e a Rússia”.
O êxito da revolução russa, na sua fase inicial conduzida pelo próprio Lenine e por Trotsky, previa a aplicação do princípio da autodeterminação, princípio que à luz da história permanece válido ainda que possa dar origem a processos incontroláveis (permanece válido, por exemplo, também para as repúblicas de Donbass, embora essa possibilidade seja afastada por aqueles que aplaudem a independência dos povos).
Mais difícil é apreender a dinâmica interna do regime e da sociedade russa que levou Moscovo a dar um passo tão sério e cujo desfecho, no momento, não é possível prever. Ao nível financeiro, Putin certamente preparou-se. A Rússia é credora nos mercados internacionais, tem uma dívida mínima, situada nos 16,5% do PIB em 2021, um saldo positivo da balança comercial de 161 mil milhões de euros, um Produto Interno Bruto, que após a estagnação verificada entre 2016 e 2020, cresceu 4,4% em 2021 e em vias de manter o crescimento em 2022, caso a guerra o permita. Possui grandes reservas monetárias. Pode resistir à crise durante vários meses e tem ainda a vantagem de ser um produtor de gás do qual depende o resto da Europa, o que acentua ainda mais o seu primado.
Ainda assim, o Fundo Monetário Internacional não prevê um futuro brilhante. O peso da Rússia na economia mundial caiu para os níveis mais baixos desde 2000. Apesar do bom crescimento de 2021, o país representa apenas 3,075% da economia global, o valor mais baixo dos últimos vinte anos. Nos próximos cinco anos, esse peso continuará a diminuir: em 2022 para 3,02% e em 2026 para 2,83%. O próprio crescimento registado e projetado é muito inferior à média mundial. A hipótese de que por trás da guerra esteja o projeto do pequeno círculo putiniano e dos seus oligarcas de permanecerem no poder nos próximos dez ou vinte anos é inteiramente legítima e amplamente veiculada pelas principais análises internacionais mas deverá ser enraizada em factos mais atuais. Que melhor do que uma guerra para silenciar ainda mais qualquer forma de dissidência interna e oferecer uma distração, trágica, a uma população que parece andar, há décadas, bastante desorientada e desmoralizada?
Só que a economia poderá não ser a explicação determinante. O ataque à Ucrânia ocorre após anos de grande ativismo político e militar da Rússia. O posicionamento na Síria, que muito contribuiu para mudar o equilíbrio de poder, a projeção na Líbia e no mundo árabe em geral, as controversas relações com a Turquia, a reaproximação à China, fazem da Rússia um ator geopolítico polivalente que deseja estabilizar a sua própria posição num mundo cada vez mais instável e no qual provavelmente há espaço para ações de força. Não será coincidência que a decisão de invadir a Ucrânia tenha sido tomada no verão passado, quando o cenário internacional foi marcado pelo fim desastroso das missões militares ocidentais no Afeganistão. A NATO, os EUA e a própria União Europeia mostraram de uma forma muito clara a sua fraqueza e a sua incapacidade de sustentar a liderança mundial, o que poderá ter motivado as decisões de Putin e do seu estado-maior.
Sentindo-se mais forte devido às fraquezas dos outros e às "vitórias" no terreno acima descritas, Putin decidiu que o longo período de expansão constante da NATO para o leste teria de terminar, que estava na altura de quebrar o cerco e que a Ucrânia poderia representar o campo ideal para essa batalha. A Ucrânia recebeu dos Estados Unidos 2,7 mil milhões de dólares em ajuda de 2014 até hoje, tornando-se, após a "revolução" da praça Maidan, o posto avançado de uma estratégia expansionista da NATO que os EUA sempre usaram, não apenas para garantir a própria hegemonia mundial mas também para controlar as pretensões de autonomia da União Europeia. E, sem dúvida, conseguiram-no. Após a reorientação estratégica realizada em 1999, após as guerras jugoslavas, passou-se à fase de expansão para a Polónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Eslovénia, República Checa, num caminho que, com a inclusão da Albânia e da Macedónia, conduzindo a uma NATO representante de quarenta países. Países estes que, como resultado desta rede militar, mantêm um diálogo de proximidade com os EUA, sendo lisonjeados e levados a aceitar importantes acordos militares, que têm como corolário a influência política e repercussões económicas.
Esta expansão é constantemente apontada como fonte de ameaça e insegurança pela Rússia, que tem repetidamente pedido garantias e também denunciado o desrespeito pelo compromisso estabelecido pelo EUA e pela própria NATO após a queda do Muro de Berlim, de que a NATO não representaria uma ameaça a leste do rio Elba, a fronteira entre a Alemanha Ocidental e Oriental. Mas a possível entrada da Ucrânia na NATO tornou-se, a certa altura, num resultado mais que provável e com ele vem a perspetiva da presença de mísseis americanos a poucos passos da fronteira russa.
É neste conflito de interesses que reside a responsabilidade do mundo ocidental que, pretendendo dobrar à sua estratégia uma Rússia ainda incapaz de reagir, não foi capaz de fazer uma leitura dos acontecimentos – mesmo após a tragédia síria, o desastre no Afeganistão ou a instabilidade nunca resolvida no mundo árabe – e compreender a necessidade de restabelecer um sistema multilateral, estável e seguro para todos os países do planeta e não apenas para o posto avançado do capitalismo. A vontade de Putin em estabelecer uma potência, a necessidade de confinar o gigante russo pelo relançamento dos nacionalismos e a ilusão atlantista de poder administrar um projeto hegemónico numa fase difícil, são ingredientes que, combinados, criaram uma situação explosiva e de resultados incalculáveis.
Putin pretende ocupar toda a Ucrânia e trazê-la de volta ao controle de Moscovo? Muitos consideram essa opção a mais difícil e perigosa para a própria Rússia, que se exporia a uma condição de desgaste. Provavelmente, e de acordo com o que serviços secretos norte-americanos vão fazendo constar, ele quer derrubar o governo Zelensky, substituí-lo por um governo amigo e criar um contexto de guerra civil eminente, no qual o papel russo seria exaltado. Se os tanques russos chegarem a Kiev e tomarem as suas ruas e praças, esta situação será quase irreversível.
O impacto económico da guerra pode ser de longo alcance. A desaceleração das bolsas de valores, o pânico nos mercados e o aumento dos ativos de energia são uma primeira demonstração disso. Cerca de 36% do gás importado da União Europeia vem da Rússia, apesar de nos últimos anos a UE ter tentado diversificar as suas fontes de abastecimento (Noruega, Líbia, Argélia). Mas a utilização do gás russo, importado por gasodutos, continua a ser a solução mais barata, até porque contextos como os do Norte de África, palco de uma forte instabilidade, impossibilitaram a libertação desta dependência. A Itália depende do gás russo para cerca de 40% das suas necessidades, muito mais do que a Alemanha (26%) e a França (17%) e isso determina uma vulnerabilidade particular. Mas o comércio bilateral também atinge setores nevrálgicos, como a indústria ou o setor agroalimentar. Não é por acaso que o presidente da confederação patronal italiana, a Confindustria, Carlo Bonomi, quis renunciar à sua recente candidatura à presidência da Serie A de futebol para reafirmar o seu compromisso a tempo inteiro com os industriais em tempos particularmente difíceis.
Apesar dos repetidos alertas das últimas semanas, os EUA e a NATO ficaram surpreendidos com a guerra lançada por Putin. Foi uma demonstração da incapacidade dos atuais sistemas de governança política do planeta e da instabilidade na relação de forças. De momento, não se avança com a hipótese de uma resposta militar, que foi oficialmente descartada na quinta-feira pelo secretário-geral da NATO, Jen Stoltenberg. No entanto, as pressões militares, políticas e de vários observadores, incluindo uma certa imprensa, para que seja equacionada uma presença militar ocidental, começam a surgir com insistência. Quando, aliás, Putin é descrito como o "novo Hitler", isso é feito como foram de apontar uma saída obrigatória, a da intervenção e da escalada do conflito.
Nesta situação, não há espaço para dúvidas. A legítima aversão à guerra provocada pela Rússia, a oposição convicta a um regime nacionalista, autoritário e corrupto como o de Putin, não pode fazer-nos desviar do princípio “Não à guerra” como solução para a crise. Como aconteceu várias vezes ao longo dos anos, a eclosão de uma guerra produz uma sensação geral de desamparo e frustração, porque atesta que as soluções políticas já foram esgotadas. No entanto, isso não nos dá permissão para perder a clarividência e para não nos opormos à guerra de agressão e imperialista em qualquer forma que se apresente.
Nestas horas estamos, mais uma vez, a testemunhar à retórica já um pouco estafada de "para onde foram os pacifistas que sempre se manifestaram contra os EUA?", "Porque não se manifestam contra a Rússia?". O lento processo de dispersão do grande movimento anti-guerra que animou a Itália, e se estendeu além fronteiras, no início dos anos 2000 foi saudado com entusiasmo e satisfação pelo mundo político dominante, mas hoje pede-se uma reação a forças que, em grande parte, estão enfraquecidas. Mas, de qualquer forma, elas existem e, de facto, estão a mobilizar-se. E voltam novamente a colocar a questão não resolvida do desarmamento e da redução drástica dos gastos militares que, à luz da história, continua a ser a forma mais eficaz de evitar guerras e impor um modelo de paz.
O problema não é onde estarão os pacifistas, mas sim o violento choque de interesses ferozmente opostos. Tal choque existe desde que o capitalismo evoluiu para o imperialismo e descobriu a geopolítica, mas depois da revolução de outubro assumiu a forma de uma disputa ideológica e de valores. Hoje, quando o capitalismo cobre todo o planeta, o embate continua a ser o mesmo, a disputa entre diferentes projetos imperialistas nesta ou naquela parte do mundo (e a Europa ainda representa, como durante o século XX, um formidável terreno de disputa hegemónica). Hoje parece difícil ou impossível argumentar que existe outro modelo e outra forma de resolver crises e governar o mundo, mas isso não significa que esse caminho esteja errado.
Salvatore Cannavò é vice-diretor do jornal Il Fatto Quotidiano e diretor editorial das Edizioni Alegre. Publicado originalmente na Jacobin Itália. Traduzido por André Beja para o Esquerda.net.