Bruna Stefanni Soares, Lucas Batal, Nadja Carvalho e Natasha Karenina pela Coordenação Nacional do Quilombo Insurgente.
Em meio aos desafios e dificuldades impostas pela expansão da pandemia de Covid-19 no Brasil, as comunidades periféricas e territórios negros têm sido os maiores impactados com as restrições de recursos básicos, desemprego e falta de acesso a aparelhos de saúde com qualidade, além dos diversos fatores de vulnerabilidades históricos enfrentados por essas populações há séculos em nosso país.
Apesar disso, várias organizações, ativistas e entidades buscam através da mobilização de redes de solidariedades autônomas e criativas alcançar o maior número de moradores em situação de necessidade, é o que o Movimento Negro Unificado junto de outros grupos como o Movimenta Caxias e o Sindisprev têm realizado desde o início de março, conforme nos conta LENINHA SOUZA, militante do MNU, em entrevista à rádio durante prestação de contas.
Através do alcance de cerca de mil famílias, Leninha relata o foco das políticas de solidariedade e assistência pensadas a partir das realidades das mulheres negras, em especial as mais idosas, o que de fato é fundamental e urgente quando falamos de um país que de acordo com IBGE possui 63% dos lares chefiados por mulheres negras abaixo da linha da pobreza. “Pra nós, pra mim, que vivo esse movimento - e não só agora, na questão da pandemia - é muito doído. Porque, quando a gente entrega uma cesta, entrega um kit de limpeza, entrega uma caixa com a questão do hortifruti (...) e a gente vê as nossas negras idosas olhar aquele arroz e feijão e ver que aquilo é o que vai botar na mesa, isso dói muito pra nós. Mas nós estamos ali à todo momento, construindo esse debate, construindo essa ação. Estamos também com o projeto Crioula, que é o projeto de mulheres. Estamos atendendo as mulheres negras. Na verdade, não estamos só atendendo as mulheres negras não. Estamos atendendo à todas as mulheres, mas com foco nas mulheres negras”, afirma a militante.
Com coragem e criatividade, o campo de unidade do MNU, além de promover a distribuição de cestas básicas, kits de higiene e ajudado no recebimento do auxílio emergencial de milhares de pessoas, também tem fortalecido a campanha pelo isolamento social. Além disso, o Movimento tem demandado das autoridades locais e representantes que possam cooperar mais incisivamente com políticas públicas e ações para preservar a vida e integridade física dos moradores, ao invés de estarem focando em agendas meramente eleitorais e político-partidárias.
Também é importante destacar que tais redes de solidariedade se orientam pela promoção da dignidade e respeito mútuo a todos e todas que necessitam de ajuda, conforme nos diz Leninha. “Nós estamos trabalhando na questão mesmo da humanização, da solidariedade. Então, estou com oito terreiros, que a gente está atendendo. A companheira Mara, a companheira Ângela, a companheira Lia, estamos atendendo aos terreiros, estamos atendendo às igrejas, estamos atendendo à Igreja Católica”. Em tempos difíceis como esses, demonstrar por ações práticas o amor e humanidade e combater a intolerância e o racismo religioso são ferramentas essenciais para o fortalecimento de comunidades e suas sobrevivências.
Adotarmos uma solidariedade revolucionária e radical, como nos diria Angela Davis, envolve necessariamente conhecer e aprender também com as ações locais de enfrentamento à ordem imposta, e assim conectá-las às ações nacionais e ações globais. Carolina Maria de Jesus, uma das nossas maiores escritoras dizia que “o Brasil precisa ser dirigido por alguém que já passou fome”, assim, construir uma agenda combativa de resistência a crise atual passará obrigatoriamente pela organização popular dos de baixo a partir das agências periféricas, feministas, antirracistas e LGBTs que desde já pulsam pela vida e contra a miséria.
Confira a entrevista concedida à Ana Maria Leone de Jesus - militante negra em Caxias, do programa “Antenada na Ativa” na Rádio Ativa 98,7FM no dia 16 de maio deste ano.
Lenyr Claudino de Souza, a LENINHA, é a nossa griotte, aquela que guarda as histórias e tradições do povo preto, os métodos da militância negra, popular e da resistência nas favelas. É moradora e militante da favela da Vila Operária em Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Mulher preta de favela (como ela mesma se define), é militante do movimento negro e sindical desde muito nova, atuante tanto na institucionalidade quanto na base, pensando políticas públicas e em redes de solidariedade, mecanismos de resistência ancestrais do povo negro no Brasil.
Hoje atua como Diretora da secretaria de gênero, raça e etnia do Sindsprev-RJ; Presidenta do Conselho da Mulher de Duque de Caxias; membra da Executiva do Fórum de mulheres de Duque de Caxias; membra da Executiva do Fórum Estadual de mulheres negras; militante do Fórum de diálogos de mulheres negras do Estado do Rio de Janeiro; Coordenadora Nacional de Comunicação do Movimento Negro Unificado, no qual milita há mais de 30 anos. Leninha é memória viva das lutas do povo preto e na entrevista à Rádio, concedida dia 16/05/2020, nos passa algumas dessas lembranças e lições:
Ana: … e agora a gente vai tá ligando pra Lenir Claudino. Leninha, tá na linha? Vinte minutinhos. Tá não? Então, a gente tá aqui tentando ver se a gente consegue falar com a Leninha. Se a gente não conseguir falar com a Leninha agora, a gente pode tá vendo se a gente consegue falar com o Wesley, do Movimenta Caxias. E aí, agora, conseguiu falar com ela. A gente vai conseguir falar agora com a Leninha, que a Leninha também tá nessa campanha aqui em Caxias fazendo um trabalho maravilhoso, também, pra poder ajudar a população nesse momento. Bom dia, Leninha!
Leninha: Ana, cê tá me ouvindo bem?
Ana: Tô, tô te ouvindo bem. Bom dia.
Leninha: Bom dia, Ana. Saudação quilombola!
Ana: Igualmente, saudades! A gente tá perto e tá longe.
Leninha: Ahn?
Ana: Nós estamos perto e estamos longe ao mesmo tempo.
Leninha: Pois é. Perto porque nos falamos todos os dias, longe porque não consegue se abraçar.
Ana: Exatamente. Leninha, então, esse programa aqui hoje que a gente elaborou pras entidades fazerem suas prestações de contas. Você tá aí com um trabalho na Vila Operária, que tá bombando, graças a Deus! Têm conseguido levar alimentos pra mesa de muitas famílias que estão necessitadas. Fala um pouquinho aí, faz seus agradecimentos aos seus colaboradores, sua prestação de contas. A gente tem vinte minutinhos, tá?
Leninha: Vou dividir num tempo bom. Primeiro eu quero agradecer à rádio em nome do Movimento Negro Unificado. Em nome do Campo de Unidades do MNU, que é um organização de um setor interno do movimento, onde compõe duas organizações, que é a ANLU e o Segure e Lance. Esse agradecimento é por essa oportunidade que a gente tem de, nessa guerra, poder ser um dos soldados pela vida nessa guerra.
Então, como é vinte minutos e eu falo mais que a preta do leite, não quero extrapolar o tempo, então eu vou já iniciar dizendo que um grupo nosso. Nós, militantes do MNU, tomamos para nós a tarefa de cerrarmos fileiras pela vida na questão do corona. E iniciamos, lá atrás, no dia 07 (de abril), quando se começou a organizar a questão do auxílio. Tem um grupo nosso que está aqui, que depois eu vou citar alguns nomes, mas a gente conseguiu no dia 07 ajudar um número bem expressivo de pessoas, de jovens, de pessoas pra fazer o seu cadastramento, a questão de receber os R$600,00. Isso foi muito importante, porque a gente, desde as seis horas da manhã, na hora que disse “pode se inscrever”, a gente tava com grupo, com telefone, computador, e a gente conseguiu fazer as inscrições.
Dentro desse grande grupo que a gente conseguiu fazer, a nossa resposta não é na totalidade negativa, porque muitos de nós conseguimos receber - muitos deles, nós, que somos profissionais, não temos direito - conseguiram receber, já vão receber a segunda parcela. E, aí, pegando a fala da minha filha Nil, a gente também entrou nesse processo de regulamentação da vida da população, na questão do CPF, muitos não tem registro. Muitos não tinham identidade. E a gente começou a fazer esse trabalho e tá dando certo. A gente tá encaminhando, a gente começou a procurar nossos amigos lá na Ação Social. As pessoas estão sendo encaminhadas e estão resolvendo. Então, essa é uma das primeiras prestação de contas que o Campo de Unidade do MNU quer fazer através da rádio, que a gente vem fazendo.
A partir disso aí, todo mundo sabe que eu sou um pouco teimosa. “Teimosinha”, como dizem os meus netos e os meus filhos. Eu me determinei que, pela minha condição de saúde, eu não tinha condições de entrar nesse front dessa guerra do corona. Mas eu não me mando. Eu sou guiada por um Deus vivo, né? E esse Deus vivo disse pra mim assim “faça, que eu vou te dizer como vai fazer”. E começou a aparecer as parcerias. As pessoas nos procurarem pela necessidade da fome. É o que nós vivemos hoje. A questão da alimentação. E nós começamos a participar de algumas. Começaram a nos procurar. E um dos espaços que nos procurou foi o Movimenta.
(...) Eu me determinei que, pela minha condição de saúde, eu não tinha condições de entrar nesse front dessa guerra do corona. Mas eu não me mando. Eu sou guiada por um Deus vivo, né? E esse Deus vivo disse pra mim assim “faça, que eu vou te dizer como vai fazer”. E começou a aparecer as parcerias. As pessoas nos procurarem pela necessidade da fome. É o que nós vivemos hoje. A questão da alimentação. E nós começamos a participar de algumas. Começaram a nos procurar. (...)
O Movimenta é uma organização imensa, que tem uma juventude, pessoas de Caxias. E eles começaram a construir esse processo da questão da cesta. Aí nós, nosso segundo parceiro é, quem deveria ser, que tinha responsabilidade, é o MNU. E o nosso terceiro parceiro é o Sindisprev. Então, o Campo de Unidade tá tendo essas três parcerias, no sentido de levar a questão do alimento até a casa. E aí, pra nós, pra mim, que vivo esse movimento - e não só agora, na questão da pandemia - é muito doído. Porque, quando a gente entrega uma cesta, entrega um kit de limpeza, entrega uma caixa com a questão do hortifruti, como a Nil colocou, e a gente vê as nossas negras idosas olhar aquele arroz e feijão e ver que aquilo é o que vai botar na mesa, isso dói muito pra nós. Mas nós estamos ali à todo momento, construindo esse debate, construindo essa ação.
(...) quando a gente entrega uma cesta, entrega um kit de limpeza, entrega uma caixa com a questão do hortifruti, como a Nil colocou, e a gente vê as nossas negras idosas olhar aquele arroz e feijão e ver que aquilo é o que vai botar na mesa, isso dói muito pra nós. Mas nós estamos ali à todo momento, construindo esse debate, construindo essa ação.
Estamos também com o projeto Crioula, que é o projeto de mulheres. Estamos atendendo as mulheres negras. Na verdade, não estamos só atendendo as mulheres negras não. Estamos atendendo à todas as mulheres, mas com foco nas mulheres negras. Estamos.
Pra nós, nossa prestação de contas é uma coisa tão ampla, que a nossa primeira entrega, que foi no dia 10 de Março, nós entregamos pra cento e vinte famílias. A segunda foi no dia 24 do mês passado, em que nós entregamos pra quatrocentas famílias. Dia 19 vamos estar entregando pra seiscentas famílias. Já tem uma marcação.
Nós somos aqui um núcleo, que nós chamamos “núcleo duro”, na Vila Operária, mas nós não estamos trabalhando só com a Vila Operária. Estamos trabalhando com Penha, a favela da Penha, do Turano. Estamos trabalhando com as companheiras de Petrópolis, estamos trabalhando com a Associação de Moradores de Madureira, estamos trabalhando com a nossa companheira de Irajá. E, também, estamos fazendo essa ação de distribuição fora tudo mais em Duque de Caxias, Pilar, estamos trabalhando com São Gonçalo.
Essa ramificação, essa rede que a gente tá construindo, ela não está pautada. Nós estamos trabalhando na questão mesmo da humanização, da solidariedade. Então, estou com oito terreiros, que a gente está atendendo. A companheira Mara, a companheira Ângela, a companheira Lia, estamos atendendo aos terreiros, estamos atendendo às igrejas, estamos atendendo à Igreja Católica. O nosso trabalho é um trabalho de humanização. É um trabalho que nós estamos fazendo essa solidariedade. O que nós estamos fazendo, o pouco que nós estamos recebendo, nós estamos fazendo essa solidariedade. E aí nós estamos fazendo uma coisa muito importante, que todos que falaram foi importante. A questão da organização. A prestação de contas e organização.
Então, estamos aqui com uma equipe todos os dias, onde todas as pessoas são cadastradas, todas as entregas são filmadas, onde todas pessoas que passam por aqui assinam na hora que recebe. Porque nós precisamos disso. Nós precisamos, além de nós levarmos as condições mínimas - porque o que nós estamos fazendo é mínimo - para a população, nós precisamos, também, estar organizados.
(...) O nosso trabalho é um trabalho de humanização. É um trabalho que nós estamos fazendo essa solidariedade. O que nós estamos fazendo, o pouco que nós estamos recebendo, nós estamos fazendo essa solidariedade. E aí nós estamos fazendo uma coisa muito importante, que todos que falaram foi importante. A questão da organização. (...)
Então, hoje, o Campo de Unidade do MNU já está num raio de mais de mil pessoas sendo atendidas. Esses atendimentos, essa reflexão, essa fala que nós estamos fazendo, a fala de que o nosso município hoje está fazendo com a gente. Caxias não está fechada. Caxias está disseminando o vírus mais e mais e mais. Os nossos governantes, como nosso prefeito, ele não está tendo a responsabilidade de fechar o município. Nós estamos perdendo muita gente. E a gente fica, assim. Eu, pelo menos, fico com o coração muito doído porque o corona chegou nas favelas. O corona chegou no nosso povo de baixa renda. Aqui nós perdemos a pastora que tinha perto da minha casa. Lá em cima, na Vila Operária, nós perdemos o companheiro da barraca rosa. A professora que mora aqui… Então, tá muito próximo. Por isso é que nós estamos dizendo.
Nós estamos pedindo para que os governantes tomem posição. Nós temos vinte e nove vereadores que não se posicionam, vinte e nove vereadores que não fiscalizam as leis do governo municipal. O prefeito vai e faz uma postagem pra dizer que Duque de Caxias é um queijo. Só que esse queijo, nós estamos com cento e vinte mortos. Pessoas que foram atingidas. Então, nós, enquanto organização, enquanto cidadãos, nós temos que ir dizer “fique em casa”. E não é só ficar em casa porque tem que ficar não. É porque, além de nós nos protegermos da contaminação, nós também estamos deixando de contaminar outros. E existe essa necessidade urgente neste momento.
Então, pra nós, assim, a gente tá fazendo esse debate em todos os lugares que nós estamos. Esse momento não é momento de processo eleitoral, não é processo de posição político-partidária, esse momento é momento de olharmos pras nossas vidas. E este momento não é momento de nós nos escondermos porque estamos dentro de instituições governamentais. Nós precisamos fazer isso, Ana. Nós precisamos dizer que os nossos profissionais estão morrendo. Que não tem o EPI. Nós estamos dizendo que a gente não tem condições. E isso é porque, como você colocou na abertura, e foi muito emocionante - me emocionou muito - quando você disse “eu não quero ver alguém da minha família ir à óbito pelo corona e não quero que alguém da sua família também vá”. Então, pra isso, nós precisamos fazer isso.
Nós também estamos lá com o projeto Crioula, que é muito importante também pra nós. Então, essa prestação de contas aqui é muito importante. Muito importante todos que estão ouvindo a rádio saber que o MNU - Movimento Negro Unificado, sua organização interna, que é, somos nós, estamos aqui prestando contas e falando quem são os nossos parceiros e o que nós estamos fazendo. Então, tá aberto, a gente tá aqui, tem gente de tudo quanto é lugar. Nós estamos trabalhando com as pessoas nos locais, porque eu posso conhecer meia dúzia de pessoas que está passando por essa necessidade. Mas você, lá em São João, conhece outra meia dúzia. Você, lá em Nova Iguaçu, conhece outra meia dúzia. E é dessa forma, dessa rede, que nós estamos trabalhando.
Não sei se já passei dos meus vinte minutos, mas quero continuar agradecendo à você por essa oportunidade, ao Roberto, e dizer pra todas as pessoas que possam ser parceiros da rádio, que possam contribuir com a rádio, porque esta é a rádio que está voltada para a população pobre. Esta é a rádio que leva aos ouvintes as condições e os debates reais no dia-a-dia. Então, muito obrigado. Obrigado à todos. Parabenizar à todos. Muito carinho, muito beijo na minha filha Nil. Te amo. Cada vez que eu ouço você falar, eu fico mais emocionada. E fico dizendo que Deus continue te protegendo e protegendo à todas nós. Não é somente a minha filha, mas protegendo à todas nossas. Que ele possa estar à frente de nossas lutas. Obrigada.
Então, tá aberto, a gente tá aqui, tem gente de tudo quanto é lugar.