Após ter ficado a 1,2% da segunda volta das presidenciais, Mélenchon transformou a derrota numa dinâmica de unidade à esquerda. E agora é mesmo ele quem desafia o presidente eleito nas legislativas que se avizinham. Mas a unidade não é um slogan e os seus caminhos são complexos.
A 10 de abril passado, o clima à esquerda era bem diferente e um número parecia impor-se cruamente: 1,2%. Esta tinha sido a diferença de votos entre Jean-Luc Mélenchon e Marine Le Pen na primeira volta das presidenciais francesas. Com o extremo-centro ultra-liberal de Macron a hegemonizar o campo político mainstream e com a candidata da extrema-direita a posar como a pseudo-alternativa que serve para continuar a servir os interesses dos mais poderosos, este número poderia ter sido o balde de água fria que marcaria o fracasso da esquerda nos grandes palcos da política francesa na nova conjuntura. Nem vitórias no voto jovem nem resultados promissores em cidades e bairros populares se mostravam capazes de mudar este cenário.
Só que o candidato da França Insubmissa transformou a derrota numa dinâmica de unidade à esquerda. E agora é mesmo ele quem desafia o presidente eleito nas legislativas que se avizinham.
Para além da capacidade retórica de Mélenchon, que imediatamente se apresentou como “candidato a primeiro-ministro” e lançou o desafio da coligação eleitoral, várias razões determinaram o sucesso desta aproximação entre França Insubmissa, PS, PC e os Verdes. A primeira das quais foi obviamente o instinto de sobrevivência e a possibilidade de queda na irrelevância de alguns destes partidos históricos na sequência do resultado das presidenciais que concentrou os votos da esquerda em Mélenchon. A lógica das presidenciais não se traduz diretamente nas legislativas mas seria difícil que qualquer uma das outras forças políticas recuperasse significativamente. E, lançado o repto da unidade, quem ficasse de fora poderia pagar o preço dessa “divisão” que enfraqueceria a possibilidade de uma alternativa ao liberalismo e à extrema-direita.
A segunda razão, intimamente ligada com esta, pode encontrar-se no próprio sistema político francês. Para o parlamento, elege-se num sistema uninominal maioritário a duas voltas. O que se traduz concretamente numa primeira volta em que, para ser eleito, um candidato terá de ter maioria absoluta e pelo menos um quarto dos votos dos eleitores inscritos. Se isto não se verificar, à segunda volta passam os candidatos que tenham obtido pelo menos 12,5% dos votos de todos os inscritos ou, se não houver pelo menos dois candidatos nessas condições, passam os dois que tenham obtido mais votos na primeira volta. Um sistema deste tipo tende a afunilar a capacidade de partidos mais pequenos elegerem, tirando aqueles que tenham os seus bastiões regionais, e a data das eleições aproximava-se implacavelmente.
A terceira razão conjuga-se com as duas anteriores e encontra-se obviamente na necessidade de afirmação da esquerda face a Macron, que a partir de dentro do social-liberalismo desfez o PS, mas especialmente face à extrema-direita. Marine Le Pen voltou a subir eleitoralmente, escalou mais um degrau na normalização do seu projeto político e marcou posição junto de muitos dos descontentes da política dominante. Zemmour ficou à margem mas ganhou ainda mais espaço mediático, pretendendo fazer valer os galões da verdadeira extrema-direita contra a que estaria “domesticada”. E há uma marcada viragem à direita ultraconservadora do conjunto do espetro político francês de que foi sinal o discurso da candidatura da “direita tradicional” de Valérie Pécresse. A subida da extrema-direita, como noutras paragens, arrastou direita e “centro” para os seus temas. Assim, a unidade de esquerda, para além de estratégia de sobrevivência particular de cada grupo, pareceria como a melhor forma de a esquerda continuar à tona e estar ao nível das exigências do estado de emergência antifascista.
Uma quarta razão poder-se-ia procurar na história que demonstra a possibilidade de processos unitários de esquerda chegarem ao governo. Aconteceu várias vezes com resultados e balanços diferentes. Desde a Frente Popular de 1936, celebrada por ter introduzido as férias pagas, as 40 horas de trabalho semanais e os contratos coletivos de trabalho. Até às Uniões de Esquerda dos anos 1970 e que resultaram, entre 1981 e 1984, no primeiro período da presidência de François Mitterrand, antes da “viragem do rigor” ter marcado o fim da experiência unitária, na aplicação de um programa de nacionalizações, um impostos sobre as fortunas, aumento do salário mínimo, reforma aos 60 anos, 39 horas de trabalho semanais, abolição da pena de morte, entre outras medidas. Já entre 1997 e 2002, o governo da “esquerda plural” do primeiro-ministro Lionel Jospin juntará Verdes, PCF, Movimento Radical de Esquerda e Movimento dos Cidadãos, e reduzirá o horário de trabalho para as 35 horas (cedendo em troca numa “anualização do tempo de trabalho), generalizará a cobertura de saúde e introduzirá o pacto civil entre pessoas do mesmo sexo (não consagrando o direito ao casamento). Ao mesmo tempo, por outro lado, iniciará uma série de privatizações e a reforma da educação de Claude Allègre atacará os direitos dos professores. Havia assim, apesar dos balanços críticos feitos sobre estas experiências, também uma tradição e uma mitologia de “governos de esquerda” propícia a novas convergências. Sobretudo o imaginário criado à volta da Frente Popular, que permanece potente e mobilizador.
Quem entra
A unidade não se faz só de história, de boa vontade para derrotar os adversários políticos partilhados, ou de slogans. Nem os partidos se somam necessariamente como parcelas. Para chegar a este ponto foi preciso deixar para trás as críticas duras das presidenciais ou engolir outras como a de que Mélenchon se tinha apropriado da ideia histórica de União Popular como se fora sua para fins eleitorais. Foi preciso negociar ao pormenor lugares elegíveis e não elegíveis e encontrar pontes programáticas. O que se fez com uma rapidez talvez surpreendente mas que não deixa de dar a impressão de que foi sobretudo um colocar entre parênteses das divergências maiores.
A saída do nuclear, contestada pelo Partido Comunista Francês, a “desobediência” às regras da União Europeia, que PS e Verdes queriam mitigar, e a revogação das leis de trabalho da presidência de Hollande estavam entre os principais obstáculos. Acordos assinados entre as partes, continuam as diferentes visões sobre estes temas. A saída da energia nuclear faz parte do acordo assinado entre Verdes e França Insubmissa mas não é referida no acordo com o PCF. Os comunistas terão ficado com autonomia para defender a sua posição mas estarão em minoria neste campo. A referência à desobediência às regras da União Europeia foi limada para que Verdes e PS a tragassem, mas a posição face a Bruxelas continua a separar os parceiros de coligação, apesar da FI ter consagrado explicitamente a ideia de que a aliança não se opõe ao euro e à pertença à União Europeia. Os Verdes conseguiram a vitória simbólica de alterar o nome da aliança para um com menos bagagem histórica: Nova União Popular Ecológica e Social (NUPES). E o PS acabou por subscrever a oposição às leis de trabalho do seu anterior governo, mas o acordo com FI é omisso quanto a nacionalizações, aumento de impostos para os mais ricos, entre outras das medidas sociais detalhadas no programa dos “insubmissos”.
Os recuos programáticos do PS podem não parecer assim significativos e as suas perspetivas eleitorais podem ter aumentado consideravelmente. Mas o processo unitário causou divisões significativas neste partido e várias vozes criticas, incluindo a ex-candidata presidencial e presidente da Câmara de Paris, Anne Hidalgo, e o ex-presidente François Hollande, expressaram claramente a sua oposição. Queixam-se de obliteração do projeto histórico do seu partido e de cedência à “extrema-esquerda” e vários alinham na estigmatização de Mélenchon. Apesar deste ter pertencido ao PS francês durante 32 anos, ter sido senador e ministro ao seu serviço e do seu programa eleitoral estar longe de poder ser considerado como muito mais radical do que o famoso “programa comum” que levou Mitterrand à presidência, mau-grado todos os perigos de comparar propostas de épocas tão diferentes.
Quem fica de fora
Se o PS entrou apesar de num primeiro momento não ter sido sequer convidado, por outro lado o Novo Partido Anticapitalista ficou de fora apesar de ter integrado o leque inicial dos grupos a quem a proposta foi apresentada.
Não há unidade que seja absolutamente elástica e a entrada na aliança de um PS que não cortou abertamente com o social-liberalismo seria sempre problemática para os anticapitalistas, que recordam a experiência presidencial de François Hollande entre 2012 e 2017 com os seus ataques fortes aos direitos dos trabalhadores e pensionistas.
Por outro lado, sentiu-se desconsiderado. O ponto de partida das negociações foi que a proporcionalidade dos resultados nas presidenciais se traduziria no número de candidatos nas legislativas. O PS conseguiu ir muito além disso mas ao NPA foram oferecidos três vezes menos lugares do que aqueles a que teria direito proporcionalmente. Não teria ainda direito a nenhuma candidatura elegível, ficando com “sobras” em círculos em que não tem grande tradição militante.
A conclusão a que o ex-candidato presidencial Philippe Poutou chegou foi a de que “a sua presença não era verdadeiramente desejada” e a proposta apresentada não era séria. O partido decidiu então não aderir à NUPES. Ao mesmo tempo, não se colocou totalmente de fora da dinâmica unitária. Apela ao voto e apoia ativamente exceto quando “confrontado com candidaturas sociais-liberais”, situação em que procurará alternativas.
Quem perde ou sai
O processo rápido de negociação através dos diretórios partidários teve igualmente a consequência de gerar mal estar nos meios associativos populares que apoiaram Mélenchon na primeira volta. Também aqui há candidaturas que se manterão e outras que deixam relutantemente de o ser. O Mediapart(link is external) identificou alguns dos “perdedores” dos acordos nestes movimentos como a ativista local Sanaa Saitouli que viu a sua candidatura preterida oficialmente pela de um deputado que tinha sido eleito nas listas de Macron mas que mudou de campo, o realizador e escritor Mehdi Lallaoui, ou Aly Diouara, do coletivo Seine-Saint-Denis au cœur. Este queixa-se que a NUPES “virou as costas aos bairros populares” depois destes terem sido determinantes para Mélenchon alcançar o terceiro lugar. A rede de ativistas de bairro On s’en Mêle(link is external) alinha pelo mesmo diapasão. Deceção e críticas à instrumentalização das suas lutas são a outra face da festa que se celebrou em Aubervilliers.
Do lado do sindicalismo também houve algumas desilusões. Por exemplo Xavier Mathieu, que se tinha destacado na luta contra a deslocalização da fábrica da Continental de Clairoix e que integrava o parlamento da União Popular, cortou com o movimento por causa do acordo com o PS e por este órgão não ter sido tido nem achado nas negociações.
Isto não significa, contudo, que os movimentos sociais não façam parte da NUPES e que não haja candidaturas simbólicas nesse âmbito. Rachel Kéké, uma das empregadas de hotel que enfrentou o grupo multinacional IBIS, é uma delas. O On s’en Mêle saúda mas ressalva que será candidata numa circunscrição na qual tem poucas hipóteses de eleição. Aurélie Trouvé, ex-porta-voz da Attac, por outro lado, terá mais facilidade em chegar ao parlamento porque se candidata numa círculo em que a FI já tinha eleito.
Próxima paragem: Frente Popular?
Tais divergências e dissidências não fazem mossas importantes à NUPES, agora que se colocou como disputando o governo. O seu futuro imediato estará mais ligado ao veredicto das urnas. Se o difícil desafio da vitória se concretizar, as tensões na aliança serão marcadas por até onde as diferentes forças estarão dispostas a ir na “desobediência” às instituições e acordos europeus e pelo grau de insubmissão aos mandantes do sistema económico e político que os “insubmissos” pretendam imprimir. Se não chegar ao governo, o mais certo será o regresso das rotinas e diferentes agendas a cada um dos grupos parlamentares até que novas eleições ditem outras relações de forças. A não ser que se encontrem novos processos unitários de combate à institucionalização, formas de encontro pela base que ultrapassem as equações partidárias e mobilizações sociais conjuntas.