As condições que garantiram ao Ocidente, por décadas, preços baixos, crescimento e estabilidade política estão se degradando rapidamente. Agora, o mundo caminha para um perigoso e desestabilizado novo regime.
Nouriel Roubini, Project Syndicate / Outras palavras, 9 de agosto de 2022. Tradução de Antonio Martins
A economia mundial está passando por uma grande mudança de regime. A Grande Moderação, que durou décadas, terminou. Iniciada após a estagflação (alta inflação combinada com recessões severas) dos anos 1970 e início dos 80, a Grande Moderação caracterizou-se por inflação baixa nas economias avançadas; crescimento econômico relativamente estável e robusto, com recessões curtas e pouco profundas; taxas de juros positivas, devido à queda da inflação e alta acelerada de ativos de risco, como ações das empresas norte-americanas e globais.
Este período prolongado de inflação baixa é normalmente explicado pela adoção, pelos bancos centrais de políticas de metas inflacionárias, após as políticas monetárias mais frouxas dos anos 1970 e a adesão dos governos a políticas fiscais conservadoras (que permitiam estímulos à economia apenas durante as recessões. Porém, muito mais importantes que as estas políticas [de controle da demanda por produtos e serviços] foram os muitos choques de ampliação da oferta, que elevaram o potencial de crescimento e reduziram os custos de produção – pressionando, assim, os preços para baixo.
No período de hiperglobalização pós-Guerra Fria, a China, a Rússia e outros economias de mercado emergentes integraram-se mais à economia global, abastecendo-a com bens, serviços, energia e matérias-primas a baixo custo. A migração em larga escala do Sul Global para o Norte ajudou o comprimir os salários nas economias centrais. As inovações tecnológicas reduziram os custos de produção de muitos bens e serviços e uma relativa estabilidade geopolítica permitiu que as corporações deslocassem a produção para países de menor custo sem se preocupar com a segurança dos investimentos.
Mas esta Grande Moderação começou a entrar em colapso durante a crise financeira global de 2008 e, mais tarde, com a recessão da covid-19, em 2020. Em ambos os casos, a inflação permaneceu inicialmente baixa, devido a choques de demanda [redução do consumo]. Além disso, políticas monetárias, fiscais e de crédito generosas impediram que os países entrassem em deflação. Mas agora a inflação voltou, avançando rapidamente, em especial a partir do ano passado, devido a um mix de fatores de demanda e oferta.
No lado da oferta, as revoltas contra a hiperglobalização ganham impulso, criando oportunidades para políticos populistas, protecionistas ou nativistas. A ira da opinião pública contra desigualdades rígidas de renda e riqueza também cresce, o que conduz a mais políticas em favor dos trabalhadores e dos que foram deixados para trás. Embora bem intencionadas, elas contribuem, nas condições atuais, para uma espiral perigosa de inflação de preços e salários.
Além disso, a volta do protecionismo (tanto de esquerda quanto de direita) restringiu o comércio e os movimentos do capital. As tensões políticas (tanto dentro dos países quanto entre eles) estão levando a um processo de reshoring [volta das corporações a seus países de origem] e friend-shoring [deslocamento de fábricas para países “amigos”]. A resistência política à imigração reduziu o movimento global de pessoas, o que resultou em mais pressão para a alto dos salários. Considerações de segurança nacional e estratégicas restringiram os fluxos de tecnologia, de dados e de informação. E novos padrões de trabalho e meio ambiente, que podem ser muito importantes, estão dificultando o comércio e novas construções.
Esta balcanização da economia global é profundamente estagflacionária e coincide com o envelhecimento das populações, não apenas em países desenvolvidos, mas também em grandes economias emergentes como a China. Como as pessoas mais jovens tendem a produzir e economizar, enquanto as mais velhas gastam suas economias, esta tendência também é estagflacionária.
O mesmo ocorre com as atuais transformações geopolíticas. A guerra da Rússia na Ucrânia e a resposta dos governos ocidentais a ela, perturbaram o comércio de energia, alimentos, fertilizantes, metais industriais e outras commodities. O desacoplamento entre o Ocidente e a China está se acelerando em todas as dimensões do comércio (bens, serviços, capitais, trabalho, tecnologias, dados e informações). Outros rivais estratégicos do Ocidente podem em breve ampliar o desgaste. Israel, ou mesmo os EUA, podem atacar o Irã, se considerarem que Teerã ultrapassou “limites” nucleares – o que desencadearia um grande choque de petróleo. A Coreia do Norte continua a brandir de tempos em tempos sua espada nuclear.
Como o dólar passou a ser usado plenamente pelos EUA como arma para objetivos de segurança nacional, sua posição como principal moeda de reserva global pode começar a declinar. Um dólar mais fraco irá obviamente ampliar as pressões inflacionárias. Um sistema mundial de comércio sem entraves exigem um sistema financeiro internacional não conflitivo. Mas as vastas sanções primárias e secundárias impostas pelos EUA jogaram areia na máquina, ampliando de modo brutal o custo das transações no comércio.
Para coroar tudo isso, as mudanças climáticas também são estagflacionárias. Secas, ondas de calor, furacões e outros desastres estão transtornando as atividades econômicas e ameaçando as colheiras (elevando, em consequência, os preços da comida0. Ao mesmo tempo, as exigências de descarbonização levaram a subinvestimento em extração de combustíveis fósseis, antes que os investimentos em fontes limpas atingissem o ponto em que podem fazer diferença. Grandes picos dos preços de energia tornaram-se inevitáveis.
As pandemias serão também uma ameaça persistente, impulsionando ainda mais as políticas protecionistas à medida em que os países buscarem estocar comida, remédios e outros bens essenciais. Depois de dois anos e meio de covid 19, temos agora a varíola do macaco. E devido à invasão humana de ecossistemas frágeis e ao derretimento do permafrost siberiano, podemos em breve enfrentar vírus e bactérias perigosos, que foram mantidos à distância por milênios.
Por fim, as guerras cibernéticas continuam a ser uma ameaça subestimada à atividade econômica e à segurança pública. As empresas e governos enfrentarão ou maiores distúrbios à produção, ou terão de dispender fortunas em cibersegurança. Em qualquer um dos casos, os custos crescerão.
No lado da demanda, políticas monetárias, fiscais e de crédito não convencionais já não são um ruído, mas uma característica do novo regime. Entre os volumes crescentes de dívida pública e privada (em relação aos PIBs) e as enormes obrigações dos sistemas de saúde e seguridade social, tanto o setor público quanto o privado enfrentam riscos financeiros crescentes. Os bancos centrais estão, em consequência, presos numa “armadilha de dívida”. Qualquer tentativa de “normalizar” as políticas monetárias [ou seja, elevar os juros e restringir e emissão de moeda e dívida] aumentará abruptamente o peso das dívidas, provocando grandes falências, crises financeiros em cascata e quedas desastrosas na economia real.
Com os governos incapazes de reduzir seu alto endividamento e déficits por meio da redução dos gastos ou do aumento das receitas, os Estados que podem tomar empréstimos em sua própria moeda irão recorrer cada vez mais ao “imposto inflacionário”, ou seja, esperar que aumentos imprevistos de preços depreciem as obrigações de longo prazo, que pagam juros fixos.
Por isso, como nos anos 1970, choque de abastecimento persistentes e repetidos vão se combinar com políticas monetárias, fiscais e de crédito frouxas para produzir estagflação. Além disso, endividamentos altos criarão condições para crises estagflacionárias de dívida. Durante a Grande Estagflação, ambos os componentes de todo portfólio tradicional de ativos – papéis de longo prazo e ações corporativas – sofrerão, o que poderá potencialmente provocar perdas maciças.