Patrícia Ferreira e Clarice Paulon, Lavra Palavra, 30 de junho de 2020
Começamos escrevendo estas palavras que seguem utilizando o presente. Dias depois, quando voltamos para seguir a escrita, não sabíamos mais qual tempo verbal usar. Estamos em meados de junho e no Brasil, na cidade de São Paulo (e em muitas outras), o momento é de ‘reabertura’ ao mesmo tempo em que a curva de contaminação e morte continua em ascendência. Seguimos assistindo pelas janelas, insistindo no presente.
É como se não houvesse escolha. De repente algumas das vidas são convocadas a uma forma de cuidado e tentativa de preservação que implica não só acatar a recomendação de isolamento físico àqueles que podem assim proceder, como um rearranjo das atividades que foram se configurando como protegidas e mediadas por telas e janelas. Estamos em São Paulo, capital, é junho de 2020, escrevemos estando há 100 dias em isolamento: período a partir do qual, talvez já possamos extrair algumas considerações sobre os modos de vida na coronavida [1]. De uma janela de apartamento no décimo terceiro andar em um bairro da Zona Sul da cidade, é possível ver uma obra que não parou nenhum dos dias, um bar/restaurante que serve a refeição para os trabalhadores e vez ou outra cerveja ao fim do expediente. A cena evidencia, somada à dos trabalhadores que passam a noite recapeando as ruas ao redor do prédio, os porteiros, zeladores, motoristas, funcionários do metrô, de bancos, de supermercados, das farmácias; os garis, os entregadores de delivery e afins, que junto à ‘linha de frente’ da saúde, estão também outros tantos trabalhadores com seus salários e condições de trabalho precários, realizando o que é possível para que aquilo que é considerado necessário continue.
Descrevemos este cenário para dizer que nem todos são afetados do mesmo modo e que seria descabido considerar que se trata de uma realidade compartilhada coletivamente. Tomamos como exemplo paradigmático o acesso à educação em meio a pandemia, colocando ainda mais em evidência diferenças sociais e condições de vida. Portanto, não estamos dizendo de um conjunto de sujeitos sem reconhecer os que desse grupo não participam. Estamos centradas em uma parte de trabalhadores, estudantes, crianças e pessoas que vivenciam a intensidade da digitalização de esferas distintas de suas atividades e convívio – a passagem para o home office, a exigência das ‘teleaulas’, as sessões de análise, as reuniões, consultas, serviços, contatos com familiares, amigos e amores. Fragmentos de nossas clínicas, agora exclusivamente mediadas por um fone conectado ao aparelho celular, somam-se à tudo isso. Escutamos, entre muitas outras coisas, sobre medo, preocupações com o futuro e cansaço, dando contorno ao conjunto jamais fechado do que vai se delineando na coronavida. Queixam e cansam os que estão em casa, queixam e cansam os que estão às ruas.
Byung Chul-Han [2], ao abordar o cansaço na sociedade, faz uma analogia entre vida social atual (agora um tanto desatualizada) e vida selvagem. Han sugere um excesso de estímulos e informações como no “estado selvagem”, em que era preciso, por exemplo, estar atento enquanto comia para não ser devorado, excluindo a possibilidade de mergulho contemplativo. Claro que a aproximação é um tanto forçada, embora facilmente realizável. O que uniria os “cansados da vida pandêmica” talvez caiba nesta ideia de que não há descanso, nem para os que estão circulando, nem para os que estão de modo talvez privilegiado em suas casas. Isso se reflete nas expressões dos corpos, nas falas, nas queixas, nos rostos cansados que encontramos nas reuniões, que visualizamos a partir de nossas telas e janelas. Para aqueles que estão ocupados em manter vivo a si e aos outros, é de fato exaustivo o cuidado e trabalho que tudo isso pede. Assim como é cansativo lidar com o que a interrupção da rotina pode revelar: o despertar ou a manifestação ainda mais pungente de fantasias e sintomas, dando notícias do que é singular. Sim, alguns de nós podemos nos cansar de nós mesmos. E também das notícias ou da realidade política que nos atravessa e provoca sentimentos. Uns preocupados em sobreviver outros com o sobre viver, com a sobrevida, com o que sobra de vida.
Franco Berardi [3] em entrevista recente colocou sobre a expansão da atividade online decorrente do isolamento, questionando se esse excesso levaria a ficarmos assustados com a proximidade quando (e, acrescentamos, se) ela for possível ou se pelo cansaço de trocas virtuais estaremos mais receptivos a ternura. Foi e é em busca de contemplar certa ideia de proximidade que recorreu-se às ferramentas digitais. No entanto, essa ‘necessidade’ imposta subtraiu a ideia de que havia uma escolha e, se antes passeava-se pelas janelas virtuais exercendo a atividade de ver e ser visto, agora o passeio tornou-se imperativo. Entendemos que aqui a angústia entra em cena junto à certa ‘insuficiência’ desse estado dado ao campo da visão ou, ainda, para o que ele não mostra.
O passeio imperativo pelas redes como estratégia de presentificar o outro com o qual nos relacionamos torna categórico que seja a partir desse instrumento – o aparelho celular, o computador – que se legitime uma relação. É necessário que presentifiquemos o outro a partir desse espaço digital, numa espécie de empatia mental, que torna exaustivo relacionar-se, já que toda e qualquer relação se faz a partir de uma imaginarização da presença do outro [4]. Essa imaginarização provoca uma sensação de achatamento da experiência pela ausência do corpo: tempo e espaço se colam em um bloco único. Não é incomum escutarmos pelos nossos fones, que “parece que a quarentena começou há poucas semanas, mas parece que as semanas tem milhares de dias”. Essa sensação temporal, pensamos, ocorre devido a repetição, a não alteração dos espaços, a ausência dos encontros presenciais devido ao isolamento e ao fato de ainda não termos encontrado, em certa medida, legitimidade no espaço digital como um espaço relacional (e não como substituto do presencial).
Anos atrás, Patrícia Ferreira [5] defendeu que um usuário de redes sociais pode ser capturado pelo campo do visível através das imagens dos outros que continuamente se atualizam e, ao mesmo tempo, ele se coloca – dar-se a ver – para os outros a partir de uma imagem alcançada no campo visível do espelho. Entendeu-se, nesta ocasião, que os usuários de redes sociais digitais seriam capturados pela modalidade de gozo escópico, efeito do que a psicanálise nomeia de pulsão escópica, entrelaçado com a contingência social. O argumento sustentou-se na percepção de Freud [6] de que os olhos, além de fonte de visão são fonte de prazer. O psicanalista situou este despertar na curiosidade sexual, indicando prazer em olhar e em se exibir, o par genérico formado por voyeur e exibicionista que coexistem – pois, para ver e para ser visto são necessários ao menos dois em cena.
Quando e, nesta situação, está-se mergulhado no campo do sentido e, com efeito, da idealização – no qual os sujeitos imaginam e se apresentam de acordo com o que Freud e depois Lacan denominam de ‘eu ideal’, aquilo que funciona como suporte de onde o sujeito se vê como visto pelo Outro, algo constituído no estádio do espelho [7]. Do mesmo modo, é a imagem especular que alcançamos dos outros, nesta dimensão narcísica que se encontra em cena. O espelho no qual o sujeito se vê é o Outro e são as respostas desse Outro – enquanto ideal do eu, que dão a forma do eu ideal que se pode ver refletida em imagens que circulam nas redes sociais digitais. Cada um encontra-se na missão de colocar imagem à sua representação, dando seu contorno de corpo e gozando do sentido. Este processo é/foi, em tempos não-pandêmicos, facilmente observável na exposição de momentos capturados, das selfies, fotos de férias, comidas consumidas, objetos adquiridos, livros lidos e exibição de pensamentos. Em tempos pandêmicos, podemos visualizar também de outras formas, como nas imagens que tentam capturar pequenos prazeres diários encontrados no confinamento, no sol que entra timidamente pela janela, na planta que está cultivando, nas saudades que tem sentido, no crepúsculo que marca o tempo, nas práticas de exercício físico registradas, na produção de comidas caseiras, em reflexões sobre este hiato que convoca imagens e palavras – entre tantas outras formas, de modo talvez mais intensificado que antes, dado que a única via de representação para a parte da população em isolamento, torna-se essa.
Pois, com a diminuição da possibilidade de encontros físicos durante o período de ‘quarentena’, intensifica-se de modo imperativo, também por vezes voluntário, este tipo de exposição e, consequentemente, o que disso deriva. Quando trata-se de trabalho, aulas e reuniões que agora se dão a partir de espaços digitalizados identificou-se como efeito, o cansaço: Zoom fatigue [8]. Associado ao excesso de exposição à tela, este “cansaço cerebral” é, em linhas gerais, atribuído a quantidade de estímulos recebidos e a energia despendida para interpretá-los. Algo similar ao que Han havia alertado sobre a necessidade de estar atento o tempo todo, sem muitas chances de distração. A utilização de softwares desse tipo (para encontros de trabalho) estendeu-se também para encontros familiares e de amigos que tentam (re) produzir ou (re)inventar modos de estar junto, de compartilhar. São janelas que marcam a existência dos outros, que permitem que vejamos, que sejamos vistos, que ouçamos e que sejamos ouvidos. Há um movimento espontâneo e consciente disso, na medida em que, neste momento, são quase que exclusivamente as ferramentas que permitem nossas saudosas e faltosas ‘trocas’.
É possível que imagem e palavra tenham ganhado mais espaço numa suplência impulsionada por olhar na estratégia de constituir corpo. Pensamos isso a partir da imagem do buquê invertido [9] que utiliza Lacan para colocar o campo especular e dar-a-ver a constituição de uma imagem virtual. Lembramos que para Lacan, imagem não é associada ao olhar, mas é aquilo que protege o sujeito do olhar. Esta estratégia mascara o que é investido na forma e que não é da ordem da forma, mas de um investimento que irá dar à imagem peso e importância ao sujeito. Isso serve para marcar que há uma espécie de equívoco no especular, pois ele não pode capturar o que lhe causa, isto é, existe algo que fica de fora do campo do visível, velado (e simbolizado por a) e que Lacan diz estar referido ao desejo. Enquanto encantados e de certo modo capturados pelo sentido, tentamos preservar e proteger a imagem especular, manter o engano e, em última instância, escamotear a, a marca da falta.
No entanto, esta estratégia é muito frágil, “tão frágil quanto uma cortina sempre pronta a se reabrir para desmascarar o mistério que o oculta” [10]. Pode-se dizer que pensando em certa lógica da pulsão escópica na esfera digital, ‘ver’ seria uma ação que colocaria nas imagens, informações e também nos outros, uma hipótese de objetos de satisfação visando fazer frente à falta. Assim, o passeio de imagens e palavras nos coloca diante de ‘objetos de gozo’ e somos gentilmente guiados pelo jogo sedutor da Schautrieb, a pulsão escópica: enquanto a imagem traz o aspecto do júbilo ao cegar a castração, o que está como causa no gozo especular, Schaulust, é o olhar (a).
Colette Soler em uma participação em uma live com Antonio Quinet no dia 08 de junho de 2020 considerou que se poderia pensar a morte como significante mestre de nossos dias, uma vez que o comando de sobrevida seria o principal, sustentado especialmente pelo fato de que há muitas mortes em nosso entorno – “grande número de mortes simultâneas nos atinge como algo extremamente terrível”, diz Freud [11]. Contamos os mortos diariamente e tememos matar (pela transmissão do vírus, por exemplo) ou morrer. E, claro, é preciso lembrar que a morte não é só de corpos que deixam de existir, mas também de planos, de rotinas, de encontros e tantas outras possibilidades. Diferentes e variadas mortes que exigem processos de luto. Mas qual seria a relação disso com a estratégia e o cansaço do cenário escópico da pandemia?
Argumentamos que no campo escópico, como dito, a ‘causa’ fica oculta. Ou seja: o que há de anterior encontra-se velado, embora seja o que faz mancha no mundo, ao contrário das imagens e representações que tentam compor a realidade. Lacan [12] usa um exemplo de uma lata de sardinhas que boia na superfície de ondas de uma pescaria para dizer da cisão que existe entre ver e olhar. A latinha não vê, mas revela que olha, ela aparece como mancha, um corpo estranho que denuncia o objeto a no campo escópico. Para Quinet [13], a latinha representa o olhar, manchando o espetáculo narcisista do mundo e isso tem a ver com o real mortífero da pulsão escópica, podendo se manifestar como “ruptura na harmonia do mundo especular, que então se decompõe e o espelho deixa de exercer sua função de véu”. Assim, temos que o estranhamento que pode advir do olhar se relaciona com o furo que ele realiza na imagem especular, na imagem narcísica do estádio do espelho. Por trás das imagens, mascara-se a angústia de castração ou o real da morte.
Pensamos que nesse momento pandêmico as imagens na esfera digital funcionam de modo semelhante ao campo da idolatria no discurso religioso: as imagens não representam, elas são. O sentido não é temporalizado, apresentando-se em pares de opostos: os #tbts [14], imagens capturadas de um passado sem retorno previsto, misturam-se com imagens atuais, selfies de pessoas sozinhas ou com suas companhias de casa, céus e imagens através de janelas ou prints de reuniões no Zoom e outros aplicativos; conflitam-se nas timelines produzindo uma narrativização precária, já que desarticuladas, congeladas no tempo e no espaço, evidenciando a sensação de morbidez, apontando, exatamente, para o significante-mestre de nossa época, tal como enunciado por Soler.
Diante do cenário que vivenciamos temos exercido a árdua tarefa de tentar velar aquilo que o impulsiona. Para a psicanálise não existe representação psíquica para a morte, o que a aloca no campo do real, na impossibilidade de simbolização. Deste modo, ela está fora do jogo das imagens, do campo do visível, mas sua ausência marca uma presença. É por tentarmos livrar e ser livrado do sofrimento e do horror da morte que acatamos a recomendação do isolamento; é pela sombra que ela faz que nossos contatos com as outras pessoas são mais viáveis e menos arriscados se mediados por uma tela; é por tentarmos escapar que estamos impedidos de abraçar e beijar amigos, amores e familiares. É por estarmos realizando esta tarefa difícil e árdua, que se soma ao que nossos cotidianos exigem ainda mais nesses tempos, que estamos fatigados. Cansados do exercício diário de escamotear o olhar da morte.
Patrícia P. Ferreira é psicanalista e pesquisadora de pós-doutorado no IP-USP – Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política. Clarice P. Paulon é psicanalista, pesquisadora de pós-doutorado no IP-USP – Laboratório de Teoria Social Filosofia e Psicanálise, professora e supervisora na residência integrada em saúde da prefeitura de São Paulo.
Notas
[1] Termo que encontramos aqui: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/minha-casa-meu-cenario/?fbclid=IwAR1zpfl4t9FLFmZBbUCl3sJ9YgglJ_BOEXIESHWiugc9cSFF7g8DPV9_R3Q
[2] Han, Byng-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
[3] Berardi, Franco. A pandemia reativou o futuro. Há condições para reformatar a mente social. Publicado em: 02/06/2020, em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-06-02/franco-berardi-a-pandemia-reativou-o-futuro-vejo-condicoes-para-a-reformatacao-igualitaria-da-mente-social.html
[4] Lembremos, como exemplo, do filme Her (2013) no qual o personagem principal, apaixonado pela IA de seu aparelho celular, necessita presentificá-la em um corpo, em determinado momento, encarnando-a em uma mulher escolhida pela IA para assumir seu papel, dando assim alguma presença física a relação. Entretanto, ambos os universos (digital e físico) não são diretamente traduzíveis e a experiência fracassa.
[5] Ferreira-Lemos, Patrícia do Prado. O sujeito e o gozo escópico na sociedade contemporânea conectada. 2014. 197 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.
[6] Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Em: S.Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
[7] Lacan, J. O Estádio do espelho como formador da função do eu (1949). Em: Escritos (1966). RJ: Jorge Zahar, 1998, p. 96-103.
[8] Há diversas pesquisas e matérias sendo divulgadas sobre o tema, todas elas referentes à exaustão associada à exposição em demasia aos estímulos tecnológicos. Como mencionado na reportagem da BBC de 22 de abril de 2020 (https://www.bbc.com/worklife/article/20200421-why-zoom-video-chats-are-so-exhausting) alguns associam à questão da atenção demandada, outros a ação performativa que evoca e, ainda, ao fato de que esferas que antes tinham diferentes limites espaciais encontram-se agora confinados em um mesmo lugar, sem borda, isto é: relações de trabalho, familiares, amorosas e amigáveis têm dinâmica parecida
[9] Lacan, J. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache (1960). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.653-691.
[10] Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, (p.264).
[11] Freud, Sigmund. Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915). Em: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. XIV, 1980.
[12] Lacan, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
[13] Quinet, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise (2002). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p.139.
[14] Sigla para throwback thursday, que simboliza postagens atuais de fotos do passado e marcam saudades.