A derrota da direita golpista na Bolívia, com a recuperação do governo pelo Movimento al Socialismo (MAS-IPSP), e o resultado do plebiscito no Chile, uma semana depois, representam um ponto de inflexão no tabuleiro da correlação de forças política continental – fatos aos quais devemos somar as recentes mobilizações democráticas anti-Duque na Colômbia. Este cenário, no qual as massas dão respostas concretas – nas ruas e nas urnas – ao crescimento da direita, seria tremendamente favorecido no caso de uma derrota de Trump nos Estados Unidos, tonando-se central para a luta de classes num período de avanço das resistências.
Vitória eleitoral contra a extrema-direita
A repressão e a violência políticas promovidas pelo governo golpista e racista de Jeanine Áñez, que subiu ao poder após a crise política gerada nas eleições presidenciais de 2019, não impediram o desempenho contundente do MAS, levando Lucho Arce, ex- ministro da Economia, e David Choquehuanca, ex-ministro de Relações Exteriores e dirigente camponês de muito prestígio, a vencerem já no primeiro turno, com mais de 55% dos votos. Carlos Mesa, ex-presidente neoliberal derrubado por protestos populares em 2005, obteve 28%, enquanto o representante da extrema-direita anti-indígena e separatista de Santa Cruz (lado oriental do país, com fronteira com o Brasil), Luis Fernando Camacho, chegou à 14%.
A manutenção das eleições em 18 de outubro, depois de um adiamento delas pelo governo ilegítimo, foram resultado direto de um levante popular fortíssimo, entre agosto e setembro últimos, contra mais uma tentativa e Añez de adiar o pleito. Assim, a vitória do MAS com larga vantagem no primeiro turno se explica, do ponto de vista mais imediato, pela recuperação, pelo partido, dos votos que vinha perdendo desde 2016, tanto entre sua base histórica como em setores médios urbanos. Desta vez, esses setores voltaram a votar no MAS, em protesto contra o governo golpista, corrupto e incompetente no trato com a pandemia. Em 10 meses, o governo Añez fez aprofundar a crise econômica, reprimiu organizações sociais (foram quase 100 militantes do MAS presos por sedição e terrorismo) e assassinou manifestantes (como nos massacres de Senkata e Socaba).
Profundamente racista, o governo Añez questionou o caráter plurinacional do estado boliviano e atacou seus símbolos, como a Wiphala (bandeira da diversidade e unidade dos povo originários, que foi queimada pelo General Murillo, militar e segundo homem do governo). Chocou-se não só com as aspirações democráticas da classe trabalhadora e de setores médios (estes principalmente do Altiplano, lado ocidental do país, fronteira com Chile e Argentina), como mostrou estar disposto a fazer retroceder uma das maiores conquistas, senão a maior conquista, dos anos de governo do MAS: o reconhecimento e incentivo à autoafirmação cultural e política, com representação institucional, das dezenas de etnias autóctonas que constituem o povo boliviano.
Mas houve também um terceiro elemento importantíssimo: a renovação política, representada por Luís Arce e David Choquehuanca, entusiasmou novamente as bases do MAS e desinibiu setores médios para voltar a votar na esquerda. É grande o desgaste do ex-presidente Evo Morales, que foi o pivô da crise e golpe de 2019, devido uma combinação de crise econômica (desde 2014) com o descontentamento popular frente à manobra que perpetrou, ao desconhecer o resultado do plebiscito de 2016 (que disse não à sua terceira tentativa de reeleição), e recorrer à Justiça para impor sua (re)candidatura.
Diante desse quadro, em 2019, o que se desenhava como uma vitória apertada de Evo deu margem à intervenção da OEA (com os governos Trump e Bolsonaro por detrás), que levantou a acusação de fraude, até hoje sem comprovação. O questionamento da lisura do processo eleitoral abriu a porteira para motins policiais, mobilizações capitaneadas pela direita e o pedido das FFAA para Evo que renunciasse. Evo renunciou, no que foi seguido pelo vice, Álvaro Garcia Linera, e pela jovem presidenta do Senado, Adriana Salvatierra. O vazio de poder permitiu a posse de Áñez (então segunda-vice presidente do Senado) em uma seção parlamentar sem quórum, configurando um golpe institucional-policial-militar.
A situação dentro do MAS
Depois do exílio de Evo, Linera e seus assessores mais próximos (oito dos quais se encontram até agora na Embaixada do México em La Paz), uma nova geração do MAS assumiu o protagonismo no enfrentamento ao governo de fato. Camaradas como Eva Copa (atual presidente do Senado e futura prefeita de El Alto), Andrónico Rodríguez (31 anos, vice-presidente da federação cocaleira de Cochabamba, a mesma de Evo), o agora falecido Orlando Gutiérrez (presidente da FSTMB, federação de mineiros[i]) e mesmo Adriana Salvatierra são alguns dos nomes centrais desta renovação vivida no MAS. O próprio Lucho Arce, que foi ministro da economia de Morales, e Choquehuanca, nome das organizações sociais na chapa presidencial e distante do ex-presidente (havia “caído para cima”, ao ser nomeado secretário-geral da Alba), fizeram uma campanha sem a utilização da imagem de Evo e hoje assumem uma postura pública bastante independente perante o antigo líder do MAS.
A isso se somam os processos jurídicos contra Evo, a maior parte inventos reacionários do governo golpista, mas entre os quais se encontra uma denúncia de pedofilia (o “caso Noemi”[ii]). Isto voltará à tona em caso de uma volta do ex-presidente de seu exílio. A postura de Evo na apuração dos votos no dia das eleições – denunciando fraude nas redes sociais, como se o MAS não estivesse à frente, enquanto Arce negociava a transição perante uma vitória irrefutável – demonstrou um descolamento do ex-líder da realidade boliviana e mesmo da direção do MAS.
O tema do retorno de Evo, que não foi instantâneo justamente pelos motivos citados acima, com certeza será um elemento de instabilidade para o novo governo. Arce tem dito em seguidas entrevistas que Evo será muito bem-vindo ao país mas que não será parte do governo – chegando a insinuar, em forma muito andina, que seria muito bom que Evo “voltasse às bases”. Quanto aos exilados na Embaixada do México, Arce responde que devem ser liberados para fazer o que gostariam, que era ir para o México... Entre os alojados na Embaixada mexicana se encontra Juan Ramón Quintana, terceira figura nos governo de Evo e homem-forte da ligação com Cuba e Maduro.
A peculiaridade do processo boliviano
O MAS é um partido de massas com características bastante peculiares, de partido-movimento. Organizado enquanto um Instrumento Político para a Soberania dos Povos (daí a sigla MAS-IPSP), suas instâncias (com exceção de direções nacional e departamentais) são as mesmas dos movimentos indígena, camponês, cocaleiro, sindical, barrial (juntas de vizinhos), de vendedores ambulantes, pequenos comerciantes, profissionais liberais e de juventude. Seu funcionamento é bastante distinto do de outros partidos políticos. As diferenças internas se expressam mais por meio das posições das organizações sociais e seus parlamentares eleitos do que a tendências formais, como ocorre em partidos como o PSOL.
Por outro lado, a esquerda boliviana fora do MAS demonstra pouca viabilidade política e organizativa, tendo fracassado o projeto do Partido dos Trabalhadores lançado pela COB em 2013. Grupos menores, em geral, cometeram o enorme erro de desconhecer o golpe de 2019 mesmo com o protagonismo da direita durante a crise. A posição esquerdista compartilhada pela esquerda off e anti-MAS no país levou à sua desmoralização, restringindo estes setores hoje à grupos de propaganda ou a expressões sindicais bastante minoritárias.
Desafios e incógnitas
A etapa ou período político que se abre agora na Bolívia (Arce e Choquehuanca devem assumir no dia 8 de novembro) é repleta de desafios e incógnitas. O primeiro desafio é o enfrentamento do fim do ciclo gasífero e a transição ao desejado (pelo MAS) novo ciclo de crescimento baseado na exploração do lítio. A Bolívia possui 40% das reservas mundiais do produto – todas localizadas na região andina, mas o golpe interrompeu a negociação de joint-ventures com a Alemanha e a China para duas usinas de transformação com transferência de tecnologia. (As direitas exigem a concessão da exploração, de preferência com participação de corporações dos EUA, sem associação do estado).
Diante da crise fiscal, não há de fato nenhuma propensão do novo governo a questionar o problema da dívida pública. Arce fala em imposto sobre os superricos, o que tem uma simbologia bastante progressiva mas, na proporção pretendida, não resolve o drama das contas públicas. Os novos governantes não fazem menção à possibilidade de desvalorização da moeda (mantida em cambio fixo desde 2006), porque seria uma faísca para nova explosão social.
Ou seja, com tamanhos problemas e sem os 2/3 do parlamento, Arce-Choquehuanca enfrentarão, de um lado, uma forte pressão da burguesia por concessões ao modelo neoliberal, e, de outro, não menos forte pressão das bases do MAS para manutenção do valor do salário mínimo (US$ 326,4), contra privatizações e pela soberania sobre as reservas de lítio. O grande drama do projeto masista é sua limitação nacional-desenvolvimentista, consubstanciada na utopia reacionária de “capitalismo andino”, sustentado pelo extrativismo depretadório, teorizada por García Linera. O período que se abre, com novos dirigentes à frente do “procsso de cambio”, deverá abrir margem para o questionamento tanto a não ruptura com os mercados financeiros quanto a insistência no extrativismo depredador.
A solidariedade do PSOL
A importância dos observadores internacionais nas eleições demonstrou que a ação externa é importante para a classe trabalhadora boliviana em sua luta contra uma extrema-direita que foi derrotada, mas não está vencida. Para provar isso, é importante lembrar que Camacho venceu na província de Santa Cruz, que possui uma burguesia latifundiária, do agribussiness de soja e cana, com histórico separatista e cujo “comitê cívico” possui um braço paramilitar com traços fortemente fascistas (a União Juvenil Cruceñista). Da mesma forma, apesar de ter maioria no novo parlamento, o governo do MAS não conquistou dois terços nem do Senado nem da Assembleia Plurinacional (Câmara de Deputados), fazendo com que questões importantes (como a responsabilização pelos assassinatos políticos durante o governo golpista) não possam ser aprovadas sem apoio de parte da direita.
Nossa tarefa política prioritária deve ser o acompanhamento da situação política boliviana, de forma institucional, colaborando com os esforços democráticos no país e combatendo futuras ameaças de ruptura institucional operadas pela extrema-direita. Além disso, é fundamental apoiar a Associação de Familiares dos Mortos e Feridos do Massacre de Senkata (EL Alto, La Paz) para construir uma campanha internacional sobre este tema. A campanha “Justiça Para as Vítimas do Massacre de Senkata!”, assim como a campanha que deve exigir a investigação sobre os culpados do assassinato de Orlando Gutiérrez, deem ser impulsionadas nas próximas semanas, com o recolhimento de assinaturas de apoio e a realização de atividades virtuais que culminarão com o ato político pelo aniversário de um ano do massacre. É imprescindível que o PSOL incorpore esta campanha como parte da solidariedade ativa ao processo de luta que se desenvolve no país e se fortalece bastante após o resultado eleitoral positivo.
[i] Orlando, jovem e promissor dirigente mineiro, trabalhador da mina de Colquiri, voltou a La Paz na noite do dia das eleições (havia ido votar em seu distrito no interior). Naquela noite, foi agredido seriamente por um grupo de direitistas, que o obrigaaram a uma hospitalização. Embora estivesse melhorando, morreu no dia 29/10/2020.
[ii] Noemi é a namorada de 19 anos de Evo Morales. A acusação é de que a relação começou antes de que ela completasse 18 anos.
Os autores viajaram à Bolívia em delegação do PSOL para acompanhar as eleições do dia 18/10.