Hoje, este conceito é uma pedra angular para justificar a guerra contra a Ucrânia e negar a toda a nação o direito à existência. Qual é a história por detrás do conceito do "mundo russo" e como é que ele surgiu?
Ilya Budraitksis, Esquerda.net, 13 de junho de 2022
Dirigindo-se à nação na véspera da guerra, Vladimir Putin chamou(link is external) à Ucrânia "uma parte integrante da nossa própria história, cultura e espaço espiritual". Desta declaração segue-se uma conclusão político-militar direta: as fronteiras deste "espaço espiritual" devem coincidir plenamente com as fronteiras geográficas do Estado russo. A ideia de identificar a cultura com o exército, o Estado com a língua, e a identidade nacional com a cidadania é conhecida como a doutrina do "mundo russo" e tem sido progressivamente desenvolvida pelo Kremlin nas últimas duas décadas. Hoje, este conceito é uma pedra angular para justificar a guerra contra a Ucrânia e negar a toda a nação o direito à existência. Qual é a história por detrás do conceito de "o mundo russo" e como é que ele surgiu?
O termo "mundo russo" surge(link is external) nos anos 1990, nos círculos intelectuais de Moscovo, como resposta à necessidade de uma ampla definição cultural da identidade russa, que tinha de ser diferente das suas possíveis definições nacionalistas e revanchistas. No entanto, tendo adquirido um novo significado no início dos anos 2000, o termo torna-se gradualmente o pilar da doutrina oficial. Em Outubro de 2001, no chamado Congresso Mundial de Compatriotas, Putin expõe(link is external) pela primeira vez a sua compreensão desta doutrina: o "mundo russo" consiste em "milhões de pessoas que falam, pensam e sentem russo" residentes fora da Federação Russa. Pertencer ao "mundo russo", segundo Putin, é deliberado; é "uma questão de autodeterminação espiritual". E uma vez que "a Rússia está a fazer progressos constantes no sentido da integração na comunidade global e na economia mundial", "os nossos compatriotas têm todas as oportunidades de ajudar a sua pátria num diálogo construtivo com [os seus] parceiros estrangeiros". É evidente pelo discurso de Putin que nesse momento ele está mais interessado naqueles que "se sentem russos" enquanto vivem em Londres, Paris ou Nova Iorque do que naqueles que vivem em Donbass, ou no Norte do Cazaquistão. Vale a pena relembrar que 2001 foi a lua-de-mel de Putin com o Ocidente: A Rússia apoia a operação militar dos EUA no Afeganistão, enquanto estão em curso reformas económicas liberais - entre elas programas destinados a atrair o investimento estrangeiro. Até agora, o "mundo russo" refere-se aos membros ricos e influentes da diáspora que podem servir como vantagem competitiva da Rússia num mundo globalizado.
Mesmo um ano antes, em 2000, Pyotr Shchedrovitsky, um consultor político com ligações ao Kremlin, define(link is external) o "mundo russo" como uma "fonte cultural e humana" no mercado global. Apoiando o conceito do "mundo russo" como uma abordagem híbrida "humana/tecnológica" Shchedrovitsky contrasta-o com o modelo sérvio de "resolução à força de problemas territoriais e etno-culturais".
Na sequência da anexação da Crimeia e da eclosão do conflito em Donbass em 2014, o "mundo russo" já não traz vestígios de "soft power" e desenvolve-se numa ideologia de irredentismo - um programa que procura recuperar os "territórios históricos" do país, que se perderam - se não como partes da Federação Russa, pelo menos dentro da órbita do seu controlo político e militar. Como o Patriarca Kirill, o chefe da Igreja Ortodoxa Russa, explicou(link is external) na altura, o "mundo russo" é "uma civilização particular, e as pessoas que hoje lhe pertencem chamam-se a si próprias por nomes diferentes - russo, ucraniano, ou bielorrusso. Pertencer ao "mundo russo", portanto, não é uma questão de escolha pessoal; é predeterminado pelo destino - pela origem e território. Segundo(link is external) o estratega do Kremlin Vladislav Surkov, o "mundo russo" é onde as pessoas "acarinham a cultura russa, temem as armas russas, e respeitam o nosso Putin". Por outras palavras, fazer parte do "mundo russo" significa estar sujeito a Putin, reconhecer a sua autoridade e obedecer. Não se pode pensar numa fórmula mais concisa mostrando o colapso total de concetualizações anteriores do "mundo russo" como "soft power": A Rússia não pode simplesmente ser amada pela sua alta cultura, porque ninguém acha o seu modelo social e político atraente; mas é capaz de incitar o medo com o seu poder militar.
Durante toda uma década, várias organizações têm vindo a construir o "mundo russo", e em vão. Ainda por cima, transformaram-se num mecanismo de desfalque de fundos governamentais. Até a Igreja Ortodoxa Russa está agora moralmente falida, já que milhões dos seus paroquianos na Ucrânia lhe viraram as costas quando a guerra começou. No entanto, o fracasso do "mundo russo" como estratégia de "soft power" não é apenas um produto de prática corrupta. Resulta da visão antidemocrática das elites estatais que estão profundamente convencidas de que as pessoas, pelo menos as que estão fora das elites, são incapazes de dominar os seus próprios destinos. O verdadeiro "mundo russo" - milhões daqueles que falam russo - é tratado não como um igual num diálogo, mas como um "bem"; um bem a ser gerido e utilizado em benefício do Estado. Hoje, este "mundo russo" é literalmente um refém e vítima do Estado que está a travar uma guerra criminosa. Foram os ucranianos de língua russa que morreram sob as bombas russas em Mariupol e Kharkiv ou que se tornaram refugiados. A lógica do Kremlin degenerou numa fórmula aterradora: Se o "mundo russo" não pode ser subjugado, só pode ser destruído. Isto significa que se a cultura e a língua russas tiverem um futuro, só se podem erguer sobre os escombros da Rússia de Putin.
Ilya Budraitskis é historiador e escritor político em Moscovo. Integra o conselho editorial da Revista de Arte de Moscovo e dos portais Openleft.ru e LeftEast. Artigo publicado no novo site Posle(link is external) ("Depois" em russo"). Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.