O abandono do cardápio local e a adoção de comida ultraprocessada faz com que habitantes de áreas rurais se alimentem como os dos centros urbanos.
Ricardo Machado entrevista Gabriela Nardoto. Edição Patricia Fachin, IHU Unisinos, 9 de dezembro de 2020
"Quanto maior o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH de uma localidade, maior é o acesso aos alimentos ricos em proteínas, como aqueles que vêm do gado, como leite, queijo; mas, principalmente, os derivados de frango, porco, como os embutidos e enlatados", diz a bióloga e professora da Universidade de Brasília - UnB, Gabriela Nardoto, à IHU On-Line. Segundo ela, os estudos também indicam que há uma "perda da identidade alimentar" em várias regiões do país, como na Amazônia, cujas populações consomem mais produtos industrializados, como frango congelado, bolachas, embutidos e refrigerantes. "Além de dinheiro, essas pessoas também precisam de educação alimentar. O grande desafio está então em relacionar educação e a prevenção de doenças relacionadas ao abandono progressivo dos alimentos locais e à adoção de alimentos processados. Para mim, este é o maior gargalo que temos para haver avanços expressivos para garantir a soberania alimentar em nosso país", afirma.
IHU On-Line - De um ponto de vista mais amplo, como podemos entender a distribuição e consumo de alimentos pouco processados e ultraprocessados nas diferentes regiões brasileiras?
Gabriela Nardoto - Antes de mais nada, a todos que tiverem interesse em entender as diferenças entre os tipos de alimentos que consumimos e o quanto de cada categoria deveria constar nas nossas refeições, sugiro o “Guia alimentar para a população brasileira”, uma publicação do Ministério da Saúde, disponível a todos na internet. Já no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE estão disponíveis as diferenças no consumo dos tipos de alimentos (in natura, processados e ultraprocessados) em cada região geográfica brasileira. Os dados são da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: Análise do Consumo Alimentar Pessoal no Brasil, divulgada em agosto de 2020, pelo IBGE.
IHU On-Line - Qual a correlação entre consumo de alimentos pouco processados e ultraprocessados quando comparamos com o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH das diferentes regiões? O que isso indica?
Gabriela Nardoto - Quanto maior o IDH de um município brasileiro, maior é o acesso de seus habitantes a fontes proteicas de origem animal e a alimentos processados e ultraprocessados. O IDH é usado para comparar e classificar localidades pelo seu grau de desenvolvimento humano. Ele é formado pelos indicadores de expectativa de vida ao nascer, educação e PIB per capita. É um indicador do padrão de vida de uma população, de acordo com dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD. No Brasil, ele é calculado por município.
Associamos o IDH do município com a proporção dos isótopos de carbono nas unhas dos habitantes do município. O carbono presente nos alimentos que ingerimos, ao ser assimilado, vai para os nossos tecidos, e a queratina da unha é uma proteína que marca muito bem os isótopos estáveis de carbono dos alimentos. Como conseguimos diferenciar o carbono que vem de alimentos in natura daquele que está associado aos alimentos que são processados, e principalmente os ultraprocessados, conseguimos correlacionar o IDH com a proporção de isótopos de carbono nas unhas. E a conclusão foi que, quanto maior o IDH de uma localidade, maior é o acesso aos alimentos ricos em proteínas, como aqueles que vêm do gado, como leite, queijo; mas, principalmente, os derivados de frango, porco, como os embutidos e enlatados. Com isso, conseguimos um método que mostra claramente a relação da alimentação com a qualidade de vida, através do IDH. Ou seja, não indica somente se a população está comendo bem ou mal, mas qual é a relação da alimentação com os indicadores do IDH do município.
IHU On-Line - Poderia explicar o que são isótopos e como a presença de diferentes tipos de isótopos nas unhas indica o tipo de dieta seguida por uma pessoa?
Gabriela Nardoto - Isótopos são variantes de um mesmo elemento químico que diferem no peso do núcleo atômico. O número de prótons é constante dentre essas variantes, mas o número de massa varia, tornando um isótopo ligeiramente mais pesado que seu par isotópico. Incluem-se no grupo dos isótopos estáveis mais utilizados os seguintes pares: carbono-12 (leve) e carbono-13 (pesado); nitrogênio-14 (leve) e nitrogênio-15 (pesado). A proporção entre o isótopo pesado e o leve destes elementos (denominada razão isotópica) varia conforme esses elementos circulam pela natureza, como no caso do carbono que passa da atmosfera na forma de CO2 para o interior das folhas, onde é transformado em glicose pelo processo da fotossíntese. Os animais (inclusive nós, humanos), ao consumirem plantas, estão incorporando a razão isotópica das plantas em seus tecidos (unha, pelo, osso, músculo) e essa transferência ocorre ao longo de toda a cadeia trófica. Quando comemos carne de boi, em termos isotópicos, na verdade estamos comendo indiretamente capim! Quando comemos peixes, estamos na verdade comendo fitoplâncton (pequenas algas) ou peixes pequenos que alimentaram os peixes maiores.
Desta forma, podemos usar os isótopos de carbono como um indicador de mudança nos padrões alimentares, uma vez que a dieta do brasileiro, que até então era baseada em alimentos oriundos de plantas do tipo fotossintético C3, como o arroz e o feijão, tem se tornado cada vez mais composta por alimentos originados de plantas C4, como o milho, presente na ração de diversos animais e as pastagens para alimentar o boi. Vale lembrar que os alimentos C4 in natura em si, não necessariamente fazem mal à saúde. O problema é como são processados, o que faz com que tenham alto teor de gordura, sal e açúcar, tornando-se cada vez mais ultraprocessados.
IHU On-line - Para um público não especializado no tema, você poderia explicar como se deu a pesquisa sobre a impressão isotópica nas unhas e como se chegou aos resultados publicados no recente artigo publicado na revista Science of Food?
Gabriela Nardoto - Este nosso trabalho começou em 2002, com foco nas diferentes regiões geográficas no mundo. Em 2006, publicamos um artigo em que constatamos a existência de um padrão na alimentação do brasileiro que era diferente daqueles dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia, com um predomínio do sinal C4 nas áreas urbanas. Em seguida, começamos a olhar para as diferenças entre a zona rural e a urbana no Brasil, começando pela Amazônia, onde imaginamos a existência de um vínculo mais forte com os alimentos produzidos regionalmente, como o peixe e a farinha. No entanto, já com os primeiros resultados notamos uma certa perda da identidade alimentar dessas populações com a introdução de alimentos industrializados, como frango congelado, bolachas, embutidos e refrigerantes, em suas dietas.
A partir daí, foi um projeto atrás do outro, com parcerias no Brasil todo, da Amazônia ao Sudeste, passando pelo Nordeste, com várias instituições, como a Universidade de São Paulo - USP, Universidade Federal do Amazonas - UFAM e Universidade Estadual do Rio Grande do Norte - UERN. Temos dezenas de publicações e fomos criando um banco de dados gigantesco, com mais de cinco mil unhas. Ao começar a ler sobre a relação do IDH com fatores como obesidade e a relação disso com o tipo de alimento ingerido, levantamos a hipótese da relação do IDH com os isótopos de carbono, o que culminou nesse artigo publicado recentemente na NPJ Science of Food.
IHU On-Line - Como esta pesquisa ajuda a compreender o perfil socioeconômico das pessoas? Como ela pode ajudar, por exemplo, em políticas públicas de combate às desigualdades?
Gabriela Nardoto - Como o IDH é formado pelos indicadores de expectativa de vida ao nascer, educação e PIB per capita, ele acaba sendo um indicador do padrão de vida de uma população. No Brasil, ele é calculado por município, ao correlacionarmos os valores isotópicos médios de carbono de um município de região mais desenvolvida do país, onde o consumo de alimentos processados e ultraprocessados prevalecem, e comparando com aqueles de regiões menos desenvolvidas, onde o consumo in natura prevalece. Assim, conseguimos um balizador para o alto consumo de alimentos ultraprocessados e o grau de aderência à conhecida dieta do supermercado, que está relacionado com o processo de transição nutricional, mostrando que isso já ocorreu nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, enquanto nas demais regiões este processo ainda está ocorrendo. Desta forma, este balizador pode ser usado como um indicador mais objetivo para auxiliar em tomadas de decisão mais regionalizadas, ressaltando as diferenças entre as regiões brasileiras, em vez de mantermos políticas generalizadas para todo o território nacional.
IHU On-Line - O que o estudo mostra é que a renda das pessoas está diretamente ligada ao tipo de alimentação que seguem. Como entender as complexidades dos resultados obtidos, uma vez que alimentos ultraprocessados, consumidos nas regiões de maior IDH, não são os mais saudáveis?
Gabriela Nardoto - Realmente isso é muito interessante. Mas se pararmos para observar, no Brasil, as famílias com maior rendimento têm condições de comprar alimentos mais variados. A renda permite que essas pessoas façam opções por esses alimentos mais industrializados, que embora não tenham uma qualidade nutricional muito desejada, custam mais caro, como mostra o levantamento do IBGE. Por outro lado, muitos países europeus estão adotando um caminho inverso, em que pessoas com maior poder aquisitivo, que querem ter uma qualidade de vida melhor, estão voltando a se alimentar com os chamados alimentos verdadeiros, que vêm diretamente da horta e do campo, que não são ultraprocessados. No entanto, esse movimento é muito restrito ainda no Brasil, pois quando olhamos para a população brasileira em geral, estamos muito longe disso.
IHU On-Line - Sobre o maior consumo de alimentos pouco processados no Nordeste e Norte brasileiro, uma dúvida: a pesquisa indica se as pessoas estão se alimentando suficientemente ou apenas indica o tipo de consumo? Que outros dados nutricionais são levados em conta na pesquisa?
Gabriela Nardoto - Nossa pesquisa indica o principal tipo de alimento que essas pessoas estão consumindo, mas como é um método semiquantitativo, como explicado na pergunta dois acima, esta correlação encontrada não indica os níveis nutricionais e a ingestão diária de caloria, em termos quantitativos. Esta correlação é um indicador, mas não um quantificador calórico. Podemos fazer inferências indiretas, e se usarmos alguns instrumentos complementares, como a escala EBIA, como fizemos neste artigo: Rodrigues et al. 2016 - Food Insecurity in Urban and Rural Areas in Central Brazil: Transition from Locally Produced Foods to Processed Items, Ecology of Food and Nutrition, DOI: 10.1080/03670244.2016.1188090. Nesse trabalho conseguimos mostrar a relação entre as proporções dos isótopos de carbono e nitrogênio presentes nas unhas e a insegurança alimentar em populações rurais do Brasil Central.
IHU On-Line - Qual a importância de se levar em conta estes dados da pesquisa para pensarmos políticas públicas de combate à fome e de garantia da segurança alimentar?
Gabriela Nardoto - Quero deixar claro aqui que não sou contra a melhoria das condições de vida das populações que vivem em locais remotos do país. Mas o abandono progressivo do cardápio local e a adoção de um menu com comida cada vez mais processada colocam os habitantes destas áreas mais rurais num impasse similar ao do homem urbano: com mais dinheiro no bolso, adotam um estilo de vida sedentário, em que se come mais, embora frequentemente pior. Além disso, há um expressivo aumento no consumo de gorduras, açúcares e sal.
Por um lado, é louvável que esses habitantes se beneficiem de políticas públicas inclusivas, como o que tem ocorrido ao longo das últimas décadas. Por outro, esse tipo de alimentação pode trazer danos à saúde e provocar uma desorganização sociocultural nessas comunidades. Além de dinheiro, essas pessoas também precisam de educação alimentar. O grande desafio está então em relacionar educação e a prevenção de doenças relacionadas ao abandono progressivo dos alimentos locais e à adoção de alimentos processados. Para mim, este é o maior gargalo que temos para haver avanços expressivos para garantir a soberania alimentar em nosso país.
IHU On-Line - Em que outras áreas as técnicas empregadas neste estudo podem ser utilizadas? Qual o potencial de uso da técnica desenvolvida?
Gabriela Nardoto - Este estudo pode ter aplicações diversas, incluindo a forense, que é a ciência que reúne técnicas para desvendar crimes e aspectos legais. Estamos trabalhando com a Polícia Federal para ajudar, por exemplo, a encontrar pessoas desaparecidas, que é um problema sério no Brasil. É um trabalho para encontrar indicadores que possam restringir a área de onde aquela pessoa possa ter vindo – para então, tentar a identificação da pessoa usando a análise genética. Criamos um mapa que ajuda a saber se a pessoa desaparecida é de uma determinada região ou se veio de outro estado. Como as variações na razão isotópica do carbono, assim como de outros elementos como o N, O e H, são reguladas por fatores peculiares que predominam em uma determinada região geográfica, podemos usar este fato para utilizar os isótopos estáveis como “traçadores” da origem geográfica de um determinado material de interesse, como unhas ou cabelo. Desta forma, assim como DNA indica a origem paterna/materna, os isótopos estáveis indicam a origem geográfica de uma determinada pessoa.
Este mesmo raciocínio pode ser usado para diferenciar animais de origem silvestre daqueles criados em cativeiro, no controle da captura de animais na natureza para fins de conservação da espécie ou para detecção de fraudes de rotulagem em alimentos de origem animal.
Gabriela Nardoto é graduada em Ciências Biológicas e mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília - UnB, e doutora em Ecologia Aplicada pela Universidade de São Paulo - USP. Atualmente, leciona no Departamento de Ecologia da UnB e é presidente da Rede Nacional de Isótopos Forenses - RENIF.