O livro fala de futuro. É verdade. Mas fala sobretudo de presente. Não de um presente estático ou de uma coleção de instantes que, em instantes, já pertencem ao passado, mas de um presente que projeta e que cria e que, por isso mesmo, deve ser (re)pensado.
Sofia José Santos, Esquerda.net, 23 de dezembro de 2021
Quando olhei, pela primeira vez, para o livro “O Futuro já não é o que nunca foi. Uma teoria do Presente” - num exercício de adivinhação – antecipei que o que me esperava era um livro sobre o futuro. Teria, com certeza, traços de presente. Mas seria, em grande medida, um olhar sobre o futuro. Um livro que colocaria a nú o esboroar das promessas que nos fizeram desde que começou o nosso presente e que, perante isso, montaria e desmontaria a nossa necessidade (sem grande escolha) de ajustar, transformar ou inventar, de forma mais ou menos criativa, um novo futuro para onde caminhar. O livro fala de futuro. É verdade. Mas fala sobretudo de presente. Não de um presente estático ou de uma coleção de instantes que, em instantes, já pertencem ao passado, mas de um presente que projeta e que cria e que, por isso mesmo, deve ser (re)pensado (p. 14).
Há, na verdade, duas ideias de presente alinhadas neste livro. Por um lado, a ideia de que o presente de hoje não é diferente do presente de ontem. Por outro, a ideia de que, não sendo diferente, não deixa de ser um tempo de escolha. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que, por um lado, o que temos hoje não é inteiramente distinto do que sempre existiu, do que sempre se viu e que o presente de hoje padece do mal de todos os outros presentes: vive numa simbiose entre a nostalgia de um passado que acarinha e o medo e a fantasia que só o desconhecimento do futuro possibilita. Um passado que se encontra também repleto de fantasmas e remorsos, mas que é branqueado e justificado por uma perspetiva simultaneamente sofisticada e míope, que apenas um olhar a posteriori permite. Um futuro que, para além da dúvida e da incerteza, motiva a criatividade e revela a possibilidade. Uma certa retrotopia, como diria Bauman. Trata-se, pois, de um presente que olha para o passado através de um exercício mais de fantasia do que de memória e que olha para o futuro com a dubiez e a angústia do desconhecido.
Porém, se os vários presentes bebem dos mesmos estados de alma, das mesmas lutas de poder, das mesmas lógicas de dominação e emancipação, também é verdade que os presentes são “incomparáveis”, e que, como diz o autor, a “história não se reencena” porque cada presente faz o seu destino. E é esta certeza que nos leva à outra dimensão do presente neste livro. O presente como consequente, como “o tempo que decidimos com efeitos práticos”, o tempo da escolha perante as bifurcações. Ou seja, o presente como “vontade" (p. 14-15).
Estas duas ideias ou dimensões do presente estão cosidas no livro – tanto no argumento, como na escrita. Ao ler, saltamos entre tempos: do nosso tempo e de todos os tempos. Saltamos entre ideias e histórias, entre argumentos e exemplos, ironias e curiosidades. Como se a leitura do próprio livro refletisse as continuidades entre presentes, mas sem esquecer que cada presente contém em si apontamentos singulares, tanto grandiosos, como cómicos ou mesmo trágicos.
O presente de hoje, no livro, começa a ser contado na atual pandemia. A realidade para a qual nos abre os olhos já estava, porém, instalada. Aliás, o livro é muito claro na identificação da genealogia que desemboca nos nossos dias. Já estávamos, há muito, a chegar aqui. Possivelmente de uma forma não chamativa ou excêntrica, mas a fazer caminho. Ou muito do que se conta sobre este nosso presente não decorresse, em grande medida, da viragem da Google para a exploração de dados, há quase duas décadas (p.16).
No nosso presente, o livro identifica algumas figuras centrais, como o medo, o bufão, o ‘bufonear’, o ‘bufanismo’, o ‘ubuesco’, o ‘burlesco’. Não vou explicar o que cada um é porque essa descrição pormenorizada e irónica de cada uma destas peças e, sobretudo, da ligação que têm entre si e de todas e cada uma delas com figuras e dinâmicas do passado e do presente é uma das partes que eu achei mais deliciosas do livro. Não explicando, devo dizer que todas estas figuras convergem para a descrição e síntese da lógica narcisista, extravagante, caricatural, de poder, de comunicar e de fazer política de líderes como Bolsonaro ou Trump.
Figuras que não só chegam ao poder como inspiram sucessores políticos (como uma viralidade talvez equiparável ao ice bucket challenge – mas desta feita trágica) e promovem a incivilidade no debate político ou a formação e mobilização de movimentos de manosphere, de extrema-direita ou do QAnon.
Como diz o autor, estas figuras são “um carnaval, uma extravagância, uma explosão de narcisismo, uma caricatura (…) mas também de alguma forma “um regime” e “uma regra” (p. 55). São “uma estratégia (…) [que] atua e se nutre da modernidade líquida, do instantaneísmo, da hipercomunicação, do que flui e não do que permanece” (p. 67). É semelhante a carnaval, mas não nos podemos enganar: não é apenas representação, ou performatividade. Antes, estas figuras sintetizam uma visão política.
Elas não são uma novidade: Bolsonaro é presente, Nero é passado. Trump é presente, Napoleão será também, possivelmente, futuro. Nada disto é novo. Tudo já existiu.
Mas se a repetição dos presentes não anula a singularidade do nosso, então, o que há de novo no nosso presente? Quais são as nossas bifurcações? Onde as encontramos?
É neste mapa ou encruzilhada que o livro acontece.
Em resposta ao que há de novo do nosso presente, o livro aponta para as questões da “datificação” e da sociabilidade virtual e “maquinal” que mostram como economia, política, cultura e sociedade não só não são dissociáveis, como o motor principal da bifurcação presente é económica. E tem um nome: “capitalismo de vigilância”.
O capitalismo de vigilância, e cito, “cresce como um vírus, canibalizando o trabalho, a razão, as emoções e a vida”, algoritmizando decisões e bom senso e tornando a democracia “uma excepção, uma aberração [ou cerimónia] tolerada pelas circunstâncias da luta pela legitimidade, [circunstâncias essas] que obrigaram o poder de classe a um discurso inclusivo e que são restringidas pelas tendências autoritárias”. (p. 176)
Neste mapa de encruzilhadas, há, para mim, dois destaques – as redes sociais e os algoritmos. As redes sociais, denominadas, sabiamente, por “tecnologia da infoxicação” e integrantes do “ministério da verdade” têm um trabalho comunicacional, sendo ao mesmo tempo um negócio. Tanto num caso como no outro “o virtual canibaliza o real” (p. 130).
As dietas informativas nas redes sociais são cada vez mais referenciadas por crenças pessoais, sobrevivência e retórica identitária excludente e emoções através das quais a realidade é lida. Estas referências privilegiam não raras vezes processos de conotação que articulam as preocupações de hoje com a preservação de determinadas “comunidades imaginadas(link is external)” passadas.
Nas redes sociais, o valor da informação disseminada não é determinado pelo valor da publicação em si, mas sim pelas interações que gera. Uma grande quantidade de interação pode gerar "viralidade". E a viralidade é ambicionada. E mais conseguida com conteúdos chocantes que geram e movimentam sensações de ameaça, medo, e segurança e insegurança, potencialmente criando “pânico moral(link is external)”, promovendo dicotomias populistas e segregação ideológica.
A lógica algorítmica da web e o poder organizativo e modelador dos algoritmos são igualmente importantes. Fora das redes, com toda a certeza. Mas também dentro das redes e da internet, no geral. Aqui a estrutura tecnológica determina o conteúdo que circula, estipulando: o que importa, quem importa e porque importa. Contrariamente às regras constitutivas ou reguladoras das sociedades, as opções dos algoritmos são tendencialmente invisibilizadas e, consequentemente, não sujeitas a debate. Porém, elas detêm o poder político de curadoria na definição da agenda e na forma como se escolhe apresentar (e, por isso, debater) questões, grupos, temáticas ou acontecimentos. Ao decidir a informação a que temos acesso, bem como a sua hierarquia (compondo, por exemplo, o nosso feed das redes sociais), os algoritmos acabam por condicionar fortemente o debate público e político nas sociedades atuais: visibilizam e invisibilizam determinadas vozes, agendas e narrativas. Também há que mencionar que a internet é virtualmente acessível por todas e por todos, mas o nosso acesso é individualizado. Há uma comunidade, mas ao mesmo tempo uma atomização. E nesse acesso individualizado, feito à medida, deixamos muitas vezes de conseguir discernir o que é real e o que é manipulado. Alguns serviços na internet são tão hegemónicos que, em alguns casos, se podem mesmo confundir com a internet em si. Ou seja, navegar na internet pode significar aceder à promessa de informação sem barreiras, mas apenas navegar no algoritmo individualmente personalizado criado pelo Facebook. A esfera pública passa a ser, assim, condicionada por limites definidos em privado e orientados para o lucro. Falamos e interagimos com quem quisermos, mas quase sempre nas regras das redes sociais. Temos acesso a informação que pensamos ininterrupta e sem barreiras, mas que se nos apresenta por ter sido selecionada com base em algoritmos de pesquisa produzidos por empresas, alegando dar-nos os resultados que queremos e procuramos. O livro fala de tudo isto.
Que desafios traz a sua leitura? O que angustia face ao presente e que angústias são essas que o passado não ensina a contornar ou a reinventar?
Se nada é novo, também é verdade que temos a “certeza de que ainda não vimos tudo” (p. 67). Esta incompletude do horizonte prende-se muito com uma lógica de escala que não tem só a ver com progressão, como nos diz John Brodie Donald(link is external). Quando as coisas são mais pequenas ou eventualmente maiores, os princípios fundamentais que as apoiam ou que elas próprias criam e sustentam são, na sua essência, os mesmos. Ou seja, a diferença é apenas uma questão de escala. No entanto, quando há uma progressão de tamanho, não é apenas a escala que muda. As especificidades resultantes da escala tornam o sujeito ou o objeto (dependendo do que estivermos a considerar) fundamentalmente diferente de outros seus semelhantes mais pequenos ou maiores.
Nesta linha, podemos dizer que a datificação, a sociabilidade virtual e a algoritmização aprofundam apenas a escala de dinâmicas já existentes. Porém, ao fazê-lo com tal velocidade e tal imaginação tecnológica, tornam-nos muitas vezes incapazes de identificar e antecipar as implicações e consequências distributivas para as quais nos empurram. As transformações são tantas, tão profundas, tão rápidas e surpreendentes que me sinto, por vezes, como a formiga, numa das célebres analogias do Neil deGrasse Tyson(link is external), presa na sua bidimensionalidade. Fechada nessa sua condição, a formiga não consegue conceber a verticalidade. Mas não é por isso que é imune à sua existência. Aliás, pelo contrário, a existência desta terceira dimensão tem impactos diretos na sua vida e mesmo na sobrevivência. A formiga pode não conseguir ver um pé que cai dos seus céus, mas não é por nunca o conseguir ver ou materializar que a formiga está a salvo.
Este livro contribui precisamente para a compreensão do que podemos considerar um novo turbilhão ou uma nova dimensão das nossas vidas que o termo ‘virada digital’ tenta sintetizar, mas que nunca conseguimos descrever na totalidade. Fâ-lo problematizando os três poderosos movimentos de fundo que geraram a bifurcação em que estamos hoje: a “potenciação do capitalismo de vigilância”, a “multiplicação de instrumentos de tecnologia de conformação e tribalização” e a “redução da democracia a espaços de representação cerimonial polarizando a política através da bufonaria” (p.16-17). Este gancho, identificando a força motriz, pode-nos elevar e emancipar da bidimensionalidade da formiga, pôr em cima dos ombros dos gigantes, dar uma visão para o presente e futuro e, pelo caminho, dar alguma esperança à formiga.
Intervençao de Sofia José Santos, em sessão de apresentação em Coimbra do livro “O Futuro já não é o que nunca foi” de Francisco Louçã, julho de 2021, Bertrand Editora