A China e os Estados Unidos transitam a pandemia de forma divergente. Enquanto o gigante asiático desacelerou seu crescimento econômico e se posicionou como provedor de recursos e ajudas sanitárias, os Estados Unidos sofreram de cheio o impacto do coronavírus e teve um caminho de governo, em plena pandemia, que o obriga a definir seu rumo no novo cenário internacional. Nesta situação, a pergunta pela disputa global entre as potências se torna impostergável.
Martín Canziani entrevista Esteban Actis, Página/12 / IHU-Unisinos, 18 de março de 2021. A tradução é do Cepat.
A pandemia mudou o rumo das relações entre a China e os Estados Unidos ou acelerou algo que já estava acontecendo?
Veio acelerar um conjunto de tendências profundas que já estavam presentes no cenário internacional, e a mais significativa é a disputa entre os Estados Unidos e a China. O que mudou é que este evento global demonstrou um conjunto de aspectos, onde os mais relevantes são a dificuldade na cooperação entre os dois Estados mais importantes do cenário internacional, a crise de liderança que o mundo vive e a vontade da China de ocupar esse papel, apesar da desconfiança da comunidade internacional e as limitações próprias.
A liderança global dos Estados Unidos está comprometida?
A crise de liderança que o mundo atravessa tem como manifestação a incapacidade dos Estados Unidos em oferecer bens públicos globais e de que sejam aceitos. Trata-se da capacidade de prover as construções que em um sistema anárquico, onde não há um governo acima dos Estados, quem deve prover estabilidade econômica, financeira e militar global é aquele que precisa arcar com gastos para sustentar a estabilidade.
Também precisa fornecer certa narrativa ou ideias que determinem uma hegemonia através de sua cultura e do modelo de desenvolvimento, algo que os Estados Unidos vêm fazendo durante os últimos 100 anos. No entanto, nos últimos tempos, os Estados Unidos perderam essa capacidade e a pandemia é uma clara demonstração disso.
A China é o país que hoje conta com maiores recursos duros e materiais de poder. Aí estão inseridos seus bancos multilaterais de desenvolvimento, a rota da seda e as facilidades de financiamento produtivo que a potência asiática oferece, mas não é o necessário para preencher a lacuna que a faça ocupar o lugar dos Estados Unidos.
As democracias do ocidente podem competir com o regime de partido único chinês?
A experiência chinesa colocou em tensão uma ideia que estava muito enraizada na economia internacional: só há progresso sustentável através de uma democracia liberal de mercado. A China, com um capitalismo de Estado e um regime político que não é uma democracia, teve êxitos econômicos tangíveis, em um contexto onde as democracias ocidentais se estagnaram em seu desenvolvimento.
Sem entrar em juízos de valor em relação ao modelo, a China demonstrou que não é necessário ter uma democracia de mercado conforme a considerada no Ocidente para alcançar o desenvolvimento. Neste sentido, o mundo ficou dividido em dois modelos em disputa: um com um capitalismo onde a transformação produtiva é sustentada pelo setor privado, onde o Estado é importante, mas o motor do desenvolvimento está nas mãos privadas, e um capitalismo de base estatal onde, embora a China dê protagonismo ao mercado e aos incentivos privados, a condução do Estado nos delineamentos e planejamento do modelo de desenvolvimento é muito clara.
A economia global também faz parte das tensões entre as potências?
O que estamos vendo é que a globalização, até há alguns anos, estava centrada nos custos. As empresas multinacionais se movimentavam em torno desta variável que consideravam central. O que aconteceu nos últimos tempos, com uma geopolítica muito mais convulsionada pela tensa relação entre a China e os Estados Unidos, a presidência de Trump e inclusive o Brexit, é que as empresas precisam se movimentar no risco.
Não há uma desglobalização ou retrocesso da globalização como alguns vaticinaram, no início da pandemia. O que vemos é um processo muito mais delicado, em que as empresas precisam avaliar os custos econômicos, mas também estratégicos de suas decisões.
Que lugar a América Latina pode ocupar dentro desta disputa?
A América Latina está em uma situação muito delicada porque a região tem uma maior irrelevância sistêmica ou menor peso gravitacional do que outras regiões do mundo. Os indicadores nos mostram que estamos fora das cadeias globais de valor, com pouca capacidade de investimento na indústria 4.0, pouca participação na governança global e uma fragmentação regional inédita que traz uma incapacidade de diálogo para coordenar cenários futuros.
A partir deste cenário regional, que em decorrência da pandemia caiu em termos econômicos, ocorre uma maior relevância estratégica por parte dos atores externos. A China e os Estados Unidos começam a ter maiores interesses em todo o mundo e a América Latina não é a exceção. Nesse sentido, as pressões da potência hemisférica sobre o que considera o seu quintal aumentaram e a China começa a pressionar países têm suas exportações comprometidas com o gigante asiático.
Esteban Actis é doutor pela Faculdade de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Nacional de Rosário, professor e pesquisador nas universidades de Rosário, Buenos Aires, La Plata e Católica de Córdoba