Para autor de 'A rebeldia passou a ser de direita?', vertente soube captar frustrações das classes populares, em meio a esgotamento da esquerda.
Janaína Figueiredo entrevista Pablo Stefanoni, O Globo, 7 de novembro de 2021
O historiador, jornalista e escritor argentino Pablo Stefanoni lançou neste ano um livro que busca responder a uma pergunta provocadora: "A rebeldia passou a ser de direita?". Hoje vivendo em Madri, Stefanoni segue estudando um movimento que, diz, age "num terreno fértil para forças mais obscuras num momento em que grandes setores da população vivem uma onda de pessimismo".
Que diferenças o senhor vê entre a direita latino-americana e a europeia?
Acho que todas pertencem a um movimento antiprogressista, e por isso pontes entre elas acabam sendo construídas. Em alguns aspectos, são parecidas, em outros não. Mas todas têm aversão ao progressismo e são parte de uma guerra cultural, não apenas política. Cada uma dessas direitas foi construída com características próprias. Alguns de seus líderes são outsiders, como é o caso do candidato a deputado Javier Milei na Argentina. Outros, como José Antonio Kast, no Chile, têm uma raiz histórica forte, no caso o pinochetismo.
Milei é uma espécie de anarquista, que atrai muito os jovens. Sempre falou mais de economia, mas quando entrou na política adotou discursos dessa direita global, de Bolsonaro, Trump, começou a falar contra o comunismo, a questionar as mudanças climáticas, dizer que era uma invenção do socialismo. Na América Latina, diferentemente da Europa, as direitas têm alguns elementos característicos, entre eles seu vínculo, ou não, com ditaduras. Também a questão da existência, no passado, de movimentos subversivos em seus países. Onde houve guerrilhas, as direitas são mais duras.
Muitos têm uma posição rigorosa contra a imigração...
Kast, diferentemente de Milei, tem um discurso de ordem, que chega num momento de crise no Chile. O candidato diz que o Chile não acordou, como dizem movimentos de esquerda, e sim que está vivendo um pesadelo. O apoio a Kast é uma reação de um setor da população chilena, num país que está atravessando um processo de mudanças ainda muito incerto. Como parte desse discurso de ordem, Kast fala contra a imigração, tentando se aproximar dos chilenos que se sentem ameaçados do ponto de vista econômico e de sua segurança pelos imigrantes.
Já Milei é diferente. Como ele busca votos em bairros populares de Buenos Aires, onde vivem muitos imigrantes, é cuidadoso com o que diz. Em 2017, disse que o problema não era a imigração, e sim o Estado de bem-estar. Eu diria que Milei tem várias diferenças em relação a Kast e outros. Ele se diz parte de uma tradição anarcocapitalista. Sobre o casamento gay, ele diz ser contra todo casamento, porque é contra a ingerência do Estado na vida das pessoas. Milei também é crítico quando fala de militares e forças de segurança: ele fala em forças repressivas do Estado. Já Kast, Bolsonaro e a direita colombiana são mais claros em suas posições, prometem ordem. Milei ainda é de uma tribo urbana, de jovens libertários, que apareceram num momento de muita zanga da sociedade argentina.
Mas ambos são parte de um movimento global?
Sim, são parte desse antiprogressismo cultural, que também vemos na Hungria, na Polônia, na Espanha com o Vox. Mas entre todos existem diferenças. Alguns são mais religiosos, outros defendem um Estado laico.
A bandeira da liberdade é usada por todos?
Sim, esta bandeira da liberdade se fortalece com a pandemia. Historicamente, as direitas usaram a bandeira da liberdade para se opor ao comunismo. Com a pandemia, a liberdade ganhou outros significados, como oposição às restrições de circulação impostas pelos Estados. Em Madri, por exemplo, o Partido Popular venceu com esse discurso. É um libertarismo pandêmico, um espaço no qual as direitas podem crescer, impulsionadas por teorias da conspiração. Todas compartilham um discurso sobre a suposta ditadura do progressismo, que controlaria o mundo. Todas reativaram um discurso anticomunista que parece absurdo, mas é cada vez mais usado. O dilema, para elas, é entre comunismo e liberdade. Existe, ainda, uma obsessão com o Foro de São Paulo, que era apenas um foro usado para vincular movimentos de esquerda no continente, e hoje praticamente não existe