Agronegócio nunca foi saída à desindustrialização. Setor cresceu 17% na pandemia – e é alardeado como resposta à crise. Mas sua lógica deixa a economia refém dos mercados externos e abre caminho para o avanço da fome.
Marcio Pochmann, Outras Palavras, 17 de maio de 2021
No ano passado, quando o nível de atividade da economia brasileira decresceu 4,1%, o valor bruto da produção agropecuária (VBP) cresceu 17%, o maior da série histórica dos últimos 32 anos. Ao mesmo tempo, para uma inflação de 4,5% (IPCA), o custo interno dos alimentos aos brasileiros foi o que mais subiu, alcançando 14% somente em 2020.
O destaque foi o preço do arroz. O produto que alcançou recorde nas exportações foi acompanhado pelo aumento anual do preço de 76% para o consumidor brasileiro.
Ao combinar a elevação do preço dos alimentos, 3,1 vezes superior à inflação, com a queda real de 6,5% na massa dos rendimentos dos brasileiros em 2020, constatou-se que 55,2% dos domicílios, o equivalente a quase 116 milhões de pessoas, conviveram com algum grau de insegurança alimentar. Em plena pandemia da Covid-19, cerca de 19 milhões de brasileiros passaram fome, contingente equivalente a duas vezes mais que o registrado em 2009 e igual ao de 16 anos atrás.
Na comparação dos últimos seis anos, enquanto a economia acumulou decréscimo de mais de 7%, o chamado agronegócio (produção agrícola, animal e mineral) cresceu de importância. Em 2020, por exemplo, a sua participação relativa no PIB foi estimada em quase 27%, ao passo que em 2014 não alcançava 22% do produto nacional.
Enquanto a produção agrícola cresceu 1,1% e a mineral se manteve estacionada entre os anos de 2014 a 2020, o produto do abate animal aumentou 8,2% no mesmo período de tempo. Em grande medida, nota-se que a produção nacional do agronegócio vem sendo direcionada para o comércio externo.
No período de 2014 a 2020, por exemplo, o saldo na balança comercial do agronegócio cresceu 9,6%. Destacam-se as exportações da proteína animal (carnes bovina, suína e de frango) com crescimento registrado de 23,8%, embora o consumo interno tenha aumentado somente 3,6% no mesmo período de tempo.
Diante disso, o Brasil se consolidava na Divisão Internacional do Trabalho enquanto produtor de commodity primário-exportador, ou seja, matérias-primas que produzidas com baixo valor agregado e em larga escala, podem ser estocadas por certo período de tempo sem perder a qualidade. Com mais de 2/3 da composição do total das exportações brasileiras representadas por commodities minerais e agropecuárias, a produção industrial, de mais valor agregado, se esvai no Brasil, convertido em fazendão do mundo.
A preferência atual das elites brasileiras pelo agronegócio tem valido cada vez mais o passado herdado da condição de colônia portuguesa. A partir da década de 1960, contudo, os produtores e exportadores rurais foram sendo transformados profundamente, com a internalização da mecanização, inovação tecnológica e farto crédito agrícola.
Nos anos 1990, com o ingresso passivo e subordinado do Brasil na globalização neoliberal, os antigos estabelecimentos até então conformados por proprietários latifundiários e organização familiar foram convertidos, em boa medida, no apêndice das cadeias globais de valor. Também identificado por neoextrativismo, países como o Brasil abandonaram a industrialização e passaram a se concentrar na produção e comercialização externa das commodities.
Apesar de responder por somente 1/5 do total do valor das exportações mundiais, as commodities se concentram entre muitos e grandes ofertantes, cujos preços oscilam profundamente nos mercados externos. O contrário ocorre na produção e comércio de produtos manufaturados, responsável por maior valor agregado e contido número de ofertantes no mundo.
Além disso, as grandes corporações transnacionais dominam o agronegócio nos países pelo comércio e produção tecnológica, bem como na oferta generalizada dos insumos (fertilizantes, agrotóxicos, máquinas e equipamentos). Mais recentemente, a uberização da produção mineral e agropecuária pelos grandes negociantes no mundo torna o produtor nacional um mero apêndice na máquina de concentração da renda, riqueza e poder para poucos.
Essa realidade bem conhecida no recorrente passado primário exportador do país permitiu gerar expressões conhecidas por Manuel Bandeira de homem-bicho (livro Obra completa), do homem-caranguejo por Josué de Castro (livro Homens e caranguejos) e do homem-gabiru por Manuel Correia de Andrade (livro Homem-gabiru: catalogação de uma espécie). Resumidamente, o símbolo da miséria de grande parte da população nacional que em meio à riqueza expressa pela vastidão da produção agropecuária e mineral voltada para o atendimento dos negócios nos mercados estrangeiros convive enquanto vítima do nanismo provocado pela desnutrição.
De um lado, persistiria uma minoria orgânica do agronegócio enriquecida e conectada desde fora pela força de fundos financeiros externos e bancos locais, bem como as grandes corporações transnacionais. Sua relação direta com o grande varejo interno tem sido cada vez mais direta, posto que depende das exportações das commodities primárias exportadoras para o financiamento de importações crescentes dos produtos manufaturados e serviços mais qualificados, destruídos internamente pelo receituário neoliberal.
De outro lado, a maioria da sociedade é transformada cada vez mais no mundo inorgânico, sobrante da produção e riqueza primário-exportadora. Por assim dizer, na poesia de Carlos Nejar, o exército de homens malfeitos, tomando forma de rato, de um povo órfão e sedento de conhecimento.