Nós cubanos temos de falar mais claro, denunciar e demonstrar o que está a acontecer. Desde as manifestações espontâneas de 11 de julho, a repressão aumentou até ao ponto de converter-se numa política de terror.
Ivette García González, Esquerda.net, 27 de dezembro de 2021
A relação entre ser e parecer, em política, é um dilema que pode se tornar num conflito de alto custo. Em Cuba invade todos os âmbitos porque o governo, há anos, opta por “parecer”. Isso explica certas reações ao meu artigo anterior(link is external) sobre o terrorismo de Estado na Ilha e impele-me a socializar uma experiência recente.
É que, como escrevi(link is external) por alturas do 11-J, nós cubanos temos de falar mais claro, denunciar e demonstrar o que está a acontecer. Desde essa data, a repressão aumentou até ao ponto de converter-se numa política de terror.
Apesar das centenas de detidos, maltratados e presos por causa da explosão social, logo surgiu uma nova iniciativa cívica – Arquipélago(link is external) – e uma tentativa de manifestação pacífica para novembro. Era um desafio para o Partido/Governo/Estado, para o povo e os jovens promotores.
Estes confrontos também confirmaram que a classe política promoveu a Constituição de 2019 para blindar-se a si mesma, não para estabelecer um marco capaz de proteger direitos cidadãos. Daí a escalada de violência em total impunidade.
-I-
A impossibilidade de funcionar normalmente no interior do país obrigou a Arquipélago a criar, em outubro, uma Comissão de Apoio aos Manifestantes do 15-N, que era também a sua representação no estrangeiro. O seu primeiro objetivo foi sensibilizar a comunidade internacional para o que estava a acontecer em Cuba, para que esta pressionasse o governo a parar a repressão e evitar que se repetisse o que aconteceu em julho.
Esta comissão funcionou até 20 de novembro e foi constituída por profissionais cubanos residentes e/ou em trânsito em vários países, para além de uma rede de apoio de origem semelhante. Monitorizou a repressão na ilha confrontando fontes e com base em denúncias dos cidadãos com provas, rastreou as redes sociais e os meios de comunicação independentes.
Entre 24 de outubro e o encerramento elaborou seis relatórios que foram enviados a meios de comunicação cubanos independentes e internacionais, forças políticas em diversas nações, organizações da sociedade civil internacional e organismos multilaterais.
Cada denúncia incluía provas de violações dos direitos fundamentais contra pessoas de todas as idades, especialmente jovens. E era apenas uma parte do que estava a acontecer; muitos tinham medo de denunciar e outros faziam-no, mas pedindo discrição.
-II-
Os relatórios incluíram valorização do contexto e implicações nacionais e internacionais. No primeiro(link is external), de 25 de outubro e 6 de novembro, as denúncias, provenientes de quase todas as províncias do país, registaram 16 práticas repressivas e diferentes violações.
Eis a lista:
1. Despedimentos laborais.
2. Amedrontamento de pessoas para não aderirem à Arquipélago ou à manifestação.
3. Exigência de assinaturas no compromisso de não envolvimento na manifestação, sob pena de repressão.
4. Ameaças de: despedimento do trabalho, de publicar detalhes da vida íntima das pessoas, de acusá-las de crimes comuns, ameaças de morte (velada ou aberta) se participarem na manifestação, de longas penas de prisão, a familiares, vigilância no trabalho e investigação.
5. Perseguição por assumir posições críticas ou por dar um “gosto” nas redes.
6. Vigilância policial ou da Segurança do Estado em frente às residências.
7. Imposição de prisão domiciliar sem uma causa formada.
8. Prisões arbitrárias.
9. Vigilância e investigação das famílias e amigos de pessoas envolvidas na manifestação pacífica, ou suspeitas de o estarem.
10. Manifestações de repúdio.
11. Pressão durante os interrogatórios para servir de informadores da Segurança do Estado.
12. Perturbação dos serviços de internet.
13. Sequestros, por vezes com imposição de capuzes, combinados com detenções arbitrárias e condução a instalações não policiais.
14. Campanhas de difamação e criminalização de líderes pacíficos da manifestação através dos meios de comunicação oficiais.
15. Assédio às famílias de pessoas que se vincularam à organização da manifestação pacífica ou que se sabia terem planos de participar.
16. Imposição de multas repetidas e injustificadas como forma de assédio.
Estes métodos foram aplicados a cidadãos que assinaram cartas de apoio à manifestação, a figuras de destaque na Arquipélago, e mesmo a dissidentes e membros da oposição tradicional não ligados aos promotores da iniciativa cívica. Visou também jovens estudantes universitários, jornalistas independentes, figuras da igreja, membros de organizações independentes da sociedade civil, etc.
Tal como foi dito na altura, tais práticas “têm consequências prejudiciais para a condição humana. Implicam danos físicos, morais e psicológicos (...) para o projeto de vida pessoal e familiar”. Houve jovens expulsos das suas casas, famílias impedidas de continuar a viver juntas, e pais assediados que decidiram deixar os seus filhos protegidos com outros para fugir à repressão.
De acordo com a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desuman(link is external)a(link is external)s ou Degradantes(link is external), ações como as acima descritas constituem violações dos direitos humanos e qualificam-se em não poucos casos como formas de tortura e/ou criação de condições favoráveis à tortura. Também violam a Declaração Universal dos Direitos do Homem(link is external), da qual, tal como a anterior, Cuba é signatária.
Os responsáveis por estas ações foram o Ministério do Interior (MININT) - Polícia Nacional Revolucionária (PNR) e Órgãos de Segurança do Estado (OSE) - e as Forças Armadas Revolucionárias (FAR), em particular com jovens do Serviço Militar Obrigatório (SMO); bem como as Direções de Contra-espionagem de ambos os organismos.
Grupos paraestatais juntaram-se também à estratégia repressiva, compostos por membros de organizações políticas, sociais e de massas ao serviço do governo: o Partido Comunista (PCC), a União dos Jovens Comunistas (UJC), os Comités de Defesa da Revolução (CDR), a Central dos Trabalhadores Cubanos (CTC) e a Federação das Mulheres Cubanas (FMC), entre outros.
A Comissão denunciou que o governo estava a preparar respostas violentas por parte das instituições estatais. Um documento oficial do dia 26 constatou a preparação para esse fim de dirigentes e trabalhadores de uma empresa de comércio em Holguín.
A sua área “Segurança e Proteção”, sob a direção do Conselho de Defesa Municipal, encarregou-se de desenhar o “Plano de contingências”. Isto incluiu – na linguagem típica da Segurança do Estado – planos de alerta, descrição da entidade, limites, grupos com missões específicas e outros aspectos. O mais numeroso foi a Brigada de Resposta Rápida (BRR), que há anos vem protegendo a imagem das forças repressivas ao fingir que se trata de “ações espontâneas” do povo contrapostas aos “desestabilizadores” e “contrarrevolucionários”.
No mesmo documento, indica-se a utilização no confronto de “meios rústicos de madeira, tubos ou outros materiais preparados e colocados convenientemente ao alcance do pessoal”. A orientação é de procurar a “cooperação” – através de compromissos em atas oficiais – dos Comités de Defesa da Revolução (CDR) mais próximos e também do MININT.
Na avaliação psicológica correspondente ao contexto, o relatório advertiu que “o aumento da repressão em massa e o consequente silêncio tem efeitos físicos e também psicológicos numa população que sofre há tempos danos psicossociais por diversas causas. O clímax de todo este processo é muito preocupante porque facilita, entre outros comportamentos, atos extremos como o suicídio e a heteroagressividade nas pessoas”.
Tudo isto e muito mais aconteceu em apenas uma semana. Tendo em conta “a indefensabilidade de que padecem os cidadãos em Cuba, devido ao sistema centralizado de governo, sem separação de poderes nem aceitação de instâncias independentes que possam servir de contrapeso (...) e proteção cidadã”, o que restava fazer era procurar o apoio da comunidade internacional.
O aterrador é que esta resposta desmesurada tenha sido desencadeada pelo anúncio de uma manifestação pacífica. Como ficou demonstrado, o governo cubano não está interessado em ser, mas sim em parecer. No ser, os seus métodos e práticas chegam a extremos de crueldade com efeitos duradouros, sem que para isso seja preciso o derramamento de sangue aos olhos do público.
O governo pensa que com o terror desencadeado, as exorbitantes condenações de manifestantes pacíficos, e as alternativas migratória e prisional está a fechar um ciclo. Engana-se, com a repressão cresce a indignação da cidadania.
Falar mais claro hoje implica responsabilidade com a denúncia e colocar-se ao lado das vítimas. O revolucionário hoje não está no governo nem nas suas bases, mas sim na sociedade civil e especialmente nos jovens que lutam por um país melhor. O governo é anacrónico e irreformável. Tem um sério dilema entre o ser e o parecer, e o custo político desta dicotomia continua a aumentar. Tenta parecer, mas cada vez mais mostra o que é, ainda que alguns achem muito fortes as palavras ditadura, totalitarismo, autoritarismo e terrorismo de Estado.
23 de dezembro de 2021
Ivette García González é doutora em Ciências Históricas, Professora Titular e escritora cubana. Publicado originalmente em La Joven Cuba. Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net