Sondagem regista pela primeira vez a existência de uma maioria pela destituição do presidente. Revelações apontam para um esquema destinado a cobrar comissões e propinas na compra de vacinas. Bolsonaro volta a ameaçar dar um golpe de Estado.
Luís Leiria, Esquerda.net, 14 de julho de 2021
Bolsonaro está com soluços há pelo menos 12 dias. Ele próprio o admitiu quando os espasmos o surpreenderam numa das suas habituais transmissões em direto pela Internet. Aos soluços junta-se a insónia: assessores recebem sucessivas mensagens durante toda a madrugada, evidenciando que o capitão reformado atravessa uma fase de forte stress, o que, aliás, aparece estampado na sua expressão contraída.
Não lhe faltam motivos de preocupação: uma sondagem do instituto DataFolha mostrou, pela primeira vez, que a maioria do país (54%) é a favor da abertura do processo de impeachment ao presidente. Por outro lado, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid está a trazer revelações surpreendentes que podem provar que Bolsonaro foi alertado para a existência de um esquema de corrupção instalado no Ministério da Saúde mas nada fez para investigar esta denúncia. A investigação da CPI pode mesmo concluir que Bolsonaro é cúmplice de esquemas corruptos de cobrança de “propina” (luvas) a fabricantes de vacinas.
A opinião pública parece já abraçar esta possibilidade: a mesma sondagem do DataFolha mostra que 70% dos eleitores acreditam que há corrupção na gestão Bolsonaro. Mais: 63% acham que há práticas corruptas no Ministério da Saúde e, para 64%, o presidente tem disso conhecimento.
“Fora Bolsonaro”: de regresso às ruas
Ao mesmo tempo, o grito “Fora Bolsonaro” voltou a ganhar as ruas. A indignação generalizada com as atitudes do presidente face à pandemia colaram-lhe, de forma indelével, o cognome de “genocida”. A relação de forças começou a mudar em desfavor do governo. Os setores da esquerda que apostavam na mudança exclusivamente pelas eleições de 2022 perceberam que a inação era contraproducente. Mesmo em termos de pandemia, a manutenção de Bolsonaro no poder é muito mais devastadora, quanto a perdas humanas, do que os riscos de contágio que os manifestantes enfrentam na rua.
Foi assim possível juntar toda a esquerda e a centro-esquerda, entidades sindicais e movimentos sociais na convocatória de grandes mobilizações nacionais pela saída de Bolsonaro.
Já foram realizadas três jornadas nacionais “Fora Bolsonaro” e pela garantia de vacinas para todos: em 29 de maio, 19 de junho e 3 de julho. A jornada de protestos de 29 de maio ocorreu em 213 cidades no Brasil e 14 no exterior. Os organizadores estimaram a participação em 420 mil pessoas. Em 19 de junho, as manifestações cresceram significativamente: os organizadores calculam que 750 mil pessoas compareceram a mobilizações ocorridas em 427 cidades no Brasil e 17 em outros países. Simbolicamente, o dia da segunda jornada foi aquele em que o Brasil atingiu a trágica marca de 500 mil mortes por Covid-19.
Finalmente, os organizadores decidiram antecipar para 3 de julho a terceira jornada de manifestações devido às denúncias de corrupção surgidas na CPI. A avaliação é que este terceiro dia de luta contra Bolsonaro foi da mesma dimensão do anterior.
O impacto das mobilizações tem sido grande, levando até à adesão de setores da direita, como foi o caso do PSDB de São Paulo, que participou na manifestação de dia 3 de julho na capital paulista.
Ao mesmo tempo em que vai às ruas, a oposição tomou a iniciativa de apresentar, a 30 de junho, aquele que ficou conhecido como o “Superpedido de Impeachment”. Trata-se de um documento assinado por 46 partidos, entidades e indivíduos, que retoma a argumentação dos 120 pedidos apresentados à mesa do Congresso Nacional anteriormente, todos engavetados pelos presidentes do Congresso a quem cabia dar-lhes seguimento: o anterior, Rodrigo Maia, e o atual, Arthur Lira, aliado de Bolsonaro.
Para além dos partidos de esquerda e centro-esquerda, de centrais sindicais e de movimentos sociais, o que chamou a atenção foram três assinaturas individuais de ex-aliados de Bolsonaro: os deputados Alexandre Frota, Joice Hasselmann, que chegou a ser a líder do governo no Congresso Nacional, e Kim Kataguiri, um dos dirigentes do Movimento Brasil Livre (MBL), que teve grande protagonismo nas mobilizações pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Já depois da entrega deste pedido, o partido Novo (uma espécie de Iniciativa Liberal lá do sítio) divulgou a sua posição a favor do afastamento de Bolsonaro. Decisão semelhante foi assumida pelo conservador jornal Estado de S. Paulo em editorial.
Claramente, o fantasma do impeachment volta a assombrar o Palácio do Planalto.
CPI mostra podres
O próprio descontrolo emocional de Bolsonaro é uma evidência disso. Diante de uma carta enviada pelos principais responsáveis da CPI ao presidente pedindo esclarecimentos, a resposta de Bolsonaro baixou o nível: “Sabe qual a minha resposta? Caguei. Caguei para a CPI. Não vou responder nada”, disse.
Os senadores queriam saber o que o presidente tem a dizer sobre os depoimentos do deputado Luis Miranda e do seu irmão, o funcionário do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda, à CPI, afirmando que houve uma pressão atípica dentro do Ministério para facilitar a compra da vacina indiana Covaxin. Os irmãos afirmaram ter alertado Bolsonaro sobre problemas no contrato, e que o presidente teria prometido acionar a Polícia Federal. Ocorre que nenhum inquérito foi aberto após a conversa.
A confirmar-se que Bolsonaro foi avisado da existência de uma prática criminosa e nada fez para se contrapor a ela, fica caracterizada a prevaricação, um crime de responsabilidade que lhe pode custar o mandato.
Além disso, as negociações para a aquisição da vacina indiana, que ainda nem foi aprovada pela entidade competente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no Brasil, levantaram muitas dúvidas. O que explica, por exemplo, que esta vacina seja mais cara que as da AstraZeneca e da Pfizer? Por que a negociação do contrato foi feita através de uma empresa intermediária, a Precisa Medicamentos, em vez de diretamente com a farmacêutica que produz a Covaxin, a Bharat Biotech? Será porque o dono da Precisa é próximo do atual líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros?
Aliás, a Precisa Medicamentos não tem um passado muito edificante. A empresa é alvo de uma investigação do Ministério Público Federal que apura a venda de testes rápidos à Covid a preços superfaturados e de qualidade inferior.
É a corrupção, estúpido!
Começa a desenhar-se um cenário que não é bonito. A princípio, todos pensavam que o negacionismo de Bolsonaro era o responsável pelo descaso em relação às vacinas, que tanto atrasou o início do processo de vacinação no país. O presidente, aconselhado por uma espécie de Ministério da Saúde paralelo, teria apostado tudo na contaminação o mais rápida possível da população, em busca de uma mirífica imunidade de grupo que resolveria a pandemia sem ter de tomar medidas de paralisação da economia. Seria essa a razão de, por ordem de Bolsonaro, ter havido praticamente um boicote, no início, à vacina chinesa Coronavac e um atraso enorme nas negociações com a Pfizer, que prejudicou o fornecimento atempado de vacinas na quantidade necessária a um país de mais de 211 milhões de habitantes.
Só que a CPI trouxe à luz do dia o outro lado das negociações das vacinas. Por ela, ficámos a saber que enquanto se atrasava o fornecimento de vacinas já aprovadas pela Anvisa, o Ministério da Saúde do general Pazuello negociava secretamente com a indiana Bharat Biotech o fornecimento de 20 milhões de doses da vacina Covaxin, que ainda não obtivera o aval da Anvisa. Ao contrário das negociações com a Pfizer, que demoraram mais de sete meses e suscitaram queixas do governo pelo preço (10 dólares por vacina), as negociações da Covaxin foram concluídas em apenas três meses e o governo não reclamou dos exorbitantes 15 dólares por dose.
Outro negócio muito mal explicado foi revelado pelo Intercept Brasil: o governo federal brasileiro vai pagar mais dois dólares por dose que os governos estaduais da Bahia e do Mato Grosso pela vacina russa Sputnik V. A diferença entre um contrato e o outro é que o do governo federal foi intermediado pela farmacêutica União Química, cujo diretor é um ex-deputado do Centrão. Já os governos dos dois estados negociaram diretamente com o Instituto Gamaleya, o representante oficial da vacina, e obtiveram um preço de 9,95 dólares. O governo federal, representado pela empresa intermediária, aceitou pagar 11,95 dólares. A empresa tenta justificar-se com os encargos de transporte da vacina. Mas a explicação não justifica os dois dólares por dose, ou 40 milhões de dólares no total.
Não faltou o toque mirabolante, que nestes momentos sempre surge, desta vez protagonizado por um ex-polícia militar, com o improvável nome de Dominguetti, que se apresentou à CPI como representante da empresa Davati Medical Supply e disse ter recebido de um funcionário do Ministério da Saúde a proposta de aumentar ao preço final um dólar por dose, na compra de 400 milhões da AstraZeneca. E as negociações estavam a avançar, apesar da gigantesca quantidade de 400 milhões de doses, que nenhuma farmacêutica, e muito menos uma empresa intermediária, poderia garantir.
Enfim, a CPI mostrou ao país que o governo federal boicotara as vacinas de farmacêuticas cujos preços eram públicos e não aceitavam intermediários, para dar preferência a contratos com empresas abertas a pagar comissões e luvas na conclusão do negócio. A questão não era um qualquer negacionismo ideológico. Era corrupção, pura e simplesmente. No caso do Ministério da Saúde, haveria mesmo dois esquemas corruptos concorrentes: o do centrão e o dos militares. Segundo o presidente da CPI, senador Omar Aziz, “fazia muito tempo que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”.
Os comandantes das Forças Armadas e o ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, acusaram o toque e publicaram uma nota oficial declarando que o senador “desrespeitou as Forças Armadas” e “generalizou esquemas de corrupção”, de forma “leviana e irresponsável”.
Regresso do Bolsonaro golpista e das notícias falsas
O avanço das mobilizações e as revelações da CPI puseram Bolsonaro de novo contra as cordas. Renasceu então o Bolsonaro golpista, recurso que o capitão usa como ameaça, e bluff, e também como forma de desviar as atenções. O centro da ameaça, agora, é exigir que o voto, que desde 1996 passou a ser feito através de urna eletrónica, seja também impresso em papel. Imitando Donald Trump, que se opunha ao voto por correspondência e denunciou fraudes sem provas, Bolsonaro começou a dizer que as eleições passadas – incluindo as que o elegeram – foram fraudadas, e que se insistirem em não aceitar o voto impresso pode não haver sequer eleições. O capitão chamou “imbecil” e “idiota” ao juiz Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e membro do Supremo Tribunal Federal, que se opõe à mudança. Barroso respondeu que “qualquer atuação” que possa impedir a ocorrência das eleições presidenciais de 2022 viola princípios constitucionais e “configura crime de responsabilidade”.
Quanto às manifestações que exigem a sua destituição, Bolsonaro tem respondido com “motociatas” (passeatas de motos), que mascaram a escassez de participantes: juntos, alguns milhares de motards parecem muito mais numerosos do que são na realidade. Depois da primeira, realizada em 12 de junho em São Paulo, os bolsonaristas espalharam a notícia falsa de que a “motociata” tinha entrado no Guinness de recordes, o que foi desde logo desmentido pelos responsáveis do famoso livro. Também foi desmentida a alegada participação de mais de um milhão e 300 mil pessoas. A Secretaria da Segurança Pública (SSP) de São Paulo calculou que havia aproximadamente 12 mil motas no desfile aberto por Bolsonaro. Mas o número mais preciso foi o do sistema que regista a passagem de veículos em portagens: 6.661 motas.
O impeachment está garantido?
A resposta é não. Nada garante que Bolsonaro seja destituído antes das eleições de 2022, apesar de a relação de forças estar a inverter-se. E isto porque o presidente do Congresso, Arthur Lira, aliado de Bolsonaro, não parece disposto a desengavetar qualquer pedido de impeachment, mesmo o superpedido entregue a 30 de junho. Por outro lado, não podemos esquecer que a atual Câmara dos Deputados ostenta a composição mais conservadora desde a reconquista da democracia no país, e que o governo ainda mantém uma base parlamentar de apoio: o centrão. É certo que é uma base volúvel, que pode mudar se sentir que a maioria pró-Fora Bolsonaro se agiganta no país. Isso ainda não aconteceu, mas pode vir a ocorrer a qualquer momento.
Se as mobilizações “Fora Bolsonaro” não conseguirem derrubar o atual presidente, este tem hipóteses de conquistar um segundo mandato? Essa possibilidade parece mais longínqua que nunca. É praticamente impossível Bolsonaro sacudir do capote as centenas de milhares de mortes de que é responsável. Mortes que em grande parte poderiam ter sido evitadas. Mortes desnecessárias que ocorreram e ainda vão ocorrer a cada dia que Bolsonaro se mantém no poder.
É por isso que a rejeição ao governo Bolsonaro chegou ao ponto mais alto de sempre: já são 51% os que consideram o governo ruim ou péssimo, segundo a sondagem do DataFolha.
A mesma sondagem mostra o desgaste da imagem de Bolsonaro: a maioria considera o atual presidente “despreparado para liderar o país” (62%), e incompetente” (58%).
Por outro lado, o uso e abuso de notícias falsas por parte do presidente e da sua tropa de choque digital começa a fazer-lhe mossa. A sondagem mostra que, 55% dos inquiridos dizem nunca confiar nas declarações do presidente.
Finalmente, a sondagem mostra que, se as eleições presidenciais fossem hoje, o ex-presidente Lula da Silva derrotaria Bolsonaro por 46% a 25% no primeiro turno, e no segundo turno por 55% a 31%. Bolsonaro também perderia o segundo turno para o atual governador de S. Paulo, João Dória, do PSDB, e para o candidato do PDT, Ciro Gomes.
Seja como for, os dados ainda não estão todos lançados e a possibilidade da destituição de Bolsonaro existe e não é tão pequena. Próxima parada: o Fora Bolsonaro volta às ruas no dia 24 de julho. E os movimentos MBL e Vem Prá Rua, de direita e que tiveram um papel importante nas mobilizações contra Dilma Rousseff convocaram manifestações diferenciadas das da esquerda para o dia 12 de setembro, com o apoio do partido Novo e de parte do PSL, partido pelo qual Bolsonaro foi eleito e do qual se desfiliou posteriormente.
Claramente, ninguém que acompanhe quotidianamente a política brasileira morre de tédio.