Não se vencerá o fascismo cortejando os liberais; mas, ao contrário, propondo vida baseada no comum e no cuidado. O feminismo tem um papel – desde que deseje transformar a sociedade, em vez de ver-se “representado” nas estruturas de poder.
Nuria Alabao, Nueva Sociedad/Outras palavras, 20 de maio de 2022. Tradução de Vitor Costa.
Que ferramentas o feminismo nos fornece para aprofundar a democracia? O feminismo que alicerça nosso movimento autônomo entende a democracia como algo que está sendo feito continuamente. Ou seja, consideramos que ela precisa de uma sociedade forte e organizada que pressione constantemente pela redistribuição de poder e recursos. Seu sujeito político é configurado por uma soma de lutas em curso.
A questão do conteúdo da democracia esteve em evidência no ciclo anterior de protestos, desencadeados em resposta à crise de 2008 e suas consequências sentidas diferentemente nos contextos locais. De Tahrir, no Cairo, à Puerta del Sol, em Madri, de Syntagma, em Atenas, à Plaça Catalunya, em Barcelona ou ao Zuccotti Park em Nova York, nós, manifestantes, invocávamos o significante “democracia” repetidas vezes. Mas qual democracia? Não foi a dos partidos, a das câmaras de deputados fechadas para as necessidades e vontades da maioria; seria uma “verdadeira”, que construiria o poder do cidadão contra a ditadura financeira, os interesses escusos e os políticos profissionais. Naqueles eventos, um sistema de representação em crise foi desafiado, uma demanda que hoje parece estacionada diante de necessidades mais urgentes: frear as mudanças climáticas – um problema cujas soluções parecem muito distantes – ou a ascensão da extrema direita e do pós-fascismo que, em alguns lugares, identificamos como a maior ameaça a essas democracias imperfeitas que desafiávamos ontem.
Estávamos diante de uma bifurcação: se não fôssemos capazes de frear a solução antissocial para a crise, e se em vez do aprofundamento democrático aparecesse o medo, os “homens brancos furiosos” chegariam e uma parte da população os seguiria. Mas naquela época ainda não sabíamos disso. Não sabíamos que elementos como Donald Trump ou Jair Bolsonaro acabariam governando seus países. Naquela época, o problema era entender que, mais do que um conjunto de instituições – eleições, partidos, Parlamento – a democracia pela qual lutávamos se definia como a distribuição/dissolução social de todas as formas de poder, como a igualdade radical na participação política e na distribuição da riqueza e como o reconhecimento do poder constituinte como fonte raiz dessa democracia, como explica Emmanuel Rodríguez. Hoje na Europa não se fala mais disso, mas de “cordões sanitários” ou “democráticos” — ou seja, grandes coalizões que deixam de fora a extrema direita, “frentes populares” e “votos úteis para deter o fascismo”. Nada disso aprofunda a democracia, nada disso serve para redistribuir mais poder ou recursos, muito pelo contrário: é funcional à hipótese conformista do mal menor. De repente, abrimos uma porta e do outro lado havia apenas uma parede.
Encontramos assim duas linhas mestras. A primeira diz que a democracia é sempre imperfeita e que precisa ser constantemente criada – daí a necessidade de proteger o direito de protesto e contestação com extremo cuidado, apesar das tensões que isso pode gerar no próprio sistema. Esta é uma política que se constrói como uma criação, como um ato de auto-instituição social, e que determina que a única Constituição democrática é aquela que experimenta “inovação contínua”, nas palavras de Antônio Negri. Outra linha, em sentido contrário, garante que a democracia deve ser protegida da ameaça da extrema direita, mesmo às vezes minando seus próprios princípios – com certas restrições à fala pública, com novos crimes de ódio, com novas limitações para protestar – cujo objetivo declarado é reduzir a capacidade de influência social desses novos grupos radicalizados e direcionar toda a energia política para impedir sua ascensão. Essas duas possibilidades nos são apresentadas como duas linhas divergentes: “se você quer democracia, conforme-se com o que existe e não peça mais”. Nesse sentido, a emergência do pós-fascismo está sendo instrumentalizada por alguns partidos para tentar reverter a crise de legitimidade da política institucional, do próprio projeto neoliberal e de seus grupos, incluindo as forças socialdemocratas em seus aspectos social-liberais. No entanto, a verdadeira “frente antifascista”, a única que talvez tenha chance de recuperar a democracia, é aquela que pretende ampliá-la, aquela que tenta responder à crise de representação imaginando e dando origem a formas que mantêm viva a democracia, no elo entre o poder distribuído no corpo social e as instituições que o sustentam, apostando nas lutas que podem levar a uma redistribuição de poder e recursos.
Uma onda roxa
Nos últimos anos, começou outro ciclo de mobilizações de caráter global e potencial democratizante, que teve seu epicentro na América Latina e nos países do sul da Europa, com reverberações no resto do mundo: o grito feminista. Se a proposta do pós-fascismo é articulada a partir dos eixos de gênero, raça e nação, as lutas das mulheres são um lugar privilegiado para enfrentá-las. A agenda misógina desempenha um papel relevante na ascensão ou na presença pública da ultra-direita e faz parte de uma estratégia clara de ganho de poder – institucional, midiático ou social – que, na Europa Central e Oriental e na América Latina é claramente usado para minar a democracia liberal. Para explicar seu sucesso, porém, temos que voltar um pouco mais atrás, até a ascensão do neoliberalismo e o que significaram esses quarenta anos de dominação, o que suas formas de governo deixaram no planeta e nossas subjetividades. Como explica Wendy Brown, esses direitos se alimentaram das formas de subjetivação e destruição de mundos comuns que a regulação neoliberal impôs desde o final dos anos 1970. Esse aspecto micropolítico é fundamental na estratégia de gerar uma cultura antidemocrática a partir de baixo. Os discursos da extrema-direita, baseiam-se na liberdade e na moralidade para justificar suas exclusões e ataques à democracia, à igualdade racial, de gênero e sexual, à educação pública e à esfera pública. Mas foram as privatizações massivas, o ataque aos direitos sociais, e também a agressão à própria ideia do social e da sociedade que prepararam o terreno para o seu surgimento. Portanto, defender a democracia contra o pós-fascismo implica, na verdade, ir às suas raízes, recuperar sua substância quando é despojada de seu invólucro liberal. Uma sociedade só é democrática quando reconhece que a liberdade só pode se remeter à igualdade. Nas palavras de Emmanuel Rodríguez, dito em termos clássicos: “Só os iguais podem ser livres, e só os livres podem ser iguais. A república dos iguais é aquela que reconhece e efetiva para todos a liberdade política fundamental: a participação em todas as formas de poder explícito. E tal condição exige a abolição de todo privilégio”. Os feminismos têm muito a contribuir para essa proposta.
Mas qual feminismo?
Se nos perguntamos sobre o conteúdo da democracia, não podemos continuar esse debate sem refletir sobre o conteúdo dos feminismos. Não há dúvida de que hoje existe um movimento diversificado, com diferentes propostas e visões, que também estão relacionadas a diferentes interesses de classe. A questão de como a igualdade é concebida traça a principal demarcação. Simplificando muito, uma das linhas de fratura mais evidentes é a que divide aquelas que concebem o feminismo como uma ferramenta de transformação do sistema, que necessariamente tem que estar atrelada a outros processos de contestação em curso – não é apenas uma posição, é uma prática política – e aquelas cujo horizonte é a igualdade entre homens e mulheres no quadro do que existe: cada um com seus 50% desse inferno que vivemos. Este feminismo liberal concebe a igualdade com os homens dentro de cada estrato social, mas mantendo a hierarquia social intacta. E isso porque ele a entende como igualdade formal de oportunidades, não como igualdade real, material, de condições e possibilidades de vida. Por isso, as medidas que propõe são políticas muito voltadas para a superação das limitações institucionais, pensado para que algumas mulheres alcancem lugares de poder social.
Na verdade, essa posição liberal coincide com o que até recentemente eram as linhas fundamentais do feminismo institucional dominante. Como explica Susan Watkins, o enorme impulso do ciclo feminista das lutas das décadas de 1960 e 1970 foi institucionalizado internacionalmente em um projeto político que consistia em incorporar as mulheres às camadas empresariais e profissionais da ordem existente. O discurso do “empoderamento” das mulheres a partir dessa perspectiva liberal é há muito tempo um mantra do establishment global e uma linha fundamental do feminismo nas organizações internacionais – Organização das Nações Unidas (ONU), Banco Mundial etc. Um projeto vinculado às políticas oficiais de desenvolvimento que fomentam o setor privado e promovem a incorporação massiva das mulheres à força de trabalho –como mão de obra barata– ou sua inserção na economia formal através do empreendedorismo numa economia da dívida e do sistema financeiro – como fez o programa de promoção de microcréditos para mulheres pobres. Assim, diz Watkins, a agenda feminista global serviu para impulsionar novas doutrinas e práticas neoliberais. Suas principais consequências foram que os avanços na igualdade de gênero, que sem dúvida ocorreram em escala global, foram acompanhados pelo aumento da desigualdade econômica e pela piora das condições de vida em todo o planeta, também em muitos dos países incorporados a esse “desenvolvimento.” “Igualdade em colapso” poderia bem ser o seu lema.
Feminismo do transbordamento
O novo ciclo de mobilizações feministas dos últimos anos superou por completo a agenda da paridade liberal ou neoliberal, que desvalorizou o poder do feminismo como movimento social após a onda dos anos 1960 e 1970, como explica Raquel Gutiérrez Aguilar sobre a experiência latino-americana. Algo que também podemos aplicar aos feminismos de base europeus com forte sotaque anticapitalista – e mais presença no Sul Global. Surpreende a força do feminismo latino-americano presente nas revoltas chilenas que deram origem a uma Convenção Constitucional; a “maré verde” que inundou as ruas para alcançar o direito ao aborto na Argentina; as feministas bolivianas que se organizaram na Assembleia das Mulheres para deter o golpe enquanto declaravam sua independência de qualquer governo. Enquanto isso, no México, a brutalidade dos feminicídios desencadeou manifestações massivas lideradas por mulheres. Essas novas rebeliões que romperam a lógica do feminismo liberal foram levantadas a partir da urgência das vidas perdidas, dos feminicídios – #NiUnaMenos –, da violência sexual, mas também a partir das mortes por abortos precários e a impossibilidade, mesmo após décadas de luta, de decidir sobre maternidade em si: a agenda dos direitos sexuais e reprodutivos. O transbordamento foi produzido, segundo Gutiérrez, por uma renovação das chaves feministas, a expansão de seus objetivos de luta, suas reivindicações e seus debates, onde mobilizações radicalmente autônomas tiveram um forte componente de feminismos comunitários, descoloniais e populares. Esses feminismos renovados souberam “superar” a questão sexual – ou pelo menos não caíram no pânico moral e na vitimização, e na posição de reclamante da proteção estatal que isso implica. Em outras palavras, elas conseguiram conectar a luta contra a violência sexista com o resto da violência estrutural e institucional – nos Estados, inclusive a polícia – e aquela derivada da pobreza ou da prisão, além daquelas produzidas pelo exploração da natureza, pelo extrativismo e pela exploração neocolonial dos territórios. As lutas feministas latino-americanas colocaram em evidência todas essas lutas que nos lembram a relação entre o processo de globalização capitalista, o novo processo de acumulação e a escalada da violência contra as mulheres, debates feministas que vêm de autores como Silvia Federici ou Maria Mies.
Para Mies, “o capitalismo não pode funcionar sem o patriarcado, pois o objetivo desse sistema, ou seja, o processo de acumulação contínua de capital, não pode ser alcançado sem que as relações homem-mulher sejam mantidas ou multiplicadas”. A autora justifica-o justamente na necessidade que esse processo tem do trabalho de cuidado não remunerado — ou seja, da reprodução do trabalho. Dessa reflexão que a economia feminista faz sobre o trabalho vem a contribuição política mais poderosa e com a maior capacidade de restituir seu sentido à palavra democracia: o de reorganizar a sociedade com base na preservação e defesa da vida – vidas vividas em condições dignas, vidas que se abrem à potência de ser e não à acumulação de bens. Muitas das lutas mais importantes de nossa época têm um aspecto reprodutivo: pelo direito à saúde ou à educação, à moradia e outros serviços públicos, pela segurança alimentar, contra a poluição causada pelo agronegócio, contra as mudanças climáticas, por cuidados dignos na velhice e boas condições para o trabalho doméstico ou para a renda básica universal. O feminismo dos últimos anos as encarna, as atravessa ou se compõe com elas.
Organizar alianças com iguais
A tarefa de organizar a força coletiva que dá corpo a este projeto só pode partir de feminismos que não funcionam como identidade, mas sim que possam unir homens e outras pessoas que não se enquadram nesse esquema binário na luta contra o machismo e na reivindicação por uma democracia de iguais. Um projeto de mudança que se constrói coletivamente e de forma antiautoritária. Para fazer isso, alianças práticas foram forjadas em conflitos concretos. Precisamente, uma das virtudes do feminismo latino-americano, diz Gutiérrez Aguilar, é ter a capacidade de conectar as lutas, por exemplo, entre o movimento indígena e o movimento feminista. Segundo Verónica Gago, “hoje uma revolta, uma greve, uma ocupação popular, indígena, comunitária, tem ao mesmo tempo uma perspectiva feminista”. O mesmo acontece na Europa, onde as alianças mais promissoras são aquelas em que o feminismo é constituído pela mobilização de pessoas migrantes ou racializadas em sua luta contra as leis de imigração, contra o racismo ou pelos direitos trabalhistas dos setores onde essa força de trabalho abunda e há condições de hiperexploração: trabalhadoras domésticas, setor agrícola, trabalho sexual, etc. Nasce um novo sindicalismo feminista.
Nos Estados Unidos, o feminismo também teve um papel de destaque nas mais importantes mobilizações ocorridas nesse país desde a década de 1970: as do Black Lives Matter [Vidas negras importam], que se concentraram na violência racista e sexista nas instituições a partir de um perspectiva anti-punitivista. Não é à toa que nesse movimento tem sido muito presente a exigência de abolir as prisões e “desfinanciar” a polícia para, em vez disso, levar educação e serviços aos bairros pobres de maioria afro-americana. A partir daí temos exemplos de mobilizações que transcendem debates abstratos ou midiáticos sobre o “tema do feminismo” e geram alianças práticas como as que aconteceram em Nova York ou Hollywood, onde milhares de pessoas marcharam sob o slogan “Vidas trans e negras importam”. A capacidade do feminismo de “fazer democracia” reside, portanto, na possibilidade de tecer amplas frentes, na possibilidade de manifestar e passar por conflitos específicos que muitas vezes não são identificados como lutas “das mulheres”, mas “de todos”. Por exemplo, em alguns lugares onde os candidatos da extrema direita chegaram ao poder – Brasil, Polônia, etc. – as manifestações feministas e o próprio movimento têm sido percebidos como um lugar fundamental, às vezes o principal, de oposição aos governos. Na Polônia, por exemplo, nas manifestações pela defesa do direito ao aborto, setores sociais de todos os tipos foram mobilizados: transportadores, taxistas, em defesa da liberdade de imprensa, etc. Além disso, a plataforma feminista polonesa All-Poland Women’s Strike expandiu suas demandas para além das demandas lgbtq+ e feministas e acabou incluindo outras demandas: direitos trabalhistas, separação entre Igreja e Estado e independência total do Poder Legislativo, como explica Magda Grabowska. Em todos os lugares, as lutas feministas com capacidade de expandir a democracia estão ao lado de todos aqueles homens e mulheres que defendem as liberdades conquistadas que nos permitem lutar com mais capacidade.
Uma nova fase de institucionalização?
O feminismo está se articulando com outras lutas ao redor do mundo e faz parte de um impulso democratizante que coloca a questão da igualdade no centro. No entanto, em muitos países, especialmente naqueles que passaram mais intensamente pelas revoltas de 1968, também se tornou um amplo consenso que faz parte do sistema que está sendo questionado. Hoje provavelmente estamos diante de um novo processo de institucionalização da atual onda feminista que avança com diferentes intensidades de acordo com as regiões. As grandes mobilizações dos últimos anos aumentaram muito o capital político de se mostrar publicamente como feminista – e não apenas para a esquerda, mas principalmente para ela. Presidentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou de grandes bancos se declararam feministas e até mesmo algumas líderes de partidos de extrema-direita europeus. Obviamente, isso não acontece em todos os lugares, em muitos países há guerras muito virulentas em andamento e aparecer como feminista tem custos políticos importantes. No entanto, em outros, o feminismo-liberal distingue e recompensa dentro do jogo dos discursos políticos da democracia representativa. Em países europeus como a Espanha, esse feminismo tornou-se uma ideologia “oficial” – parte do mainstream – e, portanto, a extrema direita pode se apresentar como “antissistema” quando o confronta. O feminismo de base encontra essas dificuldades: os ataques dos fundamentalismos cristãos e da extrema-direita e o fato de ser uma fonte de legitimidade e distinção para a esquerda – e boa parte da direita.
O feminismo institucional, além das políticas públicas mais tradicionais, é predominantemente identificado com a questão da paridade. Este é o discurso da presença das mulheres em posições de poder, ou em posições de prestígio social – ninguém exige paridade nas lavouras italiana ou espanhola, onde os imigrantes são hiperexplorados, nem no setor da construção, mas, na melhor das hipóteses, igualdade de salário e direitos. É falsamente entendido que mais mulheres significa mais política feminista. A questão é: o que muda essa presença da mulher nos lugares de poder, para além das questões simbólicas? Quem essas mulheres que chegam representam, senão seu próprio grupo? Dos feminismos de base respondemos que o poder de que precisamos não é o poder de “representar” as mulheres nos mais altos escalões da estrutura social, mas sim aquele que emana de projetos coletivos, a única possibilidade real de melhorar a vida das mulheres, especialmente aquelas que estão abaixo. Como dissemos, o feminismo pode ser um discurso que distingue, que permite a integração de certas mulheres nos circuitos de poder com letras maiúsculas, sejam elas socialdemocratas ou neoliberais. O problema que enfrentamos aqui é o da representação: certas mulheres tornam-se supostas mediadoras entre o movimento e as instituições e, portanto, “tradutoras” nas políticas públicas do enorme poder exercido pelos movimentos de base. Daí também a obsessão pelo “sujeito” do feminismo – quem pode fazer parte dele e quem não pode, principalmente no que se refere à discussão sobre a inclusão de pessoas trans. Muitas daquelas que se colocam como vigilantes das fronteiras do feminismo são aquelas que afirmam representar as “mulheres” nesses órgãos estatais. Isso aconteceu, por exemplo, na Espanha. Para este feminismo oficial, desestabilizar a categoria “mulher” põe em perigo as políticas de afirmação positiva ou de proteção das mulheres, entendidas em grande medida como vítimas. Esse feminismo transexcludente afirma lutar contra o gênero, mas na realidade o reafirma, porque o tornou o eixo de suas demandas de inclusão nas políticas de Estado. Aprofundando um pouco mais, descobrimos os fios que nos permitem entender esse debate como destinado em grande parte a enfrentar aquele feminismo de base de natureza mais transformadora, que tem estado presente na promoção das mobilizações desta última onda e muito mais próxima do “transfeminismo”. Em outras palavras, a um feminismo que identifica as lutas lgbtq+ como suas, que inclui pessoas trans – e trabalhadoras do sexo – e para o qual as alianças com outros movimentos de transformação social são centrais.
Aqui somos novamente confrontados com o significado mais profundo da democracia. Segundo Gutiérrez Aguilar, o problema da concepção liberal de política não é a representação em si, mas como ela se organiza por meio de mecanismos delegativos que separam os governantes dos governados. Essa delegação reforçou o governo neoliberal do mundo por meio de uma democracia que, como dissemos, está cada vez mais identificada com sua forma processual, estruturada por meio de partidos e ultrarregulada, “na qual a representação será sempre uma representação na ausência, onde os representados estão ausentes e calados”. Para essa pensadora mexicana, justamente uma “política no feminino” é uma política não estatal, na medida em que busca a “produção do comum”, identificada com a reprodução conjunta da própria vida. O marco é essa contestação da política liberal que coloca os indivíduos sozinhos e isolados diante do Estado, enquanto a política do comum se estabelece a partir da construção de um “nós” coletivo que se gera nos lugares de encontro. O aprofundamento da democracia a partir do feminismo pressupõe, portanto, a existência de movimentos e mobilizações autônomos. Formas de nos compor que não ignoram a importância do Estado, mas estabelecem e afirmam a possibilidade de que haja política para além dele. Não implica ignorar os direitos conquistados, nem deixar de pensar em como usar nossa força para conquistar outros, mas afirmar que os direitos registrados no Estado são totalmente insuficientes para nós – e mesmo que podem enfraquecer os componentes emancipatórios das lutas. Isso acontece, por exemplo, em uma questão essencial para o feminismo: a recuperação da autonomia corporal diante da agressão. Não queremos ser reduzidos a vítimas que precisam de proteção do Estado e, de fato, nem todos os corpos feminizados podem receber essa proteção – para muitos deles o Estado não só não protege, como é uma das principais fontes de violência e opressão que sofrem os migrantes indocumentados, prostitutas ou trans. Às vezes parece que esquecemos que o Estado continua sendo uma máquina de dominação e que os direitos sempre convergem com poderes de estratificação social e linhas de demarcação social de maneiras que ora ampliam, ora atenuam essas mesmas dominações e fronteiras sociais. Voltando a Wendy Brown, não podemos esquecer que os direitos surgiram como meio de proteção contra os abusos arbitrários do poder soberano e social, mas também como forma de assegurar e naturalizar os poderes dominantes de classe, gênero, etc. Embora os discursos tenham sido profundamente transformados desde o feminismo da década de 1970 – que ainda falava a linguagem da libertação e que acompanhou a onda revolucionária de 1968 – e hoje as demandas dos movimentos estejam cada vez mais codificadas em termos de direitos, no horizonte permanece a emancipação de todo o poder, não a proteção do Estado. A verdadeira democracia é realizada na exigência de compartilhar esse poder, não em regulá-lo para se proteger, lembra Brown. É nas lutas pela vida, nos espaços de autonomia do social, que podemos reconhecer outras formas não liberais de política – de democracia direta – sejam indígenas, feministas, sindicalistas, por bens comuns, espaços de apoio mútuo, cooperativas ou organizações políticas de base. Ou seja, eles não são organizados por meio de mecanismos de delegação. Um movimento de base forte também tem a capacidade de reconstruir a ruptura do vínculo social promovida pelo neoliberalismo que, como dissemos, possibilitou o enraizamento das ideias pós-fascistas. A organização de baixo, aquela que constrói continuamente a democracia, é a melhor barreira para deter seu avanço.
Portanto, não precisamos que falem por nós e nem que todas as revoltas sejam traduzíveis em termos legislativos, mas que suas experiências produzam experiências “não representáveis”: espaços de vida autossustentável que geram alternativas sem esperar sanção estatal; espaços e práticas que abrem caminhos possíveis para imaginar e realizar soluções para a crise ecológica ou social; lugares onde desenvolvemos significados e linguagens comuns necessários para transformar a sociedade e a cultura. Nas lutas feministas dos últimos tempos, vislumbramos essa demanda de ir além da democracia representativa, para torná-la “real”.