Horacio Machado Aráoz é autor do livro Mineração, genealogia do desastre: o extrativismo na América como origem da modernidade (Editora Elefante), onde relaciona o vínculo do extrativismo, da chamada “Conquista da América” à atualidade, com exemplos concretos como Minera Alumbrera (em Catamarca, Argentina).
“Ser provedores de matérias-primas obedece a um padrão de divisão internacional do trabalho herdado da época colonial. O extrativismo é um traço estrutural do capitalismo como sistema de acumulação mundial. Para que essa acumulação aconteça é necessário que haja zonas de sacrifício, colônias, que forneçam os subsídios ecológicos desse consumo desigual do mundo”, explica.
Darío Aranda entrevista Horacio Machado Aráoz, Tierra Viva / IHU-Unisinos, 22 de janeiro de 2021. A tradução é do Cepat.
Partindo do livro “Potosí, el origen”, quais semelhanças há entre esse modelo iniciado em 1492 e o atual?
O que aparece inato por baixo da diversidade de formas de extrativismo é a figura do conquistador como protótipo dos humanos e como forma de relacionar e conceber a relação com o mundo. Os conquistadores, desde os Pizarro, os Cortés, os Pedro de Valdivia, os Diego de Rojas, são varões armados, violentos, em busca de modos de enriquecimento rápido e geralmente mediados pelo desejo de domínio, lucro, posse, que olham o mundo como puro objeto de posse e conquista, que concebem a vida como uma corrida infinita de riqueza e poder.
O que temos por baixo do extrativismo é o que torna idêntica a situação entre o século XVI e o XXI, é um padrão de subjetividade que se institucionalizou, um mundo onde o comércio e a guerra esgotam o sentido da existência. Vivemos para comprar, é um mundo de consumidores, é o DNA deste modelo civilizatório. Em termos subjetivos, a visão de Colombo capturada pelo brilho do ouro é a visão do sujeito moderno contemporâneo, da racionalidade que pensa na conquista de riquezas e valores abstratos como o sentido último da existência, essa é a matriz do extrativismo.
E as diferenças?
Há diferenças, grandes e múltiplas, entre o extrativismo primitivo do século XVI e o do século XXI, sobretudo nos modos de produção, o regime de dominação e destruição de hoje é infinitamente maior. O poder também se tornou mais complexo, possui uma enorme capacidade libidinal, um poder performativo, com enorme capacidade de sedução, persuasão. O modo de vida imperial se impõe como matriz evolutiva. A visão do mundo do conquistador penetra nos dominados.
Os países dependentes querem ser como as potências.
A capacidade de destruição associada à capacidade de sedução é o que Aníbal Quijano chama de “a lógica da colonialidade”. O modo de vida imperial, do conquistador, aparece também como desejado pelos conquistados e colonizados. Este modelo nos levou a um limiar de desumanização, à naturalização da violência, a viver nos relacionando com a Mãe Terra a partir da lógica da pilhagem, com os efeitos sanitários e socioambientais que já conhecemos.
Mas também há resistências.
Existe claramente outra dimensão, um estado de luta. Estes cinco séculos de dominação extrativista colonial não passaram em vão. Não foi uma dominação passiva. Há toda uma história de lutas, um aprendizado de lutas passadas. E um acervo. Sementes de humanidade que permanecem. Se queremos sustentar e lutar pela sobrevivência da humanidade, precisamos recorrer ao banco de sementes da história, que são as resistências, a luta dos povos originários, das mulheres, a luta dos trabalhadores, de todos os oprimidos do mundo. Existe aí um banco de saberes, de conhecimento, disponível hoje.
Todas estas lutas, diferentes expressões contra a dominação patriarcal-colonial-capitalista, são todas necessárias, mas nenhuma por si mesma. Estamos diante de um grande desafio de uma sinfonia de lutas populares, é a consciência que temos da integração das lutas, do ecologismo popular. Tudo isto aparece com uma nitidez que não podíamos ver em outros momentos da história.
Qual é a relação entre o extrativismo e o capitalismo?
Não há capitalismo sem extrativismo. E o capitalismo implica a reafirmação de uma estrutura colonial da economia mundial. Por isso, é incompreensível que no século XXI governos que dizem que gostariam de uma mudança progressista tenham insistido com a base de um modelo já falido, muito conhecido e muito debatido na América Latina, com consequências econômicas, políticas e sociais, e que consolida a dependência.
Uma grande aprendizagem desse período deveria ser que como países herdeiros de um regime colonial, que prolongamos e aprofundamos, não podemos almejar um modelo de desenvolvimento igual ou equivalente ao dos países industrializados. Deveríamos almejar outro modelo de desenvolvimento, baseado em outro tipo de matriz de produção e de consumo.
Uma clássica visão a partir de setores progressistas ou de esquerda é a de ressaltar que o extrativismo é uma “contradição secundária” ou uma etapa prévia para conquistar o “desenvolvimento”, posteriormente.
É a posição do que chamamos de esquerda de plantão, os intelectuais e políticos que seguem incondicionalmente os governos progressistas. É uma posição totalmente equivocada, que reproduz velhos erros da esquerda ortodoxa do século passado. Demonstra uma cegueira epistêmica destes setores de esquerda em relação à natureza. Permanecem sem entender que o capitalismo não é só a destruição da força de trabalho, mas produz a destruição das fontes de vida, a natureza, das quais o trabalho é um aspecto a mais.
A velha esquerda é uma esquerda produtivista, pensa nos termos do capitalismo a respeito do desenvolvimento tecnológico, possui uma fé cega na expansão das forças produtivas, acreditam em um horizonte de crescimento infinito. Isto, que poderia ser perdoável para Marx e Engels, no século XIX, é incompreensível nos tempos atuais.
Que alternativa existe?
A teoria social crítica latino-americana nasceu com questionamentos pelas consequências deste modelo primário exportador. Existiram teóricos e governos que propuseram um modelo diferente para a região, entre os anos 1940, 1950 e 1960, muitos deles inspirados na chamada “escola da CEPAL” [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe], sendo o economista Raúl Prebisch uma das referências.
Há mais de meio século, sabe-se que o extrativismo não é uma alternativa válida para o desenvolvimento. Essa matriz extrativa tem consequências em matéria de classe social, gera uma distribuição de renda que tende à polarização social, consolida as elites e traz pouca redistribuição.
Por que se insiste no mesmo caminho?
Há muitas hipóteses, mas um elemento fundamental é o imaginário colonial desenvolvimentista. Boa parte dos governos, inclusive de esquerda, seguem almejando o desenvolvimento concebido a partir de um imaginário eurocêntrico, pensando que só devemos nos desenvolver seguindo os padrões de vida e institucionalidade dos países mais poderosos, Europa ocidental e os Estados Unidos. E isso é um profundo equívoco político, não temos possibilidade de nos desenvolver nesses termos, e se torna inviável qualquer possibilidade de pensar e implementar outros caminhos, que sejam emancipatórios.
Como se sai do extrativismo?
Não há, acredito, saídas capitalistas do extrativismo. Isso nos força a pensar radicalmente as alternativas. Como o extrativismo é uma dimensão intrínseca do capitalismo, sair dele é imaginar outros horizontes civilizatórios. E embora isto pareça difícil, utópico, inviável para muitos, há muitas comunidades que vivem em territórios que estão fora dos padrões do capitalismo, vivem sobre uma base de uso comunal dos conhecimentos, saberes, terras, sementes. Em nossa América, temos muitas comunidades que vivem fora desse padrão extrativo. É preciso começar a imaginar essas saídas.
Como seria?
Sempre dizemos que é necessário pensar nas transições. É preciso pensar em um processo gradual. Nos primeiros anos da Revolução Cidadã no Equador, esse caminho teve início com a Constituição de Montecristi. Com Alberto Acosta como ministro de Energia, havia sido esboçado um plano estatal de saída do extrativismo, com o horizonte no bem viver, com toda uma proposta macroeconômica e política para garantir essa transição. Por fim, Rafael Correa deixou de lado essa proposta e se agarrou no extrativismo.
Seria outra forma de vida?
O futuro da espécie humana está em sermos capazes de reaprender e reeducar, voltar a nos sentir conectados com o mundo da vida, o ar, a terra, a água. E nos desconectar do aparato tecnológico e financeiro que nos extirpou do mundo, nos submergiu em uma vida de bolha, em um mundo de telas e de conexões abstratas. É preciso sair disso para ter alternativas, para ter outro futuro.
Vocês são acusados de utópicos?
Há diversas propostas, tanto de pesquisadores como de organizações sociais, que estão propondo políticas para modificar a matriz produtiva, alternativas construídas na base que constroem outras territorialidades e são fundamentais para sair do extrativismo. Imaginamos sociedades baseadas em soberania alimentar, soberania energética e hídrica como pilares fundamentais para pensar a independência econômica, política e cultural.
Faz anos que as organizações vêm pensando e colocando isso em prática, como a CONAIE [Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador], a Rede de Comunidades Afetadas pela Mineração do México, o Movimento Mundial contra Barragens da Mesoamérica e a própria UAC [União de Assembleias Cidadãs].
Qual é o papel da ciência hegemônica frente ao extrativismo?
A ciência tem um papel protagonista e imprescindível na dinâmica do extrativismo.
Por quê?
A trajetória de destruição que esta civilização demonstra nasce da articulação entre a ciência, o capital e o Estado, como uma trípode de poder, uma grande maquinaria epistêmica política que avançou triturando a terra como mundo da vida. Possui uma relação direta relação com o fato de que este mundo moderno nasce sobre uma falha epistêmica, que é o ponto de origem da ciência moderna: nasce matando a terra.
A ciência foi o principal aparato epistêmico-político que considerou a terra como pura matéria inerte, como puro objeto, como algo desprovido de vida, colocado à serviço de um desejo de domínio e controle, a partir de uma visão antropocêntrica. O ponto de origem deste sistema-mundo é essa dessacralização da terra. A ciência pensa a si como um objeto de conhecimento para a exploração.
O progresso moderno é pensado como uma corrida de conquista, de controle, de dominação e de exploração sobre o mundo dos vivos, que é pensado como puro objeto, como matérias-primas para a valorização no mercado. Tudo isso é obra da ciência moderna. A ciência institui esta separação entre o humano e a terra, produz este processo de mercantilização.
Ciência para transgênicos, fracking, lítio?
Uma operação científica que concebeu a produção de conhecimento como um instrumento de apropriação e de exploração.
Considera que a ciência se ergue como portadora da verdade?
Uma dimensão muito importante tem a ver com que esta ciência, que nasce discutindo e criticando os modelos monoculturais do absolutismo teológico, o dogmatismo religioso que censurava os modelos de produção de conhecimento, esta ciência se tornou uma nova religião.
Como?
A ciência que combateu aquela religião, que exigia liberdade de pensamento, passou a ser esta ciência que se tornou uma religião. Esta ciência se impõe destruindo, ignorando, negando outros modos de produzir conhecimento, outros registros cognitivos e outros universos de saberes.
É possível sair ou mudar esse modelo científico dominante?
Precisamos desses outros conhecimentos, contra-hegemônicos ou nascidos fora do âmbito do império desta ciência hegemônica. A crise da terra, a crise política e a crise antropológica, que é o capitaloceno, não pode ser solucionada com os mesmos meios que produziram esta catástrofe. Não podemos acreditar que esta ciência trará soluções para os mesmos problemas que criou. Precisamos pensar radicalmente outros modos de produzir e validar o conhecimento.
Mas há cientistas que pensam e atuam dentro do sistema de outro modo, na contracorrente?
Dentro da ciência há saberes e formas de uso contra-hegemônicos que são sumamente úteis. A partir dos anos 1950, surgiu uma ciência do povo e para o povo, democratizando a ciência, que pensa a tarefa científica como um serviço da democratização da sociedade. Pensar os cientistas como servidores públicos cuja tarefa é ampliar a qualidade da vida democrática das sociedades.
Muitas vezes, o conhecimento científico parece se colocar acima de outros conhecimentos.
A ciência popular precisa se reconhecer a partir do pressuposto da humildade epistêmica. Não há uma posição de privilégio, nem de verdade. O saber científico não pode se impor sobre outros modos de saber e conhecimento. Precisa estabelecer um diálogo, em uma ecologia de saberes, com humildade epistêmica. Sob nenhum aspecto tem superioridade ou uma possibilidade de privilégio. É a única forma de existir uma ciência democrática e popular.
Como analisa o papel dos movimentos sociais, campesinos ou indígenas que assumem funções de governo?
Há muitas complexidades, também estamos aprendendo de experiências históricas, como dos recentes governos progressistas da América Latina. É muito discutível, mas é um anacronismo políticos pensar, como se pensava há 40 anos, que a mudança social se faz somente a partir do Estado. É uma ideia errada por muitos motivos.
Por quê?
As mudanças sociais que precisamos não se dão de cima, nem a partir do Estado, mas, muitas vezes, acontecem apesar do Estado.
Como seria?
O Estado como aparelho burocrático político e militar faz parte do problema e não das soluções. É preciso transformá-lo em algo substancialmente diferente. Então, quando pensamos no Estado, apresenta-se um dilema, no sentido de que nenhuma transformação se faz sem o Estado, mas toda transformação civilizatória se faz apesar do Estado.
E o papel das organizações sociais?
O fato de participar na lógica de um governo, não deveria nos fazer perder de vista o sentido das transformações e me parece que essa é a dificuldade desse desafio. Nas décadas passadas, houve mudanças constitucionais, políticas muito fortes, quando se falou em passar para outros estados, não capitalistas, decoloniais, plurinacionais.
Essas experiências fracassaram, foram governos que, muitas vezes, contou com líderes de organizações de movimentos populares e sociais no aparelho político do Estados. Isto expõe a grande complexidade: como evitar a lógica da reprodução do sistema, e uma vez que se está dentro do aparelho estatal, como manter a vocação de transformações antissistêmicas dentro do próprio Estado.
Como se faz isso?
É sumamente complexo. Não há receitas, estamos aprendendo. Penso que o ciclo progressista nos deixa dolorosos ensinamentos. Seria sumamente necessário poder metabolizar aprendizagens sociais.
Mas é positivo que organizações sociais se somem a governos?
Não podemos esperar que um Estado que faz parte do sistema atue de maneira antissistêmica. Sim, há uma equação variável de transformações do Estado, caso exista muita pressão social. Isso nos leva a situações de equações complexas e não podemos dizê-las de um escritório, nem a partir dos livros. Faz parte das aprendizagens e lutas que precisam acontecer.
Quando referências de movimentos sociais ocupam lugares no governo, é preciso observar a quais interesses responde. Em que medida essas referências continuam respondendo às suas organizações ou respondem às lógicas do poder. Costuma se dar uma fragilidade e um limite. E se acaba reproduzindo a lógica sistêmica do Estado, com diversos dispositivos psicossociais que tendem a justificar isso: o possibilismo, o pragmatismo, fazemos o que podemos, lutamos internamente, mais não é possível, se saio, vem outro que fará pior. Todas essas parafernálias de desculpas acabam, em definitivo, sendo funcionais ao desapontamento popular. Temos que aprender com isso, continua sendo um processo desafiador de aprendizagem social.
Horacio Machado Aráoz é pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas - CONICET, professor da Universidade Nacional de Catamarca e integrante das assembleias catamarquenhas contra a megamineração e da organização Sumak Kawsay (“bem viver”).