Por Giovanni Romão, jornalista e militante do PSOL Pindamonhangaba.
Todo processo eleitoral é marcado por duas vertentes: a disputa eleitoral e a disputa política. As duas não estão necessariamente associadas, na mesma medida que, em muitas das ocasiões, não caminham juntas. Vamos a alguns exemplos práticos:
2014: vitoriosa numa disputa acirrada contra Aécio Neves, Dilma Rousseff fechou a eleição daquele ano com uma vitória eleitoral nas urnas, mas não necessariamente uma vitória política, isso em função de uma conjuntura social, econômica e política em alto estado de degradação – com um Congresso já em sua maioria fisiológico e conservador, o fim da história nós conhecemos. Quatro anos antes, porém, a mesma Dilma havia vencido eleitoralmente José Serra, marcando também uma vitória política, num contexto de país muito mais propositivo e tendo sido ela a primeira mulher eleita presidenta do Brasil.
2022: a disputa do último ano é um exemplo de vitórias eleitoral e política. Lula venceu Bolsonaro nas urnas e numa conjuntura de barbárie Vs democracia; Lula cravou também uma vitória política, capaz de desarticular uma manobra de golpe e estruturar um governo, mesmo com tantas contradições ideológicas em seu interior.
Voltando o olhar para as cidades, teremos em 2024 mais uma disputa no nível municipal – e mais uma vez coloca-se em perspectiva essas duas disputas: a eleitoral e a política. A primeira é mais mensurável, mais concreta de ser analisada, sentida e praticada, afinal ela está ligada a perder ou vencer nas urnas. Ela envolve fatores como recursos financeiros para uma campanha massiva, acordos políticos com um número considerável de partidos e uma estratégia eleitoral e de marketing que transforme determinado (a) candidato (a) na figura ideal para conduzir a cidade nos quatro anos seguintes. A disputa eleitoral ainda passa pelo índice de rejeição das figuras públicas envolvidas na disputa.
Há ainda quem coloque o “programa de governo” nesse contexto da disputa eleitoral, mas aqui posiciono-me em discordância, e por isso abro um parêntese antes de falar da disputa política, para onde de fato levaria o “programa de governo”. São raras as ocasiões nas quais programas de governo são cumpridos; integralmente quase nunca (e haveria até justificativa suficiente para isso), e parcialmente, quando aplicados, sempre de forma distorcida e já atendendo a interesses, à conjuntura, aos acordos.
Falando agora da disputa política, ela é menos palpável, muitas vezes até mesmo invisibilizada – uma vez que não está necessariamente ligada à conquista da estrutura pública institucional, ao comando da máquina, ao controle de determinada Secretaria (no caso dos municípios). Considerada, portanto e infelizmente em alguns casos como “menos importante”, é a disputa política que tem capacidade de impulsionar o debate de cidade, a disputa de projetos (não de domínio da coisa pública). É a disputa política que revela o antagonismo de diferentes grupos políticos organizados. O combustível que alimentou a militância nas eleições de 2022 e acentuou as diferenças entre Lula e Bolsonaro não foi a disputa eleitoral, mas sim a disputa política – os destinos de “Brasis” que se avizinhavam a depender de quem vencesse o pleito eleitoral (num contexto bem mais degradante, diga-se); ou seja, a disputa política deu sustentação e alimentou a disputa eleitoral.
O que temos observado em muitos municípios do Estado de SP, em especial no interior, é o uso descabido da máquina pública pelas atuais gestões, e os rascunhos de acordos políticos até aqui costurados no campo do pragmatismo e disputa em vídeos de quem faz mais pela cidade. “Eu fiz asfalto”, “Eu mandei emenda para eliminar a fila X e Y na saúde”, “precisamos conversar sobre ‘vandalismo’ nas praças do centro”, “Eu reformei a UBS do bairro Z”, “Eu cobrei por novos ônibus no transporte”. Mas há ausência do debate por parte dos atores apontados como pré-candidatos sobre qual é o modelo de saúde, o modelo de assistência social e acesso a direitos, o modelo de transporte; ou seja, o modelo de cidade.
O que Boulos tem feito em São Paulo ou Tarcísio Motta no Rio desde setembro são dois bons exemplos da união entre a disputa eleitoral e a disputa política. Ambos são pré-candidatos nas duas capitais, e os resultados eleitorais dependem de muitos fatores (alguns elencados no quarto parágrafo deste texto); mas nos dois casos a vitória política já é quase certa, uma vez que já estão se propondo a disputar a cidade, o modelo, a perspectiva... Os acúmulos com esses debates são, ao certo, imensuráveis (e isso é ótimo!). Ainda que uma ou outra vitória nas urnas não venham, o arcabouço argumentativo (esse positivo! rs) será robusto para o enfrentamento da política cotidiana que seguirá acontecendo na segunda-feira depois do domingo eleitoral de 2024.
Duradoura, atemporal e de capacidade acumulativa, a disputa política é um instrumento frágil se não defendido, preservado e praticado. Eleições têm começo, meio e fim – governos começam e terminam. Agora, negligenciar a disputa política é alimentar o enfraquecimento da capacidade de enfrentamento e resistência (essas, sim, ações de caráter contínuo e cotidiano).