Uma espécie de governo da viração é instaurado de forma bem-sucedida no Brasil: a gestão da sobrevivência é transferida para os cidadãos de forma generalizada
Ludmila Costhek Abílio, Revista Rosa, nº 1 volume 4, 27 de agosto de 2021
Trabalhei em salão de barbeiro, de engraxate, como auxiliar de marceneiro, alfaiate, cozinheiro. E lia muito. Tinha a capacidade de ler e aprender assuntos que se espalhavam de história até ciências exatas. Era o autodidata típico. Em cima do bar em que eu trabalhava, se instalou o curso Riachuelo, um curso de madureza, e pude fazer cinco anos em três. Quando terminei a madureza, fiz o teste para a universidade e passei (Relato de Florestan Fernandes ao programa Roda Viva, 1994).
A uberização se refere a um novo tipo de controle, gerenciamento e organização do trabalho. Longe de estar exclusivamente associada à empresa Uber ou mesmo às plataformas digitais, podemos compreendê-la como tendência que permeia o mundo do trabalho. Em seu cerne está a redução, no presente ou no futuro próximo, de trabalhadores a trabalhadores sob demanda. O termo “redução” expressa o que está em jogo: trabalhadores e trabalhadoras são finalmente utilizados como pura força de trabalho, mobilizada de forma eficiente — por meios que possibilitam o rebaixamento do valor da força de trabalho, ampliam o tempo de trabalho, eliminam poros do trabalho, havendo ainda a intensificação e o uso exato da força de trabalho no tempo efetivo de produção. Esse uso é centralizado e racionalizado por empresas que conseguem oligopolizar seus setores de atuação e que detêm meios técnico-políticos de gerenciamento e de controle do trabalho.
Por essa perspectiva, assistimos no Brasil a uma modernização capitalista. O Estado vem assumindo a linha de frente na legalização e na promoção de trabalhadores sob demanda como trabalhadores formais. A própria categoria de emprego formal foi profundamente transformada (Krein et al., 2018). A reforma trabalhista simplesmente legalizou o trabalho sob demanda por dentro da categoria de emprego formal, seja na figura jurídica do autônomo exclusivo, seja na do trabalhador intermitente. Nesta última, o trabalhador celetista já não conta com qualquer garantia sobre sua remuneração ou tempo de trabalho, está disponível ao trabalho, só é utilizado de acordo com as determinações das empresas e figura como trabalhador formal. Indo além, nas minúcias das dezenas e dezenas de artigos que compõem o cardápio apetitoso da Reforma, o Estado brasileiro encontra meios de igualar legalmente tempo de trabalho a tempo efetivo de produção. O diabo mora nos detalhes, como naqueles que instituem que o tempo de deslocamento da porta da empresa até o posto de trabalho ou o tempo para a troca de uniforme não são mais contabilizados como tempo de trabalho, assim como as horas in itinere. Trata-se, portanto, da busca bem-sucedida de transferir para o trabalhador os poros do trabalho e estabelecer, por dentro da categoria emprego, a distinção entre o que é e não é tempo efetivo de produção. São elementos que integram a complexa cartografia das derrotas vividas pela classe trabalhadora nestas décadas.
Essa cartografia vem dando diversos nós para a crítica, as ações coletivas, o reconhecimento da exploração do trabalho e, o que dizer, para os horizontes de transformação. Em tempos em que a defesa do emprego formal parece algo revolucionário, o que se institui é a informalização como regra. Os referenciais da integração social via emprego vão se diluindo; o cenário dos polos industriais pode se transfigurar, por exemplo, em cidades-fábrica como aquela de Toritama, onde trabalhadores esperam o carnaval chegar nas suas pequenas oficinas non-stop movidas a remuneração por peça. Nesse árido cenário, a crise de horizontes desenvolvimentistas encontra-se de forma bizarra com os decretos marxistas em torno do fim da centralidade do valor-trabalho. Nas bandas de cá, as categorias de análise duais e evolucionistas que, como lindamente mostrou Aníbal Quijano (2005), conferem legitimidade à colonialidade do poder no capitalismo, estão mais vivas do que nunca. O dentro e o fora dos circuitos da acumulação capitalista, o integrado e o descartável, o produtivo e o improdutivo seguem operando nas formas de compreensão da periferia, com seu poder de invisibilização cada vez mais complexo e profundo. A “horda de serviçais”, os trabalhadores informais, a ralé, o subproletariado agora já não são mais invisibilizados por meio da categoria dos que habitam as margens enquanto potenciais integráveis; a anomia deixa de ser um termo durkheimiano para compor perspectivas marxistas que enxergam por todo lado a gestão da descartabilidade social. Entretanto, o que aparece como crise vem se realizando como demolição das barreiras à exploração do trabalho e de seus freios historicamente constituídos e conquistados.
É nesse terreno que opera a uberização. Ela pode ser erroneamente compreendida como um novo tipo de gestão de desempregados e fazedores de bico. Entretanto, o que está em jogo é um gerenciamento do trabalho que materializa processos de informalização [1] que estão mundialmente em curso há décadas. A informalização se refere tanto à multidão de trabalhadores que passam a sobreviver como informais quanto a diversos elementos que constituem o processo de trabalho. Trata-se de uma perda de formas socialmente estáveis, contratualizadas, reconhecíveis, que operam na definição e na regulação do que é o que não é tempo de trabalho, o que é local de trabalho, remuneração, custos do trabalho. Essa perda de formas vem se traduzindo em uma potente transferência de riscos e custos para os trabalhadores, que corre junto com a eliminação de direitos, garantias e proteções associados ao trabalho.
A multidão de entregadores em plena pandemia deixa claro o processo de informalização. São centenas de milhares de trabalhadores informalizados, subordinados a algumas empresas. Estas aparecem como aplicativos de celular, operando o gerenciamento do trabalho por meio das plataformas digitais. Não há processos de seleção ou número de vagas formalmente estabelecidos. Não há contrato de trabalho. Não há pré-determinações formais sobre os instrumentos de trabalho, nem mesmo sobre a experiência profissional do trabalhador. Não há jornada de trabalho preestabelecida, nem mesmo definição estável sobre o valor da hora de trabalho.
Essa ausência de definições é mais um passo do processo de informalização; suas origens podem em alguma medida ser localizadas no que David Harvey definiu como a organização na dispersão (1998), nos processos que se organizam globalmente de dispersão do trabalho e centralização do controle, que também envolvem os novos modelos disciplinares que se instauram com as formas toyotistas de organização. A colaboração torna-se elemento central da gestão do trabalho, o trabalhador participa do incremento de sua própria exploração. Fundos de pensão financiam a arquitetura financeira das metrópoles (Fix, 2006), a remuneração do trabalhador pode incluir a participação nos lucros da empresa, equipes de operários concorrem no chão de fábrica em busca da maior produtividade. Para complicar mais ainda a perda da materialidade do conflito capital-trabalho, a constatação toyotista é de que — em cenários de concorrência, incerteza e ameaça permanente de exclusão —, trabalhadores podem ser excelentes gerentes de si. O engajamento no trabalho se faz na relação com a perda de mediações regulatórias claras sobre o tempo de trabalho, com os processos de terceirização de custos e riscos, com a apropriação produtiva das críticas e resistências ao modelo fordista de organização do trabalho, como bem demonstraram Boltanski e Chiappello (2009).
Portanto, no cerne da redução do trabalhador a trabalhador just-in-time residem as mudanças nos princípios das formas de dominação e exploração do trabalho que ganharam terreno nas últimas décadas. Trata-se de uma transferência não apenas de custos e riscos do trabalho, mas de parte do gerenciamento para o próprio trabalhador. Entretanto, um autogerenciamento que é inteiramente subordinado (Abílio, 2019). Novos modos de subjetivação desembocam em um trabalhador que se administra permanentemente, abrindo os caminhos para a definição de uma subjetividade neoliberal (Dardot e Laval, 2016). Podemos nos distanciar um bom tanto desses autores para vermos que, mais do que um indivíduo-empresa, o que está em jogo é a formação de um indivíduo-gerente de si mesmo, em que nada ou muito pouco está garantido. O deslocamento não é banal, na medida em que retira as fichas do empreendimento de si e as coloca nas formas contemporâneas de controle e gestão do trabalho (Abílio, 2019).
Nesse sentido, o empreendedorismo de si é a materialização obscurecida da redução do trabalhador à força de trabalho, quando ele se torna inteiramente responsável pela gestão de sua sobrevivência. As redes de proteção social historicamente constituídas em torno da categoria emprego — que instituem responsabilidades do Estado e do capital para a reprodução social dos trabalhadores — vão se desfazendo ou reconfigurando; quando persistem, se apresentam de forma instável, seletiva e em permanente ameaça de esfacelamento. Vai restando ao trabalhador a integral responsabilização por sua própria sobrevivência.
Entretanto, esse autogerenciamento não é novidade para trabalhadores e trabalhadoras periféricos. As trajetórias de vida que tecem o mercado de trabalho são na realidade pouco conhecidas, não há nem mesmo a construção de dados que cheguem perto de expressar elementos centrais que formam o mundo do trabalho brasileiro. As categorias estáticas e em geral dualistas não apreendem o trânsito instável e permanente entre trabalho formal e informal, empreendimentos familiares, bicos, trabalhos que nem são reconhecidos como tais. Longe de ter uma vida profissional bem definida, trabalhadores sobrevivem no permanente aproveitar de oportunidades, quando nada está garantido. Alta rotatividade do emprego formal, contratos temporários, redes de agenciamento de trabalho na igreja, cursos de capacitação, programas de geração de trabalho e renda, atividades ilícitas, bicos, empreendimentos familiares em geral rapidamente frustrados, arranjos cotidianos que garantem a sobrevivência e nem aparecem como trabalho são alguns dos elementos que garantem o viver. Metalúrgico, ascensorista, barraca de cachorro-quente, contador em uma cooperativa; copeira e motogirl; técnico em telefonia, repositor de supermercado, vendedor ambulante, motoboy; segurança, vigia, vendedor: estas são algumas das descrições do que é ser um trabalhador periférico.
Estratégias de vida vão compondo não apenas a vida cotidiana de grande parte da população brasileira, mas a realidade do mundo do trabalho brasileiro e, mais do que isso, as formas específicas da exploração, da acumulação e da reprodução social na periferia. Nos anos 1970, Francisco de Oliveira (2003) lançava seu olhar afiado para a informalidade, evidenciando que o que parecia margem, atraso ou resíduo do desenvolvimento estava no centro da transferência de riscos e custos da reprodução social capitalista para os próprios trabalhadores. O “talento organizatório de milhares de pseudo-pequenos proprietários” (Oliveira, 2003, p. 68) pode ser compreendido como esse autogerenciamento subordinado que vai compondo informalmente a infraestrutura, os serviços, a distribuição e a circulação de mercadorias, numa relação íntima com a urbanização, a industrialização e a própria formação da classe trabalhadora enquanto tal.
Nos países do centro, a uberização por meio de plataformas digitais recebe o termo que deveríamos de saída rejeitar. A gig economy, recorrentemente traduzida como economia dos bicos, torna-se uma parte circunscrita de economias do Norte, ganhando visibilidade pelo seu rápido crescimento, a despeito de sua pequena participação (Huws et al., 2018). Se olharmos para a periferia, o que está em jogo não é o fomento de uma “economia dos bicos”, mas um novo tipo de apropriação — monopolizada e produtiva — de modos de vida periféricos. Empresas que já nascem com horizontes de oligopólios, que conseguem entrar e dominar seus setores de atuação, combinando financeirização com novas tecnologias, tornam difícil o reconhecimento e o mapeamento das relações entre exploração do trabalho e valorização. As empresas-aplicativo apresentam-se como mediadoras entre oferta e procura, legalizam-se como empresas de tecnologia. Em realidade, encarnam uma espécie de mão invisível do mercado, regulando a dinâmica da oferta e da procura, definindo o valor e a variação do valor do trabalho, regendo a distribuição do trabalho.
Na linha de frente dos processos de informalização, as empresas-aplicativo não contratam, mas gerenciam contingentes de centenas de milhares de trabalhadores e dominam seus setores de atuação. Colocam em marcha um gerenciamento que se faz na total ausência de clareza sobre as regras que regem o trabalho. A questão não se resolve simplesmente com a demanda por mais transparência. Como diz um motoboy, “estamos num mato sem cachorro, porque os caras robotizaram a gente”. A robotização pode ser compreendida, nesse caso, por meio de um novo meio técnico-político, que possibilita o encontro perfeito entre informalização e trabalho sob demanda. O gerenciamento algorítmico do trabalho possibilita um controle racionalizado e eficiente de enormes contingentes de trabalhadores informais. Neste caso, a informalidade significa uma ausência de prescrição formal do trabalho: “livre como um pássaro” (Marx, 1982, p. 275), o trabalhador será responsável por gerenciar a duração da sua jornada, definir estratégias para garantir em alguma medida sua saúde e segurança, administrar os instrumentos de trabalho e arcar com seu custo.
Trabalhando por metas que ele mesmo define para si, mas que em realidade se referem a quanto precisa minimamente receber para garantir sua própria reprodução social, o coletivo de trabalhadores inicia o dia sem saber quanto tempo terá de trabalhar, como será feita a distribuição do trabalho, nem mesmo qual será o valor de sua hora de trabalho. Suas decisões e estratégias serão vigiadas individual e coletivamente, transformadas em dados que fomentam as determinações que irão constituir o gerenciamento algorítmico do trabalho. Quando chove, quanto será necessário incrementar o valor da hora de trabalho para que o motoboy coloque sua vida ainda mais em risco? As bonificações mensuram a adesão dos trabalhadores ao mesmo tempo que produzem comportamentos e garantem a produtividade. Bloqueios temporários ou permanentes, avaliação dos clientes, ranqueamentos, sistemas de pontuação vão compondo a vida cotidiana e os mecanismos de controle não fixáveis e pouco decifráveis, mas onipresentes.
Empresas-aplicativo vêm criando profissões amadoras, como a dos motoristas da Uber, ou centralizando e fomentando profissões que se reconfiguram profundamente, como os motoboys, que agora viram entregadores, ou os bike boys, ocupação que existia de forma dispersa e agora expande-se de forma controlada junto com a expansão dessas empresas. Para o jovem negro periférico que já nasceu sabendo que nada estava garantido, tornar-se bike boy é mais uma opção do viver temporário-permanente. Para receber em média um salário mínimo por mês, irá trabalhar todos os dias da semana, entre nove e dez horas (Aliança Bike, 2019, p. 6). Disponível, vive pelas praças da cidade, remunerado efetivamente pelo que produz. [2]
A Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike) vem produzindo relatórios sobre esses trabalhadores. Provavelmente, seu objetivo maior é dar subsídios para a legalização da comercialização de bicicletas cargueiras e liberação por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) quanto a Agência Nacional de Transportes Terrestres (antt) da bicicleta como meio para transporte de cargas. O mercado também se torna profícuo para a entrada das bicicletas elétricas, que criarão uma espécie de carreira do entregador: quem puder pagar por mais motor, ganhará melhor. Na comparação entre bike boys contratados por uma empresa terceirizada e bike boys uberizados, os relatórios possibilitam inferir que com a uberização a participação de jovens negros amplia-se significativamente (Abílio, 2020). Ou seja, quanto mais precária e degradada, mais negra.
Longe dos aplicativos, médicos hoje tornam-se guerreiros na batalha interminável. Seu trabalho também se informalizou. Os melhores hospitais da cidade de São Paulo firmam-se como infraestruturas que provêm os meios para que trabalhadores de alta qualificação se tornem trabalhadores sob demanda. Fazendo longas jornadas, sete dias por semana — em tempos “normais” ou pandêmicos —, não contam com qualquer direito, regulação ou proteção associados ao seu trabalho. Longe dos modos de vida periféricos, estão submetidos às mesmas lógicas que hoje controlam o motoboy, apesar da enorme distância social que os separa.
Por fim, em tempos de pandemia, o autogerenciamento que caracteriza modos de vida periféricos e reside no cerne das formas contemporâneas da exploração parece ter ultrapassado o mundo do trabalho. Uma espécie de governo da viração é instaurado de forma bem-sucedida no Brasil: a gestão da sobrevivência é transferida para os cidadãos de forma generalizada. Em outras palavras, sentimos na pele o autogerenciamento submetido a regras obscuras, cambiantes, incompreensíveis; algo que opera como forma geral de governo, mas que se realiza com suas especificidades; no salve-se quem puder como modo de vida ou morte, quem puder mais, salva-se mais. Dessa forma, é preciso compreender a uberização como uma tendência geral que permeia o mundo do trabalho para além das plataformas digitais, mas que se realiza de acordo com as desigualdades que a atravessam, e que também serão reproduzidas e produzidas por ela. Nos processos contemporâneos de centralização do capital, vemos em ato um novo tipo de centralização do controle e da exploração de modos de vida tipicamente periféricos. A informalidade apresenta-se como regra, ganhando sentidos mais amplos e complexos, nas indiscernibilidades que hoje envolvem a relação entre capital e trabalho. A periferia torna-se então espelho das formas contemporâneas da exploração do trabalho e, talvez, das novas formas de governo.
Notas
1 - A definição de processo de informalização dialoga com a de processo de informalidade (Cacciamali, 2000); entretanto, enfoca menos a ampliação da categoria de trabalho informal e mais a perda de formas estáveis e reconhecíveis dos meios de controle, gestão e regulação do trabalho.
2 - A noção de remuneração por “tempo efetivo de produção” é aqui emprestada do Projeto de Lei 3.748/2020, da autoria da deputada Tábata Amaral. O pl propõe a instituição do “Regime de Trabalho Sob Demanda”, que legaliza de vez a figura do trabalhador just-in-time. A esquerda anda tão desnorteada que parece que, por um período, o projeto contou com a coassinatura e o apoio do psol…
Referências bibliográficas
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Ludmila Costhek Abílio é doutora em ciências sociais, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho - Cesit, em artigo publicado na Revista Rosa, nº 1 volume 4, 27-08-2021.