Para Eduardo Gudynas, a presença da necropolítica na América Latina está diante de nossos olhos. A pandemia de covid-19 já tem um ano, não terminou e também não se evidencia que será superada rapidamente. A nova normalidade prometida nunca chegou e o normal é uma pandemia contínua com seus vaivéns, com recuos e novas ondas.
Eduardo Gudynas, Centro Latino-Americano de Ecologia Social – CLAES / ALAI, 16 de abril de 2021. A tradução é do Cepat.
O avanço da pandemia pelo coronavírus não apenas não é detido, como na medida em que se agrava, deixa em evidência um obscuro giro político: a necropolítica. Esse conceito serve para descrever ao menos três características: ocorre em um contexto onde o estado de exceção passa a ser uma nova normalidade, a política se concentra em decidir sobre o deixar morrer e repete uma narrativa de uma guerra perpétua contra todos os tipos de inimigos.
A ideia de necropolítica foi cunhada anos atrás pelo camaronês Achille Mbembe, para descrever a onda de violência global, a partir dos atentados às Torres Gêmeas, em Nova York, sem deixar de atender as particularidades da colonialidade nos países do sul. Hoje, embora estejamos em um contexto diferente, todos esses componentes estão em primeiro plano. É que a política tradicional, que para além de suas falhas e contradições buscava assegurar a vida, está sendo substituída por uma que deixa morrer. É uma política que diferencia entre vidas resgatáveis e outras que são descartáveis.
A presença da necropolítica na América Latina está diante de nossos olhos. A pandemia de covid-19 já tem um ano, não terminou e também não se evidencia que será superada rapidamente. A nova normalidade prometida nunca chegou e o normal é uma pandemia contínua com seus vaivéns, com recuos e novas ondas. Hoje, vivemos sabendo que somos vigiados e controlados, cercados por policiais e militares. Aplicam-se toques de recolher ou são fechados bairros e cidades inteiras, aceitando-se, desse modo, a imposição de enormes espaços de confinamentos.
Aqueles que violam as medidas são disciplinados penalmente. Por exemplo, na Argentina, segundo o novo decreto que acaba de ser aprovado, quem descumprir as restrições sanitárias pode receber penas de seis meses a dois anos de prisão. São controles legitimados pela política, aceitados e inclusive reivindicados por muitos setores sociais. Sua utilidade sanitária é duvidosa, pois a pandemia segue em marcha, mas são muito eficazes em construir esse componente necropolítico de uma espacialidade de confinamento.
O medo caminha de mãos dadas com a violência que se expressa na militarização e na policialização. As pessoas têm medo tanto do vírus como dos que andam pelas ruas com fome, e por isso reivindicam mais segurança. São enviados policiais e guardas, como no Chile, que por sua vez reprimem com violência os que andam nas ruas, aqueles que quase sempre são os mais pobres. Ou então, como no Brasil, aproveita-se a situação para liberar o porte pessoal de armas.
Todas estas situações, dos excessos policiais aos confinamentos de milhões de pessoas, ficam imersos nas narrativas de uma guerra sempre presente contra um inimigo que está em todos os lugares, nos objetos, no ar: o vírus. A condição de excepcionalidade desaparece e se naturaliza essa violência, onde o inimigo nunca é derrotado e a guerra, então, torna-se eterna.
A necropolítica é a política do deixar morrer. É admitir que a meta de assegurar a vida fique relegada. As mortes se acumulam não por decisões expressas que as provoquem, mas em razão dos governos não conseguirem superar a fragilidade dos sistemas de saúde pública, como ocorre no Peru, Equador e Bolívia, ao passo que os mais endinheirados se refugiam em clínicas particulares. O caso extremo é Jair Bolsonaro no Brasil, cujo governo alcançou o clímax necropolítico, justificando sua inação, qualificando a doença como uma “gripezinha”.
A necropolítica diferencia entre vidas defendidas e vidas descartáveis. Isto ficou evidente com os programas de vacinação, que continuam sendo insuficientes em quase todos os países, o que faz com que as grandes maiorias sigam tão indefesas como no ano passado. Mas as poucas vacinas que obtidas ficaram marcadas pelos escândalos de serem administradas aos privilegiados no poder. São as vacinas VIP, como na Argentina, Peru e Equador, que mostram que há eleitos que merecem ser salvos antes do que outros.
A necropolítica também deixa a Natureza morrer. Persistem os impactos ambientais em toda a região, sem que sejam interrompidos, e essa incapacidade agora é justificada invocando a crise pela pandemia. O exemplo mais recente é o desmatamento na Bacia Amazônica, que voltou a aumentar em todos os países, alcançando os 2,3 milhões de hectares (as maiores perdas ocorreram no Brasil e Bolívia). Todos os países, sem exceção, lançaram-se em aprofundar os extrativismos para enfrentar o retrocesso econômico, e com isso estão se somando mais danos ambientais.
É próprio da necropolítica as grandes escalas. Isto é evidente nos números dos atingidos. Por exemplo, na América do Sul, somam mais de 22 milhões de casos e morreram mais de 600.00 pessoas. Os piores registros estão no Brasil, com mais de 350.000 mortos, mas essas consequências são igualmente graves em países como Colômbia (mais de 66.000 mortos), Argentina (mais de 58.000) e Peru (mais de 55.000).
Em proporção à população, o saldo mais grave se dá no Brasil e Peru. Tudo isto sem deixar de reconhecer que o impacto é certamente mais grave, dado que não foram solucionadas dificuldades de registro e monitoramento. A marcha da pandemia não se atenuou e, ao contrário, vários países submergem em uma nova onda de contágios.
Os atores políticos, sejam em governos como nos partidos, não conseguiram gerir adequadamente a pandemia. Esta incapacidade ocorre com governos de visões ideológicas muito diversas. Tampouco se restringe a eles, pois os grupos políticos que estão na oposição repetem os mesmos males. Essa incapacidade se repete em países como Colômbia e Chile, ou como na Argentina e Venezuela. Seja governo ou oposição, cada um oferece todos os tipos de justificativas e perdem mais tempo em recriminações cruzadas do que em conseguir acordos nacionais para garantir soluções concretas.
Entretanto, há populações inteiras que estão sendo dizimadas pela pandemia. Estamos nos aproximando da situação onde esse deixar morrer da necropolítica resultará em um genocídio dos povos indígenas no Brasil, e sem desconhecer a gravíssima situação que se vive em países vizinhos, como Peru, Bolívia e Colômbia.
Essa abordagem mostra que está em marcha uma modificação substancial da política que conhecemos, própria da modernidade, e que se formalizou a partir de meados do século XIX, com tudo o que possa ter de bom e de ruim. Está sendo substituída por uma necropolítica que discute a administração da morte.
As tensões nessa guinada são observadas inclusive no Uruguai, o país que conseguiu conter a pandemia por quase um ano, mas que agora sofre uma grave onda de contágios. Neste país, não foram aplicadas restrições, nem quarentenas ao estilo da Argentina e do Chile, já que se invocou a defesa das liberdades pessoais. Esse discurso, repleto de reminiscências do liberalismo europeu do século XIX, serviu para que o governo de Luis Lacalle Pou pudesse impor a ideia que se alguém se contagia é por sua própria culpa ou de alguém próximo que não seguiu as indicações de biossegurança.
Esta é outra posição manifestamente necropolítica: “se você fica doente, a culpa é sua culpa e não minha”, diz o Estado. O governo diz que atua somando mais e mais leitos de tratamento intensivo, em uma corrida contra o vírus que nunca poderá vencer. Mas, ao mesmo tempo, essa mesma narrativa serve para ele como desculpa, para negar auxílios econômicos significativos aos setores populares mais afetados e persistir em seus projetos extrativistas.
É que no Uruguai, assim como em outros países, a necropolítica deixa as pessoas morrerem para manter, viva e saudável, uma forma de economia. Isso repetidamente passa despercebido porque a atenção está concentrada na ausência de leitos ou oxigênio, ou em vacinas que nunca chegam. No entanto, a necropolítica opera para preservar uma economia que descansa na apropriação em massa de recursos naturais para exportar, na desigualdade na riqueza, no apego ao risco país e na fobia em financiar a assistência social.
Isso explica que mesmo no início da pandemia, quando em 2020 os casos se intensificavam, foram feitas exceções para que setores como o mineiro continuassem funcionando. Protegia-se essas empresas, mas não os seus trabalhadores. Do mesmo modo, na realidade, os policiais e militares não estão salvaguardando as pessoas, mas protegem tal tipo de economia.
Este interesse já não se esconde. Foi assim que o jornal El Comercio, no último dia 9 de abril, intitulou que “a economia peruana resiste ao impacto da segunda onda”, e acrescentou que os “indicadores de fevereiro e março melhoram até mesmo em relação a 2019”. Os ministros da economia seguem contabilizando as exportações de recursos naturais, ainda que não se sabe se as mortes por covid têm uma expressão econômica em suas planilhas de cálculo ou não as afetam por serem gratuitas.
Seguindo esses caminhos, a necropolítica abandona o mandato da justiça social para substitui-lo por ações de caridade e clemência. Dinamita-se a concepção da justiça como uma questão com múltiplas dimensões para superar a pobreza e desigualdade, e que se institui em um mandato para a prática política. Em seu lugar, aplica-se a caridade, onde os que estão no poder, os sobreviventes, podem oferecer caridade e esmola a esses mortos vivos, para aqueles que são potencialmente descartáveis e não sabem se seguirão vivos no dia de amanhã. Esta é a utopia dos neoliberais.