Mariana Alvim, BBC News Brasil, 3 setembro 2020
A segunda-feira, 24 de agosto, foi um dia "histórico", segundo médicos e representantes do governo federal, entre eles o próprio presidente Jair Bolsonaro, reunidos no evento Brasil Vencendo a Covid, no Palácio do Planalto.
Apesar do nome, os dados daquele dia mostram que o país estava longe de uma vitória — naquele dia, o Brasil passou a marca de 115 mil mortes por covid-19 de acordo com o Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), mantendo o Brasil na segunda posição mundial em números de casos e óbitos pela doença, atrás apenas dos Estados Unidos.
Mas, na cerimônia, cujo vídeo foi disponibilizado pelo Planalto, o tom dos discursos era laudatório — os médicos ali presentes, representando segundo eles 10 mil colegas mobilizados através das redes sociais, entregavam ao presidente uma carta que carregava o que seria uma solução para combater a Covid-19 com mais eficácia.
A resposta estaria no tratamento precoce, uma combinação de medicamentos já usados para outras doenças cujo a prescrição desde os primeiros sintomas evitaria o agravamento da infecção pelo novo coronavírus.
Diferente do sugerido por eles, entretanto, associações médicas e a Organização Mundial da Saúde (OMS) consideram que não existe nenhum tratamento específico, comprovado e seguro para a covid-19. Sociedades científicas já manifestaram preocupação com a propagação do tratamento precoce, conforme mostrou a BBC News Brasil em julho.
"Esse ato simbólico, digo que é profético: é possível mudar essa história (da pandemia)", exaltou Raissa Soares, médica clínica que atua na Bahia. "Pacientes, população: vocês não precisam mais se desesperar com o vírus. Não estou dizendo que o vírus não mata; estou dizendo que nós temos algo embasado em mentes brilhantes que estão aqui representadas", disse Soares, que ao fim da fala pediu um minuto de silêncio em homenagem às vítimas da doença.
"Aqui estão representados médicos dos 27 Estados. Não representamos nossos colegas na grande massa, mas representamos os médicos que optaram pela ousadia. Nós representamos os médicos que, independente das evidências lá de abril, ousaram ter lucidez. Ousaram aplicar algo que lá no início, em abril, era uma tentativa. E nós fomos açoitados, ridicularizados, nós fomos humilhados", disse, se referindo ao uso experimental da cloroquina e sua derivada, caracterizada pela médica no discurso como "nossa linda e velha hidroxicloroquina".
A cloroquina e seus derivados, defendida por Bolsonaro no uso contra a covid, fazem parte do combo de medicamentos incluídos no tratamento precoce. Sobre esta abordagem, o governo já havia chancelado seu apoio em maio, quando publicou diretrizes para o "manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da covid-19".
Abrindo o evento, Arthur Weintraub, assessor-chefe adjunto da assessoria especial do presidente e irmão do ex-ministro da Educação, foi apresentado como interlocutor entre o governo e o grupo.
Segundo discursou Weintraub, a carta e o evento foram iniciativas voluntárias dos médicos, com quem está em contato desde fevereiro.
"É uma grande uma honra estar participando de um evento histórico aqui no Palácio do Planalto, totalmente voluntário e de iniciativa dos médicos", comemorou o assessor, o primeiro a falar no evento.
"São todos médicos que trabalham no frontline, na linha de frente, que sabem o que está acontecendo empiricamente. 'Ah, mas não há estudos científicos'... Os médicos estão vendo o que está acontecendo", rebateu Weintraub a uma objeção hipotética.
Uma semana depois do evento, a BBC News Brasil não teve atendido pedido de entrevista com Arthur Weintraub feito à Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) e tampouco a solicitação feita de acesso à carta.
Também não foram atendidos pedidos de entrevistas, através de seus locais de trabalho e suas redes sociais, com os médicos que discursaram no evento — os anestesiologistas Luciano Azevedo e Luciana Cruz, e a clínica Raissa Soares. Nas ligações, foi solicitado à reportagem deixar um telefone de contato, para que o próprio médico retornasse — o que nunca aconteceu, mesmo após insistência.
Com isso, não foi possível obter respostas sobre como foram contabilizados os 10 mil médicos citados pelo grupo; nem obter informações que embasam a defesa do "tratamento precoce" ou detalhes sobre a organização do evento.
Por outro lado, o material produzido pelo grupo na internet é farto — e mostra os argumentos, hashtags e ícones do movimento.
Exemplo de distribuição do tratamento em Belém
No Instagram, os médicos que discursaram no Planalto postaram várias imagens do evento — mostrando, inclusive, que estiveram presentes pessoas que se destacaram na abordagem bolsonarista da pandemia, como a médica Nise Yamaguchi e o empresário Carlos Wizard, que chegou a ser conselheiro do Ministério da Saúde.
Como nas máscaras usadas por vários médicos no evento, estampando a frase "Eu sou médico, apoio tratamento precoce", nas redes os participantes do grupo usam molduras nas fotos de perfil dizendo "Eu apoio o tratamento precoce". Com hashtags próprias, eles compartilham também telefones de médicos por Estado que seguem a linha por eles defendida.
Respondendo a uma pergunta da jornalista Leda Nagle sobre o tamanho do movimento, em entrevista de julho, a anestesiologista Luciana Cruz afirmou que, "se juntarmos o (grupo) Médicos pela Vida, Brasil Vencendo a Covid, devemos ter próximo de 10 mil médicos". Os outros dois médicos que discursaram no Planalto, Raissa Soares e Luciano Azevedo, também já foram entrevistados por Nagle.
"Eu, junto com uma amiga (médica) do Pará, tivemos a ideia de formar mais alguns grupos em outros Estados, inicialmente com alguns amigos da faculdade. (...) Fomos formando no Maranhão, Tocantins, e acabamos encontrando outros grupos que já tinham se formado em outros Estados", afirmou Cruz, em entrevista publicada no YouTube.
São frequentes transmissões ao vivo com participantes do grupo, que têm também representantes com canais próprios no YouTube.
De acordo com discursos no Planalto, os grupos em aplicativos de mensagens discutem casos de seus pacientes e estudos científicos publicados pelo mundo.
Mas os representantes do movimento também costumam criticar o meio científico tradicional, apontando por exemplo supostas falhas na produção de periódicos renomados. As referências deles são médicos que reivindicam a autoria de "protocolos" próprios de tratamento, com diferentes combinações de remédios, posologia, fase e gravidade da doença.
Um dos casos de sucesso para o grupo, frequentemente reproduzido nas redes, viria da Unimed Belém, que chegou a doar doses de azitromicina, cloroquina e ivermectina para secretarias de saúde do Pará — um texto no site do plano afirma que "cabe aos municípios a distribuição dos comprimidos de forma segura, racional e para o paciente com receita médica que já tenha sido avaliado por um especialista". Estes medicamentos fazem parte do "tratamento precoce" defendido pelo grupo.
Em seu discurso no Planalto, Cruz falou da experiência em Belém, sua cidade natal. "A Unimed Belém distribuiu mais de 55 mil tratamentos, e o plano de saúde tem um controle mais rígido sobre seus usuários", relatou. "Os retornos foram: uma queda abrupta na solicitação de leitos (...) Nenhum óbito por arritmia relacionada ao uso de hidroxicloroquina ou cloroquina", afirmou Cruz, cujo registro médico consta em São Paulo.
Contatada pela BBC News Brasil, a Unimed Belém respondeu em nota que "não ocorreu distribuição de tratamentos e muito menos de remédios de forma indiscriminada, e sim fornecimento de medicação mediante receita médica". Perguntada sobre dados e resultados da experiência no Estado, o plano respondeu que "é uma cooperativa de trabalho médico, sem fins de pesquisa e/ou publicações científicas".
"Por fim, ressalta-se que a Unimed Belém não 'adota' nenhum tratamento. Os médicos, de acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Médica Brasileira (AMB), têm, no Ato Médico, a liberdade de prescrição. A cooperativa apenas disponibilizou as medicações que estavam sendo prescritas pelos seus médicos."
Em sua fala, o médico Luciano Azevedo — anestesiologista com registro também em São Paulo, após passagens pelo Pará e Amazonas — mencionou igualmente o CFM e a AMB, afirmando que "o apoio e a determinação dos órgãos de classe" foram "fundamentais".
"Através de suas resoluções, na excepcionalidade da situação, no período de pandemia, nos concedeu liberdade de prescrição e uso off label (uso diferente ao que está indicado na bula; por exemplo, como seria a cloroquina para a covid-19, já que o remédio é destinado ao tratamento de malária) dos medicamentos pelos pacientes que desejarem ser tratados. O CFM garantiu a autonomia dos médicos nesse país", comemorou Azevedo, responsável por entregar a carta dos médicos a Bolsonaro, o que fez logo após afirmar que "Brasil Vencendo a Covid-19 já é uma história real de vitória".
O anestesiologista também se dirigiu ao presidente para dizer que ele havia sido "corajoso" em tomar cloroquina: "Senhor presidente, o senhor foi corajoso na decisão de apoiar o atendimento precoce há meses. E a sua coerência foi demonstrada quando o senhor adoeceu e se submeteu a esse mesmo tratamento que estamos oferecendo aos nossos pacientes."
Em resposta à BBC News Brasil por email, o CFM afirmou que não tem vínculo com o movimento Brasil Vencendo a Covid-19, mas decidiu em parecer de abril que médicos têm autonomia para prescrever a cloroquina, o que é condicionado também a autorização do paciente.
"O profissional fica obrigado a explicar ao doente que não existe, até o momento, nenhum trabalho científico, com ensaio clínico adequado, feito por pesquisadores reconhecidos e publicado em revistas científicas de alto nível, que comprove qualquer benefício do uso das drogas para o tratamento da covid-19. Ele também deverá explicar os efeitos colaterais possíveis, obtendo o Consentimento Livre e Esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso", diz um comunicado de abril do CFM.
A AMB não respondeu a um pedido de posicionamento feito pela BBC News Brasil.
Bolsonaro e a 'liberdade' do médico
A garantia de "liberdade" para médicos e pacientes motivou o presidente Jair Bolsonaro a apoiar o tratamento precoce, segundo discursou seu assessor, Arthur Weintraub.
"O presidente sempre tratou da seguinte maneira: o médico tem que ter liberdade para tratar o seu paciente; e o paciente tem que ter liberdade de escolher seu médico e poder usar o remédio, se necessário", afirmou Weintraub, apontando que "a questão da hidroxicloroquina e da cloroquina atingiu um patamar de discussão mais ideológica do que científica".
"O presidente sempre disse: 'olha, fazer mal não é possível que esse remédio faça, porque é utilizado há 70 anos'. E se for apenas um placebo, então não vai fazer mal. Se o médico quer indicar, e é off label, tantas coisas lá atrás, tantos remédios foram usados off label e depois funcionaram", defendeu o assessor do presidente.
No evento de 24 de agosto, Bolsonaro foi o último a discursar, por pouco mais de dez minutos. Além de agredir verbalmente jornalistas afirmando que as chances de sobreviver à covid-19 era menor em "bundões" como os profissionais da imprensa — apontando como exceção o jornalista Alexandre Garcia, que estava entre os convidados do evento —, Bolsonaro agradeceu a presença e o trabalho dos médicos.
"Pior do que uma decisão mal tomada é uma indecisão. Então, vocês salvaram milhares e milhares de vidas pelo Brasil. E se a hidroxicloroquina não tivesse sido politizada, muitas mais vidas poderiam ter sido salvas nestas 115 mil (mortes) que o Brasil chegou", declarou o presidente.