RIO DE JANEIRO - Justamente no momento em que o Brasil bate seu recorde diário de mortes por COVID-19, escancarando o grau de desinteresse governamental no combate à pandemia, a famigerada "classe médica" nos presenteia com mais um desgosto. Foi publicado em vários veículos de imprensa um anúncio, assinado por um grupo de médicos, defendendo o "tratamento precoce" para COVID. O texto aponta todo tipo de bobagem como alternativa terapêutica e cita alguns "estudos" (sic) como fonte das informações. Deixo só um trechinho para deixar o leitor enjoado: "não se trata apenas do uso de uma ou outra droga, mas da correta combinação de medicações como a hidroxicloroquina, a ivermectina, a bromexina, a azitromicina , o zinco, a vitamina D, anti-coagulantes entre outras, além dos corticoides que têm um momento certo para sua utilização nas fases inflamatórias da doença".
Na bolha de minhas redes sociais, a crítica a esse despautério foi ampla, tanto de cientistas e trabalhadores da saúde, quanto indivíduos "progressistas", "de esquerda", "anti-bolsonaristas" ou similares. Entretanto, ela foi realizada em duas diferentes formas, que indicam duas faces daquilo que o prof. Luis Correia - sempre mencionado aqui no blog - chama de "o fenômeno hidroxicloroquina". Aproveito para deixar o link para uma entrevista dada por ele ao programa Tertúlia no Youtube, onde o tema é debatido de forma bastante interessante.
Enquanto colegas mais vinculados à questão científica formulavam sobre a necessidade de ensino da "medicina baseada em evidências", discutiam a relevância do maior domínio por parte dos profissionais de saúde dos métodos de análise dos estudos (...), aqueles e aquelas mais atrelados à disputa política expunham não só como a extrema-direita e o governo federal tem estimulado esse discurso lunático que fomenta o uso de terapias não justificadas pela ciência, cheias de efeitos colaterais, mas também cobravam o CFM por medidas enérgicas contra a sanha anticiência e criticavam duramente a prescrição do tratamento precoce por "médicos bolsonaristas".
A "porção política" e a "porção técnica" do "fenômeno hidroxicloroquina", se, absolutamente conectadas em sua origem (o que pode ser tema de outro post), são relativamente autônomas na prática. Deixar de levar em consideração essas dimensões - diferentes, embora unas - pode prejudicar nossas conclusões.
O lado político: cloroquina ou vacina?
Parece cristalino, com o caminhar da sina pandêmica nacional, que não se trata de incompetência, despreparo, falta de planejamento ou semelhantes: a extrema-direita (aqui no Brasil chama-se bolsonarismo) optou conscientemente pelo estado de calamidade sanitária vivido pelas famílias brasileiras há quase um ano. Não me alongarei sobre o tema, objeto de estudo de publicação do CEPEDISA/USP, pois as declarações, as ações e as inações dos protagonistas desse movimento, encarnadas por seu protagonista candidato a ditador, falam por si.
Sem a derrota política da extrema-direita, continuaremos recebendo o pior da interação entre a ameaça biológica e uma sociedade marcada pela desigualdade econômica, pelas opressões racistas, machistas, lgbtfóbicas e regionais, pela saúde pública destruída, entre outros fatores, expressos numericamente pelos recordes diários de mortes.
Ressalto que o bolsonarismo vai muito além de Bolsonaro, envolve outras forças políticas aparentemente não tão "radicais" e seus financiadores, que lucram com tudo isso. Ver um único episódio de telejornal demonstrando as imensas aglomerações no transporte público da São Paulo de Dória, político "pró-ciência" (sic) e inimigo momentâneo (agora que é conveniente...) de Bolsonaro, já é suficiente. Como acabar com a pandemia sem que o povo tenha condições sociais de enfrentá-la? Mais detalhes sobre o que penso politicamente aqui.
Nesse cenário, a lenda do tratamento precoce, propagada pelo governo federal e pela extrema-direita, cumpre várias funções. Podemos listar algumas delas: cria um clima de normalidade e de aparente exagero nas medidas de combate à disseminação do Sars-Cov-2, visto que haveria tratamento eficaz; manipula parcela da população contra entidades-alvo do bolsonarismo, como universidades públicas, hospitais de referência do SUS, Fiocruz, etc; justifica a inação e o desprezo proposital da presidência da república em relação à vacinação, única medida preventiva existente; por fim e talvez mais importante, identifica o foco de combate ao vírus na saúde individual, não na saúde coletiva.
Como nosso foco é no "fenômeno cloroquina", é possível dizer que sua "porção política" tem forte impacto na população em geral, especialmente nos grupos mais inseridos nas redes de fake news. Entretanto, o último ponto do parágrafo anterior justifica a disseminação do paradigma do "tratamento precoce" para além do "bolsonarismo raiz", por razões históricas complexas, que também serão abordadas em outra oportunidade.
No fim das contas, a propaganda feita por governantes, seus movimentos e seus financiadores, de que é possível curar a COVID-19 com cloroquina e ivermectina fortalece a expectativa já difundida de que a cura (não só desse, mas de todo adoecimento) é realizada por médicas, enfermeiras, fisioterapeutas e técnicos de enfermagem. A doença tem foco no indivíduo, e são os medicamentos e as tecnologias clínicas o veículo para transformá-la em seu oposto, a saúde. As mais relevantes medidas para a redução do contágio, as comportamentais (uso de máscaras, distanciamento social, manutenção de atividades em espaços arejados...) e a vacina, passam a não importar tanto quanto sair do consultório com uma receita com 10 remédios "bem potentes".
O lado "técnico": por que médicos prescrevem cloroquina?
Inegavelmente, existem situações em que a resposta para essa pergunta se resume à política: prescrevem porque são bolsonaristas, e é isso que bolsonaristas fazem. Contudo, essa resposta é verdadeira para uma fração médica que me parece bastante minoritária, apesar de barulhenta. Parece-me (e essas são evidências anedóticas, com certeza) que o movimento organizado e de financiamento desconhecido, com explícita coordenação estratégica, é periférico e não é o principal fator condicionante das frequentes prescrições de pílulas inúteis para COVID - o citado prof. Luis exprime posição semelhante em sua entrevista.
Algumas percepções embasam esse argumento. Primeiramente, é notável o declínio da utilização da hidroxicloroquina na prática médica diária em comparação com o início/meio do ano passado, quando quase 90% dos médicos acreditavam que essa bobagem tinha algum efeito real. Adicionalmente, a motivação puramente política não seria capaz de explicar a prescrição de medicações não tão propagandeadas pelo governo federal, mas igualmente não recomendados para casos leves de COVID: zinco, vitamina D, anticoagulantes*, corticoides*, azitromicina, entre outros. Também não explicaria milhares de exames pedidos desnecessariamente, desde marcadores laboratoriais até tomografias de tórax.
Enquanto, sem dúvida, seria inocente acreditar na completa falta de influência do falatório bolsonarista pró-tratamento precoce, suspeito que outros fatores estejam mais frequentemente associados à manifestação clínica do "fenômeno cloroquina":
1- A impressão equivocada de que a melhor opção é sempre "fazer algo", o famoso viés clínico favorável à intervenção (questão amplamente debatida, sobre a qual retornaremos em outra oportunidade);
2- A expectativa do paciente - estimulada pela propaganda de extrema-direita - de receber alguma medicação específica para sua doença, o que gera
3- Uma pressão dos empregadores privados sobre os médicos, visto que contrariar as expectativas de um "cliente" pode implicar reclamações que serão sentidas nas medidas de fidelidade do cliente/de boa aparência da empresa frente ao mercado consumidor (Net Promoter Score, entre outras); e
4- Finalmente, suponho que o mais importante, a péssima capacidade de nossa categoria na análise de evidências científicas.
Esmiuçar essa última afirmação extrapolaria os objetivos desta reflexão, mas não posso deixar de fazer alguns comentários. Nos últimos 30 anos, os enormes avanços no uso de ferramentas epidemiológicas e estatísticas aplicadas à clínica (a chamada "epidemiologia clínica", que viria a dar origem ao movimento chamado evidence-based medicine no início dos 1990) modificaram bastante a prática médica. Discute-se muito como esse avanço científico repercutiu insuficientemente na formação médica, no conteúdo ensinado nas faculdades de medicina (inclusive sendo tema de reportagem recente do Estadão).
Fala-se pouco, todavia, das condições objetivas da carreira que contribuem para o atraso científico de nossos profissionais. Um exemplo basta: espera-se que um residente com carga horária legal de 60 horas semanais (ah, se essa fosse a realidade...) e remuneração de 3330 reais mensais, depois de um dia de trabalho nas condições de um hospital municipal carioca, chegue em casa e estude estatística? No contexto atual, em que o mercado de trabalho possibilita dobrar o seu salário somente com 12 horas a mais de labuta semanal, a escolha é, quase sempre, inequívoca.
Decorre de toda nossa argumentação que, por mais seja necessário, obviamente, defender um posicionamento político do CFM contra a gestão genocida da pandemia perpetrada por Bolsonaro e seus financiadores, eventuais punições/imposições técnicas no tratamento de COVID por parte do Conselho não fazem sentido algum. No que diz respeito à "técnica", milhares de decisões médicas diárias são tão irracionais quanto a prescrição do "tratamento precoce", porém não recebem tanta notoriedade. Destaquemos somente o uso indiscriminado de antibióticos de amplo espectro para pacientes com SRAG-COVID em UTI, que gera seleção bacteriana e o surgimento de cepas multirresistentes.
Deve o CFM proibir também a utilização de antimicrobianos em um CTI? Ou punir um médico que o faz? Quais serão os critérios? Qual linha teórica se seguirá para determinar as condutas? É possível que duas condutas diferentes tenham justificativa técnica bem embasada em evidências? É possível que o mesmo conjunto de dados brutos passe por diferentes análises estatísticas igualmente válidas e os resultados sejam diferentes? Enfim, em que pesem alguns desacordos, sempre vale dar uma olhada no interessante texto do Luis (novamente) sobre o tema.
De forma alguma estou dizendo que não existe decisão certa ou errada, que todas as diferentes formas de adaptar evidências científicas para a clínica são equivalentes ou algo do tipo. Só atento para o fato de que essa distinção pode ser extremamente difícil de fazer, pode exigir anos de pesquisa e de discussão. Existe imenso grau de variabilidade (logo de incerteza) na medicina, impossibilitando a obrigatoriedade de uma condutas previamente formatadas.
Portanto, levando em conta quão irrealizável é o enrijecimento da prática clínica sem causar graves distorções e os diversos fatores que influenciam uma prescrição, algumas propostas se demonstram risivelmente equivocadas. Outro dia, vi uma bem-intencionada jornalista em um blog "progressista" dizer que a receita médica de ivermectina/cloroquina era caso de polícia. Em um grupo de "médicos contra o fascismo", após publicarem uma receita com o lamentável "tudão" para o COVID (uns 10 medicamentos), muita zoação: com certeza o "colega" que prescreveu isso era "anticiência". "Até quando ficarão impunes?", dizia outro.
Pergunto-me se um pente fino bem passado nas condutas de todos esses "cientistas de pandemia" não corroboraria meu argumento de que as irracionalidades da prática médica são bem anteriores (e muitas vezes mais graves e mais frequentes) que dar cloroquina a alguém. Concomitantemente à imolação do "ignorante" prescritor do célebre kit, recebo, em outra rede social, uma "meta-análise" sobre ivermectina em COVID, mostrando um valor de p < 0,001. Será que esses colegas saberiam dizer o motivo dela ser inválida? Não vale dizer que a Sociedade Brasileira de Infectologia não recomenda...
Conclusão: a política aos "técnicos" e a "técnica" aos políticos
O ponto de chegada de nossa dissertação era exatamente expor o "fenômeno hidroxicloroquina" como uma totalidade, com múltiplas determinações. A separação entre "porção técnica" e "porção política" tem fins puramente didático-analíticos, porque, sem dúvidas, ambas são partes do mesmo processo e se interinfluenciam intensamente. Por outro lado, erra quem desconsidera qualquer uma dessas dimensões e, como diz a famosa frase, "quem erra na análise, erra na ação".
Aqueles e aquelas da área da ciência, embora dominem a "medicina baseada em evidências" ou a epidemiologia, muitas vezes entendem que a investigação científica seja "neutra" ou "apolítica", não cabendo ao pesquisador/ao técnico engajar-se politicamente. Com frequência, reduzem o "fenômeno cloroquina" a vieses cognitivos, a preferências individuais, deixando escapar toda uma enorme articulação política (coletiva) com uma nítida estratégia pandêmica: a criação e a alimentação do caos.
Enquanto isso, além do genocídio da COVID-19, a máquina bolsonarista dilapida todo o investimento e a infraestrutura de ciência e tecnologia do país, ao mesmo tempo em que difunde não só o senso comum, mas uma verdadeira agenda anticiência, forçando o país à miséria intelectual medieval. Nesse cenário, qualquer "isenção técnica" resume-se à cumplicidade ou ao desconhecimento de que os diferentes interesses das classes sociais implicam valorações diversas das medidas políticas. Em outras palavras, o que está fazendo a imensa maioria da população sofrer está, indubitavelmente, deixando alguns poucos mais ricos. Acreditar no caráter "apolítico e isento" da ciência é, inclusive, ignorar centenas de anos de formulação teórica das ciências sociais. Desprezar isso é o análogo socio-filosófico, a prescrever cloroquina...Tanto quanto saber ler um ensaio clínico, é função da médica e do médico tomar partido socialmente.
Em contrapartida, nós, militantes políticos, da esquerda mais especificamente (e da área da saúde principalmente), devemos buscar conhecer os mais distintos aspectos daquilo que tentamos influenciar, caso contrário, corremos o risco do descrédito. É incoerente afirmar que um médico que prescreve ivermectina deve ser preso, ridicularizar um profissional que mostra um "estudo positivo" da hidroxicloroquina no tratamento de COVID, mas não reclamar do uso desmedido de antibióticos, da irracionalidade de centenas radiografias de seios de face nas sinusites, das infinitas cirurgias mal indicadas feitas ao longo do ano (...). É também incoerente bater na cloroquina e silenciar quanto aos "meses coloridos", outubro rosa e novembro azul, além de outros debates até mais delicados como o embasamento frágil da cannabis medicinal, da acupuntura, etc.
Em suma: entender o todo é, também, entender as partes. Não desconsiderá-las é a chave para o sucesso. Ir além das aparências, buscando sempre a essência dos fenômenos, tal qual um velho alemão nos ensinou: "(...) aliás, toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas (...)"
*Estes têm função em pacientes hospitalizados. Não cabe debater os critérios de utilização neste momento.
** Tirinha retirada de: https://www.institutoclaro.org.br/educacao/nossas-novidades/podcasts/tiras-do-armandinho-estimulam-a-discussao-de-temas-polemicos-em-sala-de-aula/
Roberto CM, militante da Insurgência no Rio de Janeiro-RJ.