Declaração de 9 de junho do Burô Executivo da IV Internacional - Não têm precedentes o alcance e a magnitude do que se tornou um protesto mundial e um levante de massas contra o racismo e a brutalidade policial, na sequência do assassinato do trabalhador negro George Floyd pela polícia em Minneapolis, Minnesota, nos EUA. Estas mobilizações são marcadas pela participação maciça e multirracial dos jovens num movimento inter-geracional. Foram também, em muitos casos, as primeiras mobilizações em países que saíram do distanciamento social e conseguiram impor a presença popular nas ruas.
Os protestos diários em todos os Estados Unidos continuam há mais de duas semanas nas cidades grandes e pequenas. O carácter multirracial, largamente descentralizado e espontâneo da maioria dos protestos, alguns dos quais têm lugar em múltiplas partes das cidades ao mesmo tempo, são os sinais inequívocos de um autêntico movimento social de massas. Muitos dos manifestantes estão desempregados. Muitos serão arrastados para protestos devido à limitação dos seguros-desemprego e outras lutas sociais nos próximos tempos.
Tem havido uma repressão policial generalizada dos protestos anti-racistas, incluindo a utilização de produtos químicos perigosos, spray de gás de pimenta, agressões não provocadas contra manifestantes pacíficos, toque de recolher e detenções em massa.
Os protestos que têm lugar fora dos EUA, da Europa à Austrália, do Japão à África, do México ao Brasil, combinaram protestos contra o assassinato de Floyd, solidariedade com os protestos anti-racistas nos EUA e protestos contra a brutalidade da polícia local e contra as populações de maioria negra como no Brasil, os povos indígenas, como na Austrália, as minorias étnicas e religiosas e os migrantes. Manifestantes de todo o mundo gritaram e levaram cartazes proclamando "Black Lives Matter", ao lado de nomes de pessoas negras ou não-brancas mortas pela polícia local - como Adama Traoré na França em 2016 e vários outros casos na Grã-Bretanha - de forma semelhante a George Floyd. Exige-se a remoção de símbolos de opressão racista e imperialista, como estátuas do rei belga Leopoldo II, que explorou criminosamente o Congo como um espaço capitalista privado, ou estátuas de traficantes de escravos na Grã-Bretanha, um dos centros do comércio transatlântico de pessoas escravizadas, ecoam exigências de remoção de estátuas confederadas e bandeiras do Sul (pró-escravatura).
Crise da legitimidade capitalista
O fracasso dos governos capitalistas - sobretudo na Grã-Bretanha, Brasil e EUA - em responder adequadamente à crise da Covid-19, as ondas de desemprego em massa que expulsaram milhões de trabalhadores e que afetam as populações racializadas e imigrantes de forma muito mais violenta, juntamente com os protestos em massa que, após duas semanas de mobilizações diárias, estão ganhando ímpeto, colocaram momentaneamente na defensiva os governos capitalistas, que se esforçam por fazer o capitalismo voltar a seu "normal".
Nos Estados Unidos, a rebelião já provocou divisões na grande burguesia e nos seus representantes políticos. Há sinais de crise do regime e do próprio governo Trump, uma vez que oficiais militares de topo e o próprio secretário da Defesa de Trump - e os quatro ex-presidentes vivos, incluindo George W. Bush - repudiaram abertamente a ameaça de Trump de usar a força militar contra os manifestantes multirraciais, em grande parte jovens, a que ele chama "bandidos" e "terroristas".
O fato de que esta divisão impediu até agora a repressão brutal e de que a bandeira do desfinanciamento/desmilitarização da polícia esteja ganhando novos adeptos representam as primeiras vitórias parciais na luta. O momento também tem os seus perigos. Os tweets da lei e da ordem do Trump encorajaram grupos nacionalistas brancos, alguns dos quais tentaram se misturar a protestos anti-racistas exibindo de forma camuflada símbolos racistas e armas. Governos de extrema-direita e autoritários no Brasil, Filipinas, Índia e outros países estão se valendo da situação para reforçar medidas antiterroristas e repressivas que terão um impacto desproporcional nas comunidades negras, migrantes e indígenas. Há muito que as comunidades migrantes na Europa são aterrorizadas por grupos de extrema-direita como o Golden Dawn na Grécia, e a crise econômica vai exacerbar os ataques racistas e antimigratórios.
Um levante de massas
O assassinato de Floyd, de fato, foi a gota d'água num copo já ponto de transbordar, resultando no magnífico levante global - resultado de uma articulação de fatores: uma série de assassinatos policiais contra a população negra, mas também os efeitos de uma pandemia que resultou em mortes de negras e negros em proporção duas a três vezes maior que a média da população.. e a crise econômica, que também prejudicou desproporcionadamente aos trabalhadores negros e outras minorias étnicas.
O protesto em massa nas ruas e a necessidade permanente de um distanciamento físico, numa altura em que as comunidades não brancas, migrantes e marginalizadas são particularmente vulneráveis à pandemia, é uma das grandes contradições deste período. As comunidades negras, apoiadas por jovens e trabalhadores brancos, estão indo às ruas porque consideram mais urgente acabar com o racismo, a violência repressiva e os governos neo-fascistas do que respeitar medidas impossíveis de implementar nas suas casas, em condições de falta de rendimento e de emprego.
A vontade de lutar e a coragem perante os opressores são resultantes da tensão acumulada por décadas de violência racista no mundo - que inclui os assassinatos de negros por polícias, os ataques antissemitas assassinos, o terror anti-muçulmano e o genocídio dos povos indígenas. Tudo isso se combinou com o desemprego maciço causado pela depressão e pela pandemia que atingiu os não-brancos da classe trabalhadora muito mais duramente.
As ligações feitas pelos manifestantes entre o assassinato de Floyd e a violência policial racista local em todo o mundo são profundas. O tratamento dos povos indígenas colonizados internamente aos EUA, Canadá, Austrália, África do Sul e América Latina e das comunidades de pessoas de cor migrantes nas metrópoles imperialistas da Europa refletem séculos de dominação colonial e imperialista do norte global sobre países e povos do sul, que foram centrais para o capitalismo. Desde a pilhagem das minas de prata de Potosí, por colonos espanhóis no século XVI (que se tornou parte da acumulação que sustentou o desenvolvimento capitalista europeu) à escravização europeia de milhões de africanos, até a brutal partição e colonização de África no século XIX e a atual dominação neo-imperialista dos povos do Sul, demonstram que esses povos pagam há séculos o preço para a expansão do capitalismo.
Algumas das piores atrocidades cometidas contra seres humanos nas últimas décadas foram perpetradas contra minorias étnicas e religiosas. As minorias étnicas e os grupos raciais socialmente constituídos enfrentaram repressão em todo o mundo, desde a limpeza étnica na antiga Iugoslávia e em Ruanda, nos anos 90, até à atual repressão das minorias muçulmanas na China e na Índia, ao tratamento dado aos palestinos em Israel e nos territórios ocupados.
O antirracismo deles e o nosso
Os políticos burgueses reformistas estão fazendo de tudo par ase manter relevantes e canalizar a energia do movimento para os veios seguros das audiências governamentais, comissões e reformas cosméticas, limitando-se a remover símbolos do tráfico de escravos e implantando mudanças nas práticas policiais.
Uma onda de empresas multinacionais, muitas das quais estão na lista das 500 mais poderosas da revista Forbes, estão agora declarando aos gritos seu antirracismo, fazendo anúncios dispendiosos e prometendo doações, além de juras que vão rever os manuais das empresas. Estas são as mesmas empresas que implementam práticas racistas e sexistas de contratação, e resistiram às reformas durante anos. Muitas obtiveram enormes lucros à custa de trabalhadores negros.
Não há uma voz representante do levante entre os partidos políticos tradicionais. A falta de liderança política nos EUA é particularmente grave. O domínio do duopólio capitalista dos Democratas e Republicanos sobre a política dos EUA significou que a energia nas ruas não encontra uma expressão política à escala nacional. Durante as primárias democratas, o senador Bernie Sanders gerou um enorme entusiasmo e um apoio generalizado, especialmente entre os jovens, ao seu programa de reformas social-democratas, ao estilo do New Deal.
Mas a campanha de Sanders terminou porque se impuseram os interesses corporativos da máquina do Partido Democrata. Assim, os protestos antirracistas nas ruas criando um vazio, uma lacuna à esquerda. A transformação da social-democracia europeia em instrumento de execução e gestão do neoliberalismo, de um lado, e o colapso eleitoral dos PCs deixaram semelhante lacuna na esquerda europeia. Essa ausência de alternativas de esquerda de massas apresenta tanto desafios como oportunidades para ligar as exigências antirracistas e anticapitalistas.
Um tempo de oportunidade
A revolta global contra o racismo e a repressão policial tem um enorme potencial para o futuro das novas gerações, que estão começando nem todos os âmbitos da luta trabalhadora, que se erguem nas luta contra as alterações climáticas, na resistência feminista, e que estão ser provando no enfrentamento direto com as forças policial-militares da democracia burguesa, sublinhando a necessidade de organizar a autodefesa do movimento durante as manifestações e outros eventos públicos, bem como a necessidade de construir um movimento contínuo baseado na auto-organização democrática.
De momento, o movimento de protesto expressa raiva e muitas vezes exigências de mudança radicais mas sem uma estratégia política nítida. Isto reflete a novidade do movimento, a inexperiência dos manifestantes, mas também a falência de muitas lideranças políticas reformista estabelecidas. No contexto dos EUA, a exigência de "desfinanciar/desmilitarizar a polícia" e mesmo "desmantelar a polícia" encontrou um amplo eco popular e tem um potencial considerável como uma exigência transitória anticapitalista. Há um repúdio generalizado da AFL-CIO por ainda incluir sindicatos policiais racistas e de extrema-direita. Outras exigências estão sendo formuladas à medida que o movimento avança em diferentes países: contra a violência policial contra as populações negras, indígenas e de minorias étnicas; contra a criminalização do protesto; contra o racismo institucional e a perpetuação dos símbolos coloniais e pró-escravatura; e por ações afirmativas de reparação, em prol de justiça social e econômica que corrija a desigualdade histórica.
Hoje é possível levantar a bandeira da solidariedade internacional da classe trabalhadora de uma forma e com uma audiência que não vemos há décadas e explicar como disse Malcolm X: "Não se pode haver capitalismo sem racismo". A luta contra o racismo é intrínseca à luta contra o capitalismo, e que este movimento tem um potencial considerável para crescer e convergir com o sindicalismo combativo, com as mulheres e os movimentos anti-capitalistas em todo o mundo para impor o caminho para uma sociedade nova e justa.
Por todas estas razões, a Quarta Internacional compromete-se a lutar ao lado das mulheres e dos homens que hoje se insurgem nesta revolta antirracista e anti-neofascista. As lutas contra a violência estatal e o racismo institucional sob o capitalismo só podem ter consequências coerentes se enfrentarmos as suas implicações. Estamos todos em guerra contra o sistema que destrói o planeta, que discrimina os seres humanos por gênero, raça, orientação sexual e identidade, o sistema que nos explora em nome da sobrevivência das corporações, cujo único objetivo é o aumento permanente do lucro, em detrimento das nossas vidas e dos nossos corpos.
Burô Executivo da Quarta Internacional
9 de Junho de 2020