Governo Biden começa a deportar os 15.000 migrantes retidos sob uma ponte que liga o Texas à localidade mexicana de Coahuila
Constanza Lambertucci, El País Brasil, 21 de setembro de 2021
Os olhos de Michelline Baptiste, grandes e pintados de roxo, se fecham cada vez que toma ar antes de falar. Porque no dia anterior perdeu uma gestação de três meses, e ainda sangra. Porque faz 37 graus às 19h em Del Río, no Texas. Porque essa mulher, diabética e hipertensa, não sustenta as próprias costas e pálpebras. Porque após dias contida – no fundo, retida – pela presença da Patrulha Fronteiriça no limite entre os Estados Unidos e o México, foi autorizada a prosseguir. “É preciso aguentar para sobreviver”, resume.
Baptiste é uma das 15.000 pessoas que se amontoam desde quinta-feira num acampamento entre Cidade Acuña, no Estado mexicano de Coahuila, e a cidade texana de Del Rio, depois de tentarem cruzar ilegalmente a fronteira entre os dois países. Agora espera na sede de uma ONG, a única que trabalha periodicamente na cidade, onde os voluntários armaram uma tenda sob a qual alguns migrantes puderam dormir em colchonetes finos antes de partirem nesta terça-feira de ônibus ou de avião para outros destinos dentro do país. No acampamento sob a ponte, Baptiste passou maus bocados: a poeira no ar, o sol forte, os roubos. E antes disso, a viagem partindo do Chile, os seis dias a pé na selva que separa a Colômbia do Panamá, a chegada a Tapachula, no sul do México. “Aconteceram muitas coisas comigo, muitas foram estupradas, as meninas e suas mães”, conta a haitiana. “Às vezes a gente ia tomar água e via um morto rio acima, então já não tomava.”
Fora da tenda, 10 pessoas se curvam sobre uma mesa onde podem carregar a bateria de seus celulares. Um emaranhado de cabos brancos e as telas brilhantes sobre os rostos. De lá, comunicam-se com seus familiares, os que estão no Haiti e os que vivem nos Estados Unidos. Marco Louiville, de 25 anos, e sua mulher, grávida, viajarão a Miami, onde têm parentes. Lá ele espera poder começar a trabalhar como motorista de trator. “Passamos por muita coisa para chegar até aqui”, diz. Inclusive nos últimos dias. As câmeras gravaram no domingo cenas ao longo do rio Grande onde agentes da Patrulha Fronteiriça montados a cavalo tentavam agarrar os migrantes e utilizavam os animais para empurrá-los de volta para o México. Nesta segunda-feira, as autoridades dos EUA emitiram um comunicado anunciando uma investigação formal sobre os fatos.
Esses milhares de migrantes, cujo avanço foi paralisado na quinta-feira, são sobretudo haitianos que fugiram da crônica instabilidade política e econômica no seu país, o mais pobre do hemisfério ocidental. Desde o devastador terremoto de 2010, milhares de pessoas já participaram do êxodo haitiano, principalmente com destino a países da América do Sul. Em 2017 o México deixou de ser apenas um país de passagem em direção aos Estados Unidos e se transformou também em um destino para os haitianos. A grave crise humanitária da última década na nação caribenha se agravou com o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em junho, e o impacto de um novo terremoto de magnitude 7,2 que deixou mais de 2.000 mortos em agosto.
“Não há vida no Haiti”, resume Mariego Pierre, de 32 anos e grávida de cinco meses. A mulher descreve os últimos dias como uma “calamidade”. “Sem comida, sem banho, sem lugar para dormir”, diz, depois de milhares de quilômetros a pé, de acordo com seu relato. Ao seu redor, homens e mulheres continuam carregando a bateria de seus celulares, lavam suas roupas, repousam, se protegem do sol, varrem a barraca onde dormirão esta noite ou procuram o caminho ao aeroporto onde embarcarão no dia seguinte. A haitiana, como outros milhares de migrantes, arriscou-se nesta viagem apesar de o Governo democrata dos Estados Unidos ter insistido desde o começo para que não viessem.
Enquanto estiveram no acampamento, o escasso volume do rio permitia ir e vir a Cidade Acuña, no outro lado da fronteira, onde a água e outros produtos básicos são mais baratos. Mas nos últimos dias os migrantes começaram a sair com seus pertences do acampamento, que está fechado à imprensa, de volta para o México. Alguns tentarão cruzar por outros pontos da fronteira, como relataram, porque não veem possibilidade de continuar de lá para outros lugares dos Estados Unidos.
A ponte que passa sobre o acampamento está com o tráfego interrompido desde sábado. Milhares de pessoas costumam passar por ali diariamente para trabalhar, fazer compras ou visitar familiares. O prefeito de Del Rio, o democrata Bruno Lozano, um político jovem que ocupa o cargo desde 2018, disse no Twitter que “a dinâmica” já estava mudando e agradeceu os “esforços de logística” do Departamento de Segurança Doméstica e ao governador do Texas, o republicano Greg Abbott, pelo envio de 400 agentes. A Biden, fez uma crítica: “Onde está você?”
Del Rio, uma cidade fronteiriça de quase 36.000 habitantes, ilustra nos últimos dias as dificuldades do Governo dos Estados Unidos em administrar a chegada de migrantes, um fluxo que cresceu no último ano ao seu maior nível em duas décadas. As cifras serviram de combustível aos republicanos e aos seguidores do ex-presidente Donald Trump para atacarem a Administração democrata e exigir mais pulso firme na fronteira. “Nossa nação vai pagar o preço pela debilidade e a incompetência de Biden”, declarou nesta segunda-feira o senador republicano Ted Cruz, que no fim de semana visitou o acampamento. Lá encontrou moradores de Del Rio que protestavam contra a presença dos imigrantes. Alguns denunciavam roubos na cidade e exigiam, inclusive, o impeachment do presidente.
A grande maioria dos habitantes da cidade texana é de origem hispânica (85%, segundo dados do Censo). O município e seus arredores são o segundo acesso mais usado pelos migrantes para entrar nos Estados Unidos no último ano, depois do vale do Rio Grande. Os agentes fronteiriços registraram números recordes de encontros com migrantes – as autoridades contabilizam todas as tentativas de travessia, independentemente de serem feitas pela mesma pessoa, por isso se fala em “encontros”. Os registros das Alfândegas e Proteção das Fronteiras (CBP, na sigla em inglês) mostram quase 1,5 milhão de encontros com migrantes na fronteira. Em Del Rio aconteceram 214.993, 533% a mais que durante o período anterior, quando as passagens de Laredo, Tucson e San Diego eram mais transitadas.
O Governo democrata fez no domingo os primeiros voos de deportação, que continuaram no dia seguinte. A estratégia, em comum acordo com as autoridades haitianas, consiste em enviar em voos diários os migrantes de volta ao seu país de origem ou às nações de onde partiram, como o Brasil e o Chile. Os migrantes que não forem deportados serão enviados a outros pontos fronteiriços para que suas solicitações de asilo sejam processadas. O Governo do presidente Joe Biden fechou a fronteira nesta segunda. Em visita a Del Rio, o secretário de Segurança Nacional, Alejandro Mayorkas, reafirmou que pessoas que entrarem ilegalmente nos Estados Unidos serão deportadas: “Sua viagem não terá sucesso e você terá posto em risco a sua vida e a da sua família”.
O chefe da Patrulha Fronteiriça, Raúl Ortiz, informou em entrevista coletiva no domingo que 3.300 pessoas já haviam sido transferidas e que outras 3.000 seriam levadas nas 24 horas seguintes. “Continuamos aplicando a ordem do Artigo 42”, avisou Ortiz, referindo-se ao dispositivo legal que autoriza a deportação imediata de migrantes em determinados casos e que foi acionado durante a pandemia para dificultar os trâmites de solicitação de acolhida ou asilo de quem chega irregularmente ao país. A medida foi adotada por Trump e mantida por Biden, mas um juiz ordenou há 10 dias ao Executivo que revogasse num prazo de duas semanas a portaria que autoriza as expulsões expressas.
A pé pelas Américas
Ninguém mais permanece na esquina de Del Rio onde até minutos antes vários migrantes haitianos se aglomeravam. O último ônibus do dia para San Antonio, a duas horas e meia, já partiu, e as cinco pessoas que restavam se dirigem agora a um hotel reservado para elas por uma ONG. Francis, de 27 anos e que não quis dar seu sobrenome, espera voar nesta terça-feira para Miami com sua mulher, num voo que já pagaram. A viagem até aqui, diz, foi longa: “Chegamos caminhando de país em país”. Enumera: Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Panamá… e continua. Como muitos dos haitianos que conseguiram autorização para entrar nos Estados Unidos, responde o mesmo quando lhe perguntam por que razão foi autorizado a iniciar sua solicitação de acolhida e abrigo. Ele diz ter visto até mesmo mulheres grávidas sendo deportadas, então atribui sua sorte a um só motivo:
— Foi por Deus.