Há 50 anos, Commoner publicava “The closing circle”. Erudito e provocador, livro contestou ambientalistas liberais, apontou nexos entre capitalismo e devastação e sugeriu: só recriando a circularidade da vida, rompida pelo capital, é possível salvar o planeta
O mundo sobreviverá à crise ambiental como um todo, ou não sobreviverá.
Barry Commoner
José Roberto Cabrera, Outras Palavras, 23 de novembro de 2021
A crise ecológica que vivemos é o maior desafio posto à nossa espécie. Limites planetários (i) estão sendo ultrapassados, estabelecendo sinergias de efeitos imprevisíveis. O grau de deterioração das condições da vida como a conhecemos exige-nos uma mudança de rumo sem paralelo na história da humanidade. Seremos capazes de construir soluções para estes desafios? Talvez o ponto de não retorno já tenha sido ultrapassado e o futuro possível não seja o desejado por ninguém, mas a paralisia não é uma opção. Seja como for, muitas experiências e práticas sociais, comportamentos e cosmovisões, lutas políticas e análises teóricas constituem, hoje, um patrimônio de alternativas.
O marxismo não se furtou ao debate, com múltiplos pensadores e grupos incorporando a temática ambiental à crítica da economia política, buscando estabelecer uma compreensão da natureza em bases filosóficas e teóricas materialistas e formulando um projeto ecossocialista. O biólogo nova-iorquino Barry Commoner foi um de seus pioneiros e um incansável combatente ambiental. Este texto é uma singela homenagem a sua contribuição em The Closing Circle – Nature, Man and Tecnology, obra que não foi publicada em português e que completa 50 anos em 2021.
Testes nucleares e poluição
Barry Commoner (1917-2012) nasceu em Nova York, formou-se em zoologia na Universidade de Columbia e fez mestrado e doutorado em Harvard, onde se engajou no movimento por uma ciência pública. Depois do serviço militar durante a Segunda Guerra, trabalhou na Science Illustrated e tornou-se, em 1947, professor na Universidade Washington, em Saint Louis, no Missouri. Commoner destacou-se por debater o significado do conhecimento científico numa sociedade democrática, envolvendo-se em diversas pesquisas e campanhas contra os efeitos que o capitalismo industrial impunha sobre a sociedade estadunidense. Dois caminhos se entrelaçavam em seus trabalho: os impactos desconhecidos dos testes nucleares e o aumento vertiginoso da poluição e da contaminação do ar, da terra e dos ecossistemas.
O contexto da Guerra Fria exigia cuidado na formulação das críticas ao establishment, associadas, em geral, ao anti-americanismo e ao comunismo. Seu papel no (CNI) Comitê pela Informação Nuclear, organização formada por cientistas para o compartilhamento dos dados e pesquisas sobre os efeitos da radiação, foi fundamental para o banimento dos testes nucleares atmosféricos em 1963. O Nuclear Test Ban Treaty, considerado a primeira vitória do movimento ambientalista, foi associado à mobilização da opinião pública estadunidense após a divulgação dos resultados sobre contaminação radioativa a partir da análise de centenas de milhares de dentes de leite doados para a campanha Baby Tooth Survey.
As mobilizações e debates ambientalistas nos EUA intensificaram-se no início dos anos 1970, revelando intensas divergências metodológicas e políticas sobre como enfrentar os desafios. Nesse contexto, a publicação de The Closing Circle consolidou uma perspectiva holística no entendimento da questão ambiental de forma inovadora e crítica do modelo industrial de produção e consumo, inserindo o tema social no debate científico, técnico e ambientalista.
A divergência populacional
O tema do controle populacional apresentava-se como central para os movimentos ambientais norte-americanos, que deitavam raízes profundas no liberalismo do país. Paul e Anne Ehrlich publicaram, em 1968, The Population Bomb, um livro que se tornou referência no debate. Ao posicionar-se contrário aos argumentos neomalthusianos sobre a necessidade do controle populacional, Commoner estabeleceu, com The Closing Circle, os caminhos da sua crítica. Ainda que não negligenciasse os impactos ambientais provenientes de uma população em crescimento, indicava que o padrão de consumo pós-1945 era o principal responsável pela destruição ambiental. O livro dialoga com o movimento, no que era o estado da arte das análises do começo dos anos 1970, e expõe a gravidade da situação. Faz duro diagnóstico, aponta saídas e, como diz Michael Egan (ii), acerta.
Dois eixos estruturam o trabalho de Commoner: a defesa intransigente da ecologia como a única alternativa para garantia da sobrevivência da espécie humana e das outras formas de vida nesse processo de interdependência e a ideia de que a superação desse modelo só terá êxito se atingir as raízes sociais do problema.
Meio século depois, a lógica do capital ampliou e potencializou os danos causados em escala global. A única certeza que temos é que se oferecêssemos qualquer dado sobre a destruição ambiental e a crise ecológica como resultados do modo de produção capitalista, eles estariam defasados e para pior quando fossem lidos.
A dialética da ecologia
Commoner estabeleceu, em The Closing Circle, quatro leis para a ecologia:
1º Tudo está conectado a tudo;
2º Tudo tem que ir para algum lugar;
3º A natureza conhece melhor caminho; e
4º Não existe almoço grátis.
Elas consolidam uma nova epistemologia. Questionam, ao mesmo tempo, a lógica liberal – que socializa as “externalidades” e torna a tecnologia redentora destes efeitos indesejados – e o cálculo econômico – que despreza os custos da poluição e da destruição ambiental.
O livro alinha uma intensa crítica ao papel da tecnologia que, submetida ao capital e ao complexo militar, desenvolveu mercadorias e processos que aceleraram a destruição do planeta. O aumento populacional e o incremento da renda são a menor parte do problema. Para ele, a tecnologia utilizada pós-1946 desenvolveu um número maior de poluentes por unidade, responsável por cerca de 95% da produção total (iii). O aumento da poluição deveria, portanto, ser buscado no que se produz, como se produz e por que se produz.
O aumento dos deslocamentos para os subúrbios nas grandes cidades dos Estados Unidos depois de 1945 consolidou um mercado de consumo de veículos e combustíveis adequado às necessidades desse setor, que progressivamente se especializou em seduzir seus consumidores pelo design, pelo aumento da potência e conforto. Tal processo persiste hoje, mesmo com a indústria automobilística transitando marcadamente para a motorização híbrida ou elétrica.
No entanto, essa transição recoloca o paradoxo Jevons (iv), uma vez que observamos não a diminuição, mas o aumento do consumo de energia, ao mesmo tempo em que ocorrem melhorias na eficiência dos motores e na diversificação das matrizes energéticas. As motorizações híbridas ou elétricas criam, ao custo de impactos socioambientais significativos, novos mercados consumidores, novos produtos e novas formas de diferenciação social, sem pôr em questão a lógica da produção.
Ao demonstrar que as origens da catástrofe ambiental estão conectadas aos ditames do regime de acumulação e exploração, Commoner reafirma o caráter político das decisões ambientais. Diz ele:
A análise deixa claro, creio, que a crise não é o resultado de uma catástrofe natural ou da força mal direcionada das atividades biológicas humanas. A Terra não está poluída porque o homem é uma espécie de animal especialmente sujo, nem porque somos muitos.
A culpa é da sociedade humana – das maneiras pelas quais a sociedade escolheu ganhar, distribuir e usar a riqueza que foi extraída dos recursos do planeta pelo trabalho humano. Uma vez que as origens sociais da crise se tornem claras, podemos começar a planejar ações sociais apropriadas para resolvê-la (v).
Ao pensar a questão ambiental nessa interação ampla das ações sistêmicas sobre a natureza, Commoner incorporou novos componentes epistemológicos no debate sobre ecologia. Sua crítica metodológica à compartimentação e segmentação das ciências me deixou mais à vontade como historiador para lidar com ecologia.
O reducionismo tende a isolar as disciplinas científicas umas das outras e todas elas do mundo real. Em cada caso, a disciplina parece estar se afastando da observação do objeto natural e real: os biólogos tendem a estudar não o organismo vivo natural, mas as células e, em última análise, as moléculas isoladas deles. Um resultado dessa abordagem é que a comunicação entre as disciplinas se torna difícil, (…) A falha de comunicação entre essas ciências básicas especializadas é uma fonte importante de dificuldade na compreensão dos problemas ambientais (vi).
A questão social, espinha dorsal do ecossocialismo
Essas conexões precisavam acontecer também em termos sociais. Ainda que seu trabalho em popularizar as informações sobre riscos à saúde e ao ambiente oriundos da produção industrial, da agricultura capitalista, do uso de novos elementos químicos e da indústria petrolífera fosse central no debate sobre democracia, esse ainda era um tema essencialmente branco. Dizia, “a crise ambiental é uma crise de sobrevivência, e esse não é um tema da classe média americana”. Enquanto que para os negros, o tema da sobrevivência tem centenas de anos. Se eles também não o dominaram, pelo menos tiveram uma boa experiência que pode ser extremamente valiosa para uma sociedade que, agora como um todo, deve enfrentar a ameaça de extinção. Os negros precisam do movimento ambiental, e o movimento precisa dos negros (vii).
Embora o termo racismo ambiental (viii) inexistisse, Commoner inseriu uma perspectiva abrangente da ecologia, introduzindo elementos raciais e sociais que expressavam não apenas os impactos sobre os locais de moradia e trabalho das populações mais pobres, mas também os históricos dos enfrentamentos organizados nessas comunidades. As lutas ambientais necessariamente expressavam conflitos mais abrangentes e adquiriam caráter classista, ainda que o termo estivesse ausente no livro. Há uma antecipação do que Joan Martinez Allier vai, duas décadas depois, chamar de O ecologismo dos pobres (ix).
Dessa perspectiva, o debate ecológico prosseguiu contra os liberais, sustentando que as transformações necessárias não podem ser resultado de escolhas individuais – consumir menos, escolher produtos menos agressivos, andar de bicicletas, reciclar etc. –, mas sim pensadas em termos estruturais.
Aqui residem duas contradições fundamentais do sistema do capital: o processo de busca de crescimento contínuo num sistema ecologicamente fechado e limitado e a contradição entre capital e trabalho manifesta também no custeio ecológico dos efeitos da produção.
Há breve menção sobre o socialismo onde tais contradições não deveriam existir, uma vez que o imperativo do crescimento econômico e da valorização contínua não seriam uma necessidade. Entretanto, o apego ao produtivismo lançou tais sociedades no quadro dessa mesma crise ecológica, pouco se diferenciando dos países capitalistas. É nessa parte que Barry Commoner faz uma breve menção à obra de Marx onde destaca que o tema da destruição ambiental já fazia presente.
The Closing Circle tem alguns silêncios que podem indicar seus limites, mas também o itinerário teórico percorrido pelos movimentos socioambientais ao longo desses 50 anos. Por exemplo, no debate sobre o controle de natalidade nos países pobres, Commoner se colocou na defesa de políticas de distribuição de renda, mesmoconsiderando que o consumo dos ricos tinha um impacto ecológico maior. No entanto, não há referências à autonomia das mulheres e da opção de engravidarem, assim como da importância da melhoria das suas condições de vida, do acesso à educação e saúde, o combate ao patriarcalismo e defesa dos direitos, o que reforça o quanto os movimentos feministas e ecofeministas ganharam espaço e centralidade nas lutas socioambientais.
Outra lacuna do livro é em relação às lutas dos povos originários e comunidades tradicionais em defesa da natureza. Os entendimentos das relações entre os humanos e os outros seres vivos e não vivos compõem um quadro complexo e dinâmico que abrange cosmologias que potencializam novas formas de resistência. Além disso, The Closing Circle aborda superficialmente temas como o imperialismo, a dependência e a colonialidade. Tais questões estão hoje no epicentro da crise ecológica e delineiam as formulações e a ação dos ecossocialistas.
O livro carece, por fim, de uma avaliação mais profunda sobre a neutralidade da Ciência, principalmente pelo fato de que nessas cinco décadas ocorreu uma captura do tema das alternativas à catástrofe ambiental pelo Capital e suas instituições, que reforçam a utilização de recursos como a geoengenharia, tratada como tábua de salvação para a manutenção da lógica
O Fechamento do Círculo
Passados 50 anos, a abertura do círculo está maior. A expansão do capitalismo intensificou os processos de destruição. O aumento da produção industrial, a expansão do agronegócio, o consumo dos combustíveis fósseis, a emissão de gases de efeito estufa, a perda de biodiversidade e da cobertura vegetal, a contaminação dos solos e das águas, a acidificação dos oceanos – tudo isso expôs o sentido da lógica sistêmica. O conhecimento sobre esses impactos, suas inter-relações e o modo como se retroalimentam produzem uma espiral de desesperança.
Seguindo a lógica do pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade, Barry Commoner, após o duro diagnóstico, conclama à ação. Apresenta a ideia de que o círculo biológico quebrado pelo Capital deveria ser fechado e esse processo só pode ser realizado a partir de um novo modelo de organização social, política, econômica, ética e científica. Embora Commoner não use o conceito marxista de ruptura metabólica, não seria exagero aproximá-lo da noção do círculo rompido. Do mesmo modo, em ambos se põem o desafio de sua superação e a necessidade de restauração dos mecanismos de troca e equilíbrio.
O que salvou a vida da extinção foi a invenção, no curso da evolução, de uma nova forma de vida que reconvertia os resíduos dos organismos primitivos em matéria orgânica, fresca. Os primeiros organismos fotossintéticos transformaram o curso voraz e linear da vida no primeiro grande ciclo ecológico da Terra. Ao fechar o círculo, eles alcançaram o que um organismo não vivo, sozinho, pode realizar – a sobreviv
Os seres humanos saíram do círculo da vida, guiados não por suas necessidades biológicas, mas por sua organização social com a divisa de “conquistar” a natureza: enriquecer governados por princípios distintos daqueles que governam a natureza. O resultado final é a crise ambiental, uma crise de sobrevivência. Mais uma vez, para sobreviver, devemos fechar o círculo. Devemos aprender como devolver à natureza a riqueza que dela tomamos emprestada. Em nossa sociedade voltada para o progresso, espera-se que qualquer pessoa que pretenda explicar um problema sério se ofereça para resolvê-lo.
Mas nenhum de nós – sozinho ou em um comitê – pode traçar um “plano” específico para resolver a crise ambiental. Fingir o contrário é apenas fugir do real significado da crise ambiental: que o mundo está sendo levado à beira de um desastre ecológico não por uma falha singular, que algum esquema inteligente pode corrigir, mas pela falange de poderosas forças econômicas, políticas e sociais que constituem a marcha da história. Quem se propõe a curar a crise ambiental compromete-se, assim, a mudar o curso da história
Mas esta é uma competência reservada à própria história, pois a mudança social abrangente só pode ser planejada na oficina de ação social racional, informada e coletiva. Que devemos agir agora está claro. A questão que enfrentamos é como (x).
Essa resposta é nosso desafio
Notas
ii Egan, Michael, Barry Commoner and the science of survival : the remaking of American environmentalism, MIT Press, 2007.
iii Commoner, Barry, The Closing Circle – Nature, Man and Tecnology, New York : Alfred A, Knopf, 1971, pg. 144
iv Em The Coal Question (1865) Willian Jevons sustenta que as melhorias tecnológicas que aumentam a eficiência energética podem, ao invés de diminuir o consumo dos recursos, aumentá-lo, exatamente por serem mais eficazes.
v Commoner, Op. Cit. Pg. 145
vi idem. 156
vii Idem 169
viii Termo criado pelo militante dos direitos civis dr. Benjamin Franklin Chavis Jr em 1981.
ix MARTINEZ-ALIER, Joan, O Ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagem de valoração, trad. Maurício Waldman, Contexto : São Paulo, 2015.
x Commoner, Op. Cit. Pg. 245