Clemente Alvarez, El País Brasil, 25 de novembro de 2020
Além da crise ambiental, a mudança climática põe diante da humanidade as suas escandalosas desigualdades. Um novo estudo publicado na revista Global Environmental Change estima que 1% da população do mundo seja responsável por mais da metade das emissões da aviação de passageiros que causam o aquecimento do planeta. Como mostra o pesquisador Stefan Gössling, professor da Escola de Negócios da Universidade Linnaeus (Suécia) e autor principal deste trabalho, enquanto boa parte da humanidade nunca subiu num avião, existe uma pequena proporção de superpoluidores que não param de viajar em voos comerciais ou inclusive têm seus próprios jatos privados.
Para dar um rosto a estes grandes emissores, Gössling chegou a calcular as distâncias percorridas em avião por alguns famosos como Hillary Clinton (1,5 milhão de quilômetros, o equivalente a 38 voltas na Terra, nos quatro anos em que foi secretária de Estado dos EUA), Bill Gates (343.446 km em 2017) e Paris Hilton (275.755 km em 2017). Entretanto, esta não é só uma questão de celebridades, nem se limita unicamente aos voos.
Na verdade, o enorme desequilíbrio na forma de poluir está ligado ao uso que se faz da energia e ao nível de renda. Em um estudo de 2015, os economistas franceses Thomas Piketty e Lucas Chancel já puseram em evidência as enormes diferenças entre os habitantes do planeta quanto às emissões causadoras da mudança climática em geral. Embora se estime que, em média, um africano emita apenas 2 toneladas do CO2 por ano, um europeu quase 8 e um norte-americano chegue a 20, este trabalho observava que há uma parte da população distribuída pelos diferentes continentes que supera com sobra essas quantidades. Especificamente, Piketty e Chancel chamaram a atenção para o 1% das pessoas mais ricas dos Estados Unidos, Luxemburgo, Singapura, Arábia Saudita e Canadá, que superaram as 200 toneladas do CO2 por pessoa/ano. No caso dos EUA, os economistas estimaram que esse 1% corresponde a 3,16 milhões de indivíduos que emitem, cada um, mais de 318 toneladas do CO2 anuais: 2.500 vezes mais que os que menos emitem em Honduras, Moçambique e Ruanda.
“Minha opinião sobre estes grandes emissores é que criamos um sistema que obviamente está fora de controle. As pessoas na Europa emitem muito mais do que é sustentável, mas os superpoluidores aumentaram estes valores em várias ordens de magnitude”, assinala Gössling. “Todo mundo que voa deveria pagar pelo dano que causa em termos de mudança climática, e ajudaria que aqueles que voam mais também paguem mais, mas isto não resolverá o problema”, acrescenta.
De forma global, Piketty e Chancel calcularam que 10% dos habitantes do planeta que mais emitem geram 45% do conjunto das emissões mundiais, enquanto os 50% que menos emitem são responsáveis por apenas 13% das emissões. No caso da aviação, o novo estudo de Gössling aponta que uma das particularidades destes superpoluidores é que se deslocam muito mais que o resto.
A partir dos dados do número de viajantes anteriores à pandemia, o estudo publicado na Global Environmental Change estima que todos os aviões de passageiros que decolaram e aterrissaram em 2018 foram ocupados por não mais de 11% dos habitantes do planeta (845 milhões de pessoas), um percentual que cai para 4% quando se trata de voos internacionais. Depois, considerando as emissões pelo uso do combustível (e outros fatores como o maior espaço exigido na primeira classe), os pesquisadores chegam à conclusão de que menos de 1% da população gera mais de 50% das emissões da aviação de passageiros.
“Inclusive se estivéssemos muito equivocados quanto às nossas estimativas (o que é muito improvável), os resultados dificilmente mudariam. Pelo contrário, se nossos cálculos falham é por serem conservadores”, comenta Gössling. Como explica ele, embora os aviões privados sejam os que representam um maior gasto energético por passageiro, os superpoluidores não são só os donos dos quase 22.295 jatos, 14.241 turboélices e 19.291 helicópteros contabilizados no estudo no mundo, mas também aqueles viajantes que usam de forma frequente os aviões comerciais.
A partir de diferentes pesquisas nacionais nos EUA, Alemanha, Taiwan e Reino Unido, o trabalho do sueco determina que inclusive nos países mais desenvolvidos entre 53% e 65% da população passa mais de um ano sem voar. Entretanto, no lado contrário, há pessoas que fazem um grande número de viagens por ano; o pesquisador diz que em alguns extremos se chega a 300 voos anuais, o que significa voar quase diariamente. “Com estes estudos se vê de forma muito clara que o principal causador da mudança climática não é o excesso de pessoas, o que importa aqui é o nível de renda e o uso que se faz dos recursos”, comenta o cientista ambiental espanhol Andreu Escrivà, autor do livro Y ahora yo qué hago (“E agora, que faço”, que tem como subtítulo “como evitar a culpa climática e passar à ação”). “Isto não só culpa apenas dos super-ricos que vão com seus jatos privados às suas ilhas e têm carrões. Seu impacto é muito maior, mas o modelo de consumo e nossa forma de consumir na Espanha também são insustentáveis”, afirma. Em outro estudo deste mesmo ano, Diana Ivanova, pesquisadora da Universidade de Leeds (Reino Unido), analisa de forma específica as desigualdades dos lares da União Europeia (UE) em relação às emissões de gases do efeito estufa. O trabalho estima que 10% dos indivíduos com um maior rastro de carbono gerem 27% de todas as emissões da UE, e que o 1% dos mais poluidores sejam responsáveis por 6% do total.
Uma das contribuições mais interessantes deste estudo é que identifica quais categorias de consumo são as que geram mais emissões entre os europeus (comida, casa, roupa, viagens...). Assim, fica nítido que uma das principais diferenças dos maiores poluidores com relação aos demais está no seu rastro muito maior relacionado aos carros e aviões. “Estes são alguns dos produtos que parecem ser altamente elásticos, o gasto nestas categorias aumenta drasticamente à medida que as pessoas enriquecem”, comenta Ivanova. A pesquisadora considera necessário atuar sobre o transporte aéreo e o terrestre, mas também adverte, no caso dos carros, para os efeitos que isto poderia acarretar para outra parte da população: “Os deslocamentos de automóvel exigem muita atenção, já que também há lares de renda baixa com uma alta proporção de uso. Este ocorre particularmente quando existe uma forte dependência do automóvel relacionada com a vida rural, a deficiência, a falta de alternativas de transporte…”, salienta.
Pandemia favorece aviação privada
Embora a crise do coronavírus tenha causado dificuldades a muitas companhias aéreas por causa da paralisação dos voos comerciais, Borja Barrilero, diretor-executivo do The Yûgen Group, conta que no seu caso a pandemia está favorecendo o aluguel de aviões privados. “Isso ocorre pela redução das rotas comerciais, mas também porque as pessoas querem viajar de forma segura, sem medo de se contagiarem”, afirma o diretor dessa empresa espanhola especializada no aluguel de aeronaves e embarcações de luxo. Seus clientes mais habituais são esportistas, empresários e famílias, tanto da Espanha como de outros países. Como nota o site da empresa, “todo mundo pode alugar um avião privado, seja para uma viagem de negócios ou uma reunião rápida durante o dia, ou para uma viagem familiar em um destino remoto, ou para chegar a um aeroporto de esqui de difícil acesso”. E a mudança climática, como fica? “O impacto ambiental dos aviões privados não é excessivo”, argumenta Barrilero, salientando a “praticidade” de ir a uma reunião de trabalho em um lugar longínquo e voltar para casa no mesmo dia.