José Manuel Rosendo, meu Mundo minha Aldeia, 15 de dezembro de 2021
A quatro meses das eleições presidenciais francesas, a única certeza é que o presidente eleito não vai ser de esquerda e a única dúvida é a de saber se vai ser da direita clássica ou da extrema-direita. Sim, sabemos que os votos ainda não foram contados, mas se não quisermos esperar por um milagre, podemos desde já fazer uma pergunta: o que foi feito da esquerda?
Presumo que seja uma questão que preocupa a esquerda verdadeiramente comprometida com o bem comum e que defende uma sociedade sem as gritantes e crescentes desigualdades.
O problema não é apenas francês, mas a França, pelo seu passado, é talvez o exemplo que nos obriga a pensar. Porquê em França, a emergência fulgurante de uma extrema-direita que está a derrubar barreiras e uma direita clássica que, com medo de perder votos para essa extrema-direita, adoptou grande parte do discurso e da agenda extremista? Claro que temos ainda uma outra direita, mais moderada, liderada por Emmanuel Macron, que apesar de reivindicar um posicionamento de “ni gauche, ni droite” (nem esquerda, nem direita), alguém fez questão de lhe lembrar que é mais “ni gauche, ni gauche” (nem esquerda, nem esquerda).
É assim que está a França. E a esquerda? Pois, a esquerda perdeu-se por aí, porventura deixando de ser uma verdadeira esquerda. “Para onde foi o povo da esquerda?”, questiona-se o pensador francês Edgar Morin no título do livro que acaba de publicar. E essa pergunta simples faz todo o sentido, porque o povo da esquerda não desapareceu. Mas para algum lado foi e em França foi para a direita. Ou seja, a esquerda falhou!
União impossível
A candidata do PS francês às presidenciais de Abril, Anne Hidalgo, recolhe e 4 a 5% das tendências de voto. Na V República (desde 1959), o PS elegeu dois presidentes: François Mitterrand (a partir de 1981, dois mandatos de 7 anos) e François Hollande (2012-2017); o mesmo PS que já elegeu 280 (em 577) deputados em 2012 tem agora apenas 29, eleitos em 2017. Quanto ao PC francês, longe vão os tempos (1946) em que teve 182 (em 627) deputados. Actualmente, o PC francês tem apenas 11 deputados e está em perda constante desde 1997; o líder e candidato presidencial Fabien Roussel tem 2% de intenções de voto. Depois, a França Insubmissa tem 17 deputados e o candidato presidencial, Jean-Luc Mélenchon recolhe 8 a 10% das tendências de voto; os ecologistas quase foram varridos do parlamento em 2017, mas tiveram uma boa votação para o Parlamento Europeu em 2019 e o candidato (e eurodeputado) à presidência, Yannick Jadot, escolhido através de primárias, anda próximo de 10% das intenções de voto. À esquerda há ainda mais alguns candidatos com origem em pequenos partidos e quase sem expressão nas sondagens.
Anne Hidalgo lançou entretanto um apelo para primárias à esquerda, quando ainda não há muito tempo disse que primárias nem vê-las. Até agora ninguém parece interessado. Cada um a fazer a sua campanha.
O que parece ainda mais interessante é que também a direita e a extrema-direita estão divididas, mas, a fazer fé nas sondagens, é uma divisão que acrescenta votos. À esquerda, a divisão subtrai.
Com o crescimento das forças da direita radical e da extrema-direita noutros países o que será da União Europeia se, eventualmente, tivermos uma maioria de governos com essas características? Queremos uma União Europeia liderada por pessoas como aquelas que a própria União Europeia agora critica e a quem aplica sanções?
Sabemos todos, por muitos exemplos conhecidos, o que significa o poder exercido por gente que destila ódio pelo outro e por tudo o que é diferente. Estamos num momento em que a cartilha já nem sequer é escondida ou disfarçada.
E, afinal, como chegámos aqui?
Dos últimos dias vem um sinal que explica muito do que se passa em termos de ascensão dos populismos e da extrema-direita. O relatório do World Inequality Lab. mostrou o fosso entre países ricos e países pobres – um fosso abismal – em termos de receitas, recursos e contribuição para o aquecimento global. Um fosso que se agravou com a pandemia e que nunca deixou de se agravar nos últimos anos. Todas as promessas de um mundo melhor assente em práticas neoliberais e de crescimento da produção têm falhado. Uma das pessoas que coordenou este estudo é Thomas Piketty e será interessante ler o artigo que assinou este fim de semana no Le Monde. Concretamente em relação à Europa os 10% mais ricos detêm 58% da riqueza, enquanto a metade mais pobre fica apenas com 4%. Escreve Piketty que podemos sempre esperar que o crescimento e as forças de mercado distribuam a riqueza, mas dois séculos depois da revolução industrial, arriscamo-nos a esperar por muito tempo. E acrescenta: “Podemos também dizer que a situação actual é o melhor que se pode fazer e que todas as tentativas para redistribuir património serão economicamente perigosas. O argumento é inconclusivo. Na Europa, a parte detida pelos 10% mais ricos estava entre 80% e 90% do património total até 1914. Em um século reduziu-se para menos de 60% nos nossos dias, principalmente em benefício dos 40% da população situada entre os 10% mais ricos e os 50% mais pobres. Esta classe média do património pode assim adquirir habitação e criar empresas, o que contribuiu fortemente para a prosperidade nos “trente glorieuses” (período de crescimento pós segunda guerra mundial)”. Dito isto por Piketty, não será abusivo extrapolar e afirmar que quanto maior é a redistribuição – e, inevitavelmente, quanto menor é a concentração de riqueza – menores são as desigualdades. Aliás, basta pensarmos que o final dos “trente glorieuses” anda muito perto da chegada ao poder (1979) de Margaret Thatcher, seguida de Ronald Reagan logo em janeiro de 1981. Redução de investimento público, privatização de empresas, Estado mínimo, Economia desregulamentada, o Mercado a funcionar.
Um aviso para levar a sério
É assim que estamos. Mas não é assim que temos de continuar. É preciso que, à esquerda, tudo isto seja bem explicado por quem quiser, de facto, fazer Política colocando o interesse das pessoas mais pobres acima das guerrinhas de poder partidárias. A esquerda não pode ter vergonha de ser esquerda. É preciso separar claramente as águas entre quem defende e quem combate o neoliberalismo. Em França, se nada mudar, a questão das desigualdades e da pobreza não terá grande espaço na campanha eleitoral, mas em Portugal seria muito bom que as diferentes forças políticas agarrassem o tema das desigualdades e nos dissessem o que pretendem fazer para que tenhamos uma sociedade mais justa e equilibrada. Se assim não for arriscamo-nos a ter em Portugal um cenário político à francesa, em que a esquerda praticamente não conta e em que emergem propostas e ideias que julgávamos não ter lugar na Europa do século XXI. O aviso francês deve ser levado a sério!