Esteban Magnani entrevista Naomi Klein, Le Monde diplomatique / Outras Palavras, 11 de agosto de 2021 Tradução de Gabriela Leite
Naomi Klein é uma das poucas vozes capazes de articular as múltiplas dimensões da crise do capitalismo em seu modo neoliberal. Seu primeiro livro, Sem Logo, explicava já em 2000 as maneiras como as corporações concentravam a economia enquanto se infiltravam em valores e emoções da sociedade. Em 2007, em A Doutrina de Choque, analisou os inúmeros exemplos de como as crises provocadas por causas naturais, mas também sociais, políticas e econômicas, algumas delas deliberadas, são exploradas pelos setores que concentram o poder para impor, uma após outra, medidas que os beneficiam ainda mais. Nos últimos anos, os artigos e livros se multiplicaram, especialmente This Changes Everything [“Isso muda tudo”, se traduzido ao pé da letra — sem edição no Brasil] de 2018, onde dá conta de como o capital, cego, nos leva em direção ao abismo final: o esgotamento dos recursos naturais.
Se há uma característica marcante nessa intelectual canadense, é que ela não foge da lama da realidade: observa, participa do mundo e acompanha os movimentos sociais com atenção especial. Essa atitude de diálogo permanente é o que, por exemplo, a trouxe à Argentina em 2002 para conhecer em primeira mão os movimentos sociais que surgiram após o tsunami neoliberal. No ano seguinte regressou e, junto de o seu sócio Avi Lewis, realizou o documentário sobre as empresas recuperadas La Toma, em que também trabalhou este cronista. Quase vinte anos depois, Naomi generosamente abriu uma janela em seu computador para falar com o Diplôe analisar a situação atual.
Se você reescrevesse A Doutrina de Choque, faria um capítulo sobre a covid? Qual seria sua peculiaridade?
Faria. Talvez eu deva escrever uma introdução a uma nova edição ou algo assim, porque não há dúvida de que vimos uma exploração covarde do desastre, uma grande especulação em meio a este período horrível de mortes em massa. O mais extraordinário nesse momento é que temos um empobrecimento profundo, um grande número de mortos e ao mesmo tempo um boom econômico. Essa não é uma crise econômica no sentido tradicional. Foi um período em que os bilionários aumentaram muito sua riqueza. Os interesses das elites foram separados de quaisquer interesses compartilhados com a classe trabalhadora. E então, é claro, vimos todos os tipos de tentativas muito explícitas de explorar o desastre — como empresas extrativistas usando a pandemia para dizer: “Oh, desculpe, não podemos fazer cumprir as regulamentações agora”. Também assistimos a tentativas muito orquestradas por parte das corporações de tecnologia de se aproveitar de necessidades físicas reais de distanciamento para dar uma nova embalagem a tecnologias. Creio que estamos testemunhando uma espécie de privatização parcial e sorrateira da educação pública, que, em grande parte, está migrando para plataformas privadas como Google Classroom ou Zoom. E não há dúvida de que era necessário fazer isso. Mas a verdadeira questão é: por que tivemos de adotar plataformas privadas? Na verdade, havia iniciativas do setor público para desenvolver algumas dessas tecnologias com recursos públicos, em um modelo sem fins lucrativos. E tudo isso foi simplesmente colocado de lado. O que o Vale do Silício faz é primeiro inundar a área com serviços gratuitos ou de baixo custo e, em seguida, dominar o mercado. Portanto, ninguém pode competir porque todos estão na plataforma. Esses são apenas alguns dos exemplos de capitalismo de desastre sob o manto de uma pandemia.
É justamente no mundo da Educação argentino que começa a se debater uma nova lógica de recolhimento de dados de crianças por meio do sistema de ensino. Para minha surpresa, em meio a tantas emergências na educação, um artigo que escrevi para o livro da Universidade Pedagógica “Pensando a educação em tempos de pandemia” gerou interesse e convites para dar palestras para aprofundar o assunto. É difícil evitar as corporações de tecnologia, mas pelo menos há interesse em fazê-lo. Na América Latina, a dimensão colonial é adicionada à dimensão privatizante. Isso está começando a ser discutido nos Estados Unidos e Canadá?
Francamente, acho que não houve resistência suficiente dos sindicatos de educação ou da educação pública. Acho que por motivos compreensíveis, porque muitos deles tiveram que lutar com governos que tentaram empurrá-los para a sala de aula, colocando sua saúde em risco. Portanto, se entendermos que haverá mais ensino virtual e percebemos que a internet é um serviço essencial, temos que lutar por um bem comum digital em todas as frentes. A educação deve fazer parte disso. A saúde deve fazer parte disso. Vemos exemplos em Barcelona com Ana Colau, com uma abordagem baseada nos Comuns digitais municipais, no WiFi, etc. Mas também acredito que devemos buscar outros modelos educacionais mais seguros. Eu gostaria de ver um impulso para conquistar salas de aula menores e mais educação ao ar livre. Porque amontoamos alunos em salas de aula de um tamanho que não é bom para nenhum menino ou menina. Quer dizer: sabemos que o mais seguro no contexto da covid são as salas de aula de onze, doze alunos, além de muitas atividades ao ar livre. Na verdade, isso é o melhor do ponto de vista educacional e de saúde pública.
E o que acho enlouquecedor é essa transferência massiva de riqueza do setor público para empresas privadas de tecnologia, quando poderíamos ter usado esse dinheiro para contratar professores assistentes entre estudantes universitários que se formaram em uma economia decadente. Esse é o tipo de coisa que aconteceu durante a Grande Depressão nos Estados Unidos. Um dos programas do New Deal chamava-se Administração Nacional da Juventude e trouxe milhões de jovens de dezoito, vinte ou vinte e dois anos para trabalhar em atividades como construção de parquinhos para crianças, limpeza de trilhas, ajuda com ensino e enfermagem. Isso é realmente investir na economia. Se resolve vários problemas ao mesmo tempo: o problema do investimento insuficiente na esfera pública, a necessidade de empregos para essa geração. E essas também são soluções climáticas. Precisamos de acesso à natureza, proteção da vida selvagem e investimento em setores de baixo carbono, como educação e enfermagem, que são verdadeiras alternativas às indústrias extrativas.
As propostas recentes do presidente Joe Biden parecem muito mais keynesianas do que estamos acostumados. Na Argentina, alguns começaram a fazer piada chamando-o de Juan Domingo Biden em referência a Perón. É para tanto?
Acho que Biden é um democrata extremamente convencional. Creio que se você procurar no dicionário por “democrata convencional”, deve aparecer uma foto de Biden. Ele não é uma pessoa “ideológica”, é um centrista no sentido de que encontra o centro e vai para lá. Assim, ele conseguiu permanecer em cargos públicos desde os vinte anos e agora está com setenta. O que estamos vendo é que o centro mudou. Bernie [Sanders], [Alexandria] Ocasio Cortez, o movimento Sunrise deslocaram o centro, criaram espaço para um político centrista dividir a diferença e dizer “Bem, vamos criar um projeto de lei de estímulo de dois bilhões de dólares”. Não é realmente grande o suficiente, porque na verdade precisamos de um estímulo de dez bilhões de dólares. Esse é Joe Biden, encontrando o centro entre Bernie e [Barack] Obama. É um avanço. O problema é que quando você precisa avançar no aspecto climático, isso não basta. Temos muito, muito pouco tempo porque muito já se perdeu. Eu diria que Biden não é peronista. Acho que tivemos um pequeno vislumbre disso quando ele enviou cheques à população com um bilhetinho anexo, dizendo que o dinheiro veio do presidente Biden.
Mas acho que o que precisamos é de um movimento muito, muito rápido para melhorar materialmente a vida das pessoas, para que digam “Ok, o Green New Deal [Virada Socioambiental] não é assustador. Ele traz mais empregos para minha comunidade. Há melhor infraestrutura, menos trânsito”, coisas que tornam a vida das pessoas muito melhor. O governo precisa ir atrás disso imediatamente, ou perderá sua pequena maioria. E, infelizmente, já estamos vendo alguns retrocessos nessa onda original de anúncios. Também é culpa do Congresso e dos democratas corporativos. Mas acho que veremos surgir uma nova onda de ativismo nos próximos meses, à medida que as pessoas nos Estados Unidos forem vacinadas. Creio que vamos começar a ver grandes ações que vão exigir que se aumente o nível de urgência mais uma vez, pois acho que há um medo real de que, quando os Estados Unidos saírem da crise, esqueçamos que a covid não foi a única crise que enfrentaremos.
Quão verde é o pacote de estímulo proposto por Biden?
Bem, na verdade não foi aprovado. Então, o quanto ele é mesmo verde? É muito cedo para dizer, mas em grande parte, é. Definitivamente mais do que com Obama. Biden falou sobre investir 40% dos gastos com infraestrutura em comunidades pobres, comunidades de justiça ambiental, comunidades que são predominantemente negras, indígenas, pardas, que enfrentam subinvestimento sistêmico e contaminação. E assim, de muitas maneiras, a vitória mais promissora do movimento pela justiça climática é o compromisso de que 40% dos gastos irão para as comunidades de justiça ambiental da linha de frente. Isso seria uma virada de jogo se isso acontecesse, mas ainda não está fechado.
Você pode relacionar o que está acontecendo no Chile ou na Colômbia com a crise neoliberal global?
Bem, acho que todo levante de massas é sempre específico de sua própria história, mas ainda podemos extrair algumas tendências globais. E acredito que as revoltas sustentadas no Chile têm um enorme significado histórico, em parte porque o Chile foi o primeiro laboratório do projeto neoliberal. Muitas vezes penso na previsão de Rodolfo Walsh de que levaria três gerações para que o trauma da ditadura diminuísse o suficiente para que as pessoas voltassem à luta. Acho que sempre subestimamos a duração do trauma. Estamos vendo uma geração que tem a memória histórica da ditadura, mas tem um imaginário menos colonizado. O que está acontecendo no Chile deve ser entendido nesse contexto.
Acredito que essa enorme e indignada revolta na Colômbia também faz parte do lento colapso do consenso neoliberal. A questão é: o que o substitui? E não se deve presumir que sempre será substituído por algo melhor, como já vimos. Acho que Trump representou isso. Ele não era um neoliberal tradicional. Pode parecer porque em alguns casos fez cortes, mas em outros não. E eu acho que [Rodrigo] Duterte, [Jair] Bolsonaro, [Narendra] Modi são parte disso. Eles têm uma abordagem clientelista, um discurso contra os globalistas.
Há quem acredite que a política progressista de Obama permaneceu nos aspectos mais simbólicos como a defesa dos direitos das minorias, mas não modificou a ideologia econômica neoliberal e que favoreceu a direita da classe trabalhadora branca daquele país, o ódio dos direitos das minorias.
Bem, eu acho que Obama representou uma adoção de políticas de diversidade simbólica sem a redistribuição da riqueza material que também beneficiaria a classe trabalhadora branca, assim como a classe trabalhadora em geral, que nos EUA não é majoritariamente branca. Foi isso que vimos durante a pandemia: a esmagadora maioria dos trabalhadores negros e pardos são os mais vulneráveis à covid. Com Obama, se produziu aquela reação branca a essas vitórias simbólicas que aconteceram, sem oferecer distribuição de riqueza. E isso criou uma situação muito volátil. O trumpismo não está morto. O próprio Trump poderia retornar na próxima eleição, ou uma versão pior de Trump, uma figura nacionalista branca mais eficaz. E é por isso que este momento é absolutamente aterrorizante nos Estados Unidos: com Biden e o Senado e a Câmara controlados por democratas, mas não agindo com a urgência que o momento requer. Obama teve o que Biden tem agora em seus primeiros dois anos: o Senado, a Casa, a Casa Branca. E justamente por ser tão tímido naquele período, perdeu o Senado e, logo, “adeus à ação climática sustentada”. Mais nada de significativo poderia passar pelo Senado.
Suas esperanças estão nos movimentos climáticos da juventude. Eles não estão muito restritos aos jovens do primeiro mundo?
Creio que o movimento jovem pelo clima, sobretudo o “Fridays for future”, que começou com Greta Thunberg, agora é realmente uma rede global. E é verdade que no “primeiro mundo”, ou “desenvolvido”, como preferir, foi muito mais forte. Mas acho que o movimento fez um trabalho notável ao se tornar mais internacionalista do que o movimento climático adulto. E vejo que um exemplo poderoso desse aspecto é o que aconteceu na Índia com o movimento dos agricultores, que não se descrevia a si mesmo como um movimento climático. É um movimento de pequenos e médios agricultores que lutam contra as políticas neoliberais que buscavam concentrar a terra nas mãos de algumas grandes empresas agroindustriais — o que é sim um problema climático. Mas quando centenas de milhares de fazendeiros indianos tomaram as ruas e construíram o que alguns chamam de o maior movimento de massas da Índia desde a independência, o movimento climático internacional e os grandes grupos ambientais não ligaram muito. Foram os jovens do “Fridays for Future” na Índia que disse: “Vejam, este é um problema climático. Os agricultores estão na linha de frente da seca. Os agricultores são os mais vulneráveis às mudanças climáticas”. Logo Greta e outras pessoas da rede começaram a apoiá-lo. E o governo Modi ficou com tanto medo que prendeu vários jovens ativistas do clima por, segundo eles, conspirar para fazer com que Greta apoiasse os agricultores.
Mas acho que isso diz respeito ao poder da solidariedade internacional. E estou impressionada, francamente, com a forma como o movimento jovem pelo clima abordou a questão das vacinas, como eles realmente entenderam o apartheid da saúde que estamos vivendo, em que os países ricos acumulam todas as vacinas e protegem patentes de medicamentos. Que foram desenvolvidos quase em sua totalidade com dinheiro público. Por que existem patentes para esses medicamentos? Eles só deveriam ter sido pagos pelo serviço. E é isso que estamos vendo, você sabe, jovens estadunidenses estão sendo vacinados antes de bilhões de pessoas no sul global que são muito, muito mais vulneráveis. Esta é uma prévia das mudanças climáticas. Esta é uma prévia do tipo de injustiça que é gerada em face das crises. Então, já temos o clima do apartheid climático; a covid nos dá um vislumbre de sua aparência. E é o movimento jovem, eu acho, que está disposto a fazer essas conexões muito mais do que o chamado “movimento adulto do clima”.
Em uma entrevista em 2020, você disse que houve uma desaceleração social saudável. Você ainda vê o mesmo?
Bem, eu sinto que corre a nosso alcance o business as usual, como um trem desgovernado, e acho que se olharmos para alguns dos países que voltaram ao “normal”, veremos um aumento nas emissões. É muito preocupante. Não vou mentir nem ser otimista: acho que se quisermos aprender as lições mais profundas da pandemia sobre o que é verdadeiramente essencial, o que realmente nos traz felicidade, como queremos viver, o que é importante… temos que refletir e lutar por isso. Nada vai acontecer sem ação real. Vejo que sentimos falta uns dos outros, certo, e há coisas que desejamos deixar para trás: não quero ficar isolada dos meus amigos e entes queridos. Não quero voltar a ver um amigo apenas para um café rápido. Quero que realmente possamos passar um tempo juntos e aproveitá-lo da maneira mais significativa, inclusive para o trabalho político que será necessário para vencer essa transição.