Carlos de Nicola*
Allí entre los cerros tuve amigos
Que entre bombas de humo eran hermanos
Allí yo tuve más de cuatro cosas
Que siempre he deseado
Allí nuestra canción se hizo pequeña
Entre la multitud desesperada
Un poderoso canto de la tierra
Era quien más cantaba
Santiago de Chile, Silvio Rodríguez
Há quarenta e sete anos, em 11 de setembro de 1973, o Chile amanhecia sob um dos mais brutais golpes militares já vistos na história do subcontinente latino-americano. O governo de três anos da coalizão de esquerda Unidade Popular, no poder desde 1970, comandada pelo presidente da República, Salvador Allende, é derrubado, com o bombardeio do Palácio de la Moneda, sede do Executivo chileno, e a morte do próprio Allende. Seus algozes foram as tropas golpistas do exército lideradas pelo general Augusto Pinochet, seu ministro da Defesa, com respaldo da burguesia e de parte da classe média chilena.
Desde aquele 1973, nessas quase cinco décadas, muito se discutiu, na esquerda mundial, sobre os aprendizados e erros do chamado processo chileno, ou melhor, da "via chilena ao socialismo”. Questiona-se o quanto é viável uma revolução por meio das urnas, qual o papel da conquista das instituições na luta socialista e o quão recuados Allende o Partido Comunista estalinista agiram na fervilhante conjuntura chilena, quando as massas, conforme ecoavam naquela época as gigantescas manifestações de rua, pediam armas e “trabalhadores no poder”.
Aqueles três anos de experiência chilena foram, sem dúvida, plenas de momentos que valem por uma vida inteira, parafraseando Vladimir Lênin (ao discorrer sobre o tempo e os aprendizados da revolução). Houve um avanço enorme na consciência dos trabalhadores chilenos, com a formação dos chamados Cordões Industriais em todo o país, fábricas ocupadas, forçadas à estatização e geridas pelos trabalhadores. Nesse processo, a classe passou de demandas econômicas para demandas políticas de fundo, nomeadamente, acerca da questão da passagem do poder do Estado chileno para a si própria.
A questão mapuche
Ausente à primeira vista estão os indígenas Mapuche, que hoje habitam regiões do Chile e da Argentina. Nos documentários de Guzmán sobre o Chile daqueles tempos, além daquele de Henríquez (1998), ademais os relatos de militantes como Bucchioni (2013a, 2013b, 2013c, 2013d, 2013e, 2013f) e Mermelstein (2019), não há uma imagem, frase ou linha acerca desse povo. Todavia, no programa da Unidade Popular, de 1969 (UNIDAD POPULAR, 1969, p. 23), consta o seguinte trecho, na seção dedicada à Política de Desenvolvimento Econômico:
Defesa da integridade e da ampliação, e assegurar a direção democrática das comunidades indígenas ameaçadas pela usurpação, e que ao povo Mapuche e aos demais povos indígenas lhes seja assegurada terras suficientes e assistência técnica e crédito financeiro apropriado. (tradução nossa)
Todavia, somando-se a esse trecho do programa, há relatos que apontam uma relação diferente, mais positiva, do governo Allende com esses povos. Segundo Morales (2016), nesse período:
[...] ocorreram grandes transformações nas políticas públicas de saúde, nas políticas de desenvolvimento material e cultural da população e na luta do povo Mapuche por sua reparação e redignificação em relação aos danos materiais, culturais e espirituais causados contra ele desde a conquista espanhola e que continuaram com a expansão do Estado chileno. (tradução nossa)
Morales prossegue, pautando que aquelas contradições gerais do governo Allende que apresentamos acima convergiram no empoderamento dos Mapuche. Por exemplo: a questão da recuperação de suas terras, dentro do processo geral de aceleração da Reforma Agrária e da constituição de formas de poder desde a base camponesa e indígena. Nesse caso, o governo Allende chegou a ponto de instituir uma Lei Indígena (MORALES, 2016):
A principal conquista do governo Allende foi a promulgação de uma lei que defendia a comunidade Mapuche do perigo de divisão [...] . A resistência a essa divisão foi a principal reivindicação do movimento mapuche, tanto sob a liderança de Venancio Coñuepán e da Corporação Araucana, quanto sob a liderança de organizações de esquerda: a Frente Única Araucana e, desde 1960, a Federación de Campesinos e Indígena (FCI), vinculada ao PC e ao PS, que seria a Confederação Nacional dos Camponeses e Indígenas Ranquil desde 1967. (tradução nossa)
A "Lei Indígena" de Allende foi promulgada em 15 de setembro de 1972 e incluiu todas as etnias que viviam no Chile, mas seu texto foi dirigido especialmente aos Mapuche. O intuito foi de devolver às comunidades parte das terras que lhes haviam sido usurpadas desde a “Pacificação” - ou seja, a matança deliberada por parte dos colonizadores. Todavia, a lei foi modificada no parlamento, com a maioria de direita configurando oposição irrestrita ao processo de reforma agrária e de devolução de terras aos camponeses chilenos e mapuches. Apesar desse revés, instituiu-se mecanismos de restituição de terras em favor dos indígenas, e legislou-se sobre a desapropriação de terras a serem-lhes entregues.
Estabeleceu-se que as terras indígenas e demais bens seriam indisponíveis e isentos do pagamento de contribuições fiscais (idem). Foi aprovado no texto legal a constituição de um Instituto de Desenvolvimento Indígena, uma antiga aspiração das organizações mapuche, que buscava canalizar apoio técnico e financeiro para os projetos de melhoramento material da exploração agrícola. Este Instituto também foi incumbido da proteção das terras, da decisão sobre a restituição e desapropriações, a divisão das comunidades, o desenvolvimento da cultura e artesanato, incentivando os indígenas a ingressar nas atividades nacionais com plenos direitos e responsabilidades e ordenou que as universidades reservassem as matrículas para os alunos indígenas.
O Instituto era dirigido por um Conselho integrado por nove autoridades estaduais e sete representantes camponeses Mapuche, eleitos por voto direto, secreto e individual (ibidem).
Por sua vez, dentro da batalha institucional renhida no Congresso que Allende defendia como “exemplo democrático” do caminho do Chile rumo à revolução, a direita conseguiu introduzir modificações no projeto de lei, para deixar de pé a possibilidade de que as comunidades se dividissem quando era do interesse da maioria absoluta dos membros da comunidade. Ademais, o direito dos membros ausentes da comunidade de participarem da gestão das terras da comunidade também foi violado - a menos que a ausência tenha sido por motivos de estudo ou alguma causa fora do controle do membro da comunidade, mas deixando-os o direito de receber um “preço justo” da sua parte ou quota. Na realidade, frisa Morales (2016), houve representantes e intelectuais de esquerda que não estavam totalmente convencidos da importância de garantir a integridade da comunidade e mesmo da cultura Mapuche, e postularam a necessidade de que esse povo se deixasse assimilar pela sociedade global.
Uma esquerda produtivista
O que chama a atenção no documentário A Batalha do Chile, de Patricio Guzmán (1975, 1977 e 1979), é que, nas fábricas geridas pelos próprios trabalhadores, a palavra de ordem é produzir. Inclusive, produzir cada vez mais, para superar o lockout da burguesia, as dificuldades oriundas do bloqueio informal de matérias-primas estadunidense, entre outras questões.
Hoje, em setembro de 2020, em meio à pandemia de Covid-19, um problema ecológico da dinâmica capitalista - nessa dinâmica capitalista de super-exploração da Terra, “produzir” por si mesmo, como estamos fazendo há séculos, não está mais à altura e não vai desencadear ou sustentar nenhum processo revolucionário. Uma revolução que siga na toada produtiva ordinária vai resultar não numa contrarrevolução sanguinária, como aquela do Chile, mas no agravamento da emergência climática e no colapso socioambiental que fará parecer fácil a atual pandemia e suas centenas de milhares de mortos.
Não podemos construir a história retroativamente, com aportes e acúmulos da luta ecossocialista a qual, naquele momento do início da década de 1970, não existia no movimento trabalhador chileno e, provavelmente, em nenhum outro movimento trabalhador no mundo. Mas essa é uma presença ausente a que não podemos nos furtar de perscrutar, sob o risco de deixar os destinos do planeta na mão dos capitalistas ecocidas. Uma perspectiva socioecológica em que a produção seja repensada e planejada democraticamente, por meio de conselhos populares que decidam o que e como deve ser produzido é parte do nosso programa para uma revolução.
A leitura do programa da Unidade Popular reforça uma perspectiva produtivista e tutelar, que visa assegurar terras suficientes aos povos indígenas - como se eles não fossem os próprios donos originais dessas terras - e de assistir “tecnicamente” e prover “crédito financeiro”, leia-se, crédito para o desenvolvimento econômico. Esse programa surpreende por abranger relativamente a perspectiva socioambiental há quase cinquenta anos. Porém, frustra ao compreender os povos indígenas como endereçados a certo “progresso” em contrapartida ao seu próprio desenvolvimento que se provou, à luz dos últimos séculos e da atual pandemia de Covid-19, bem mais inteligente do que a relação do homem “civilizado” branco e europeu com o planeta, de um capitalismo destrutivo.
Quando começamos esse artigo, pensávamos que o governo de Allende e o processo chileno de 1970-1973 seguiria um trajeto mais ou menos conhecido na América Latina: governos progressistas, apoiados numa perspectiva produtivista, que dialogam com povos originários, mas sempre em caráter de tutela. A partir da pesquisa supracitada de Mauricio Morales, tivemos de repensar essa ideia. Por isso, lançamos um desafio coletivo: que tal fazer um balanço crítico do Chile de Allende e a questão mapuche sob uma perspectiva socioecológica, de modo a pensarmos nossa própria estratégia revolucionária?
(*) Carlos De Nicola é comunicador e militante da Coalizão pelo Clima, do Fórum Popular da Natureza e da Assembleia Mundial pela Amazônia.
Referências
BUCCHIONI, Ênio. 40 anos do golpe no Chile de Allende - Ênio Bucchioni - Parte 1. Disponível em: . 2013a. Acesso em: 09 set. 2020
BUCCHIONI, Ênio. 40 anos do golpe no Chile de Allende - Ênio Bucchioni - Parte 2. Disponível em: . 2013b. Acesso em: 09 set. 2020
BUCCHIONI, Ênio. 40 anos do golpe no Chile de Allende - Ênio Bucchioni - Parte 3. Disponível em: . 2013c. Acesso em: 09 set. 2020
BUCCHIONI, Ênio. 40 anos do golpe no Chile de Allende - Ênio Bucchioni - Parte 4. Disponível em: . 2013d. Acesso em: 09 set. 2020
BUCCHIONI, Ênio. 40 anos do golpe no Chile de Allende - Ênio Bucchioni - Parte 5. Disponível em: . 2013e. Acesso em: 09 set. 2020
BUCCHIONI, Ênio. 40 anos do golpe no Chile de Allende - Ênio Bucchioni - Parte 6. Disponível em: . 2013f. Acesso em: 09 set. 2020
GUZMÁN, Patricio. A Batalha do Chile - A Insurreição da Burguesia. 1975. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2020.
GUZMÁN, Patricio. A Batalha do Chile - O Golpe de Estado. 1977. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2020.
GUZMÁN, Patricio. A Batalha do Chile - O Poder Popular. 1979. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2020.
HENRÍQUEZ, Patricio. 11 de setembro, 1973 - O último combate de Salvador Allende. 1998. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2020.
LÖWY, Michael. Treze teses sobre a catástrofe ecológica iminente. 2020. Disponível em: . Acesso em: 09 set. 2020.
MARQUES, Luiz. Serão as próximas pandemias gestadas na Amazônia? 14 maio 2020. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2020.
MERMELSTEIN, Waldo. 11 de setembro de 1973: a tragédia chilena. 2019. Disponível em: . Acesso em: 09 set. 2020.
MORALES, Mauricio. El pueblo mapuche, el gobierno de Salvador Allende y la Unidad Popular. 2016. Disponível em: . Acesso em 09 set. 2020.
UNIDAD POPULAR. Programa básico del gobierno de la Unidad Popular. Memoria Chilena. 1969. Disponível em: . Acesso em: 09 set. 2020.