Alguns setores progressistas sentem nostalgia pela velha política de classe diante dos novos movimentos feministas e identitários. Será esse realmente um posicionamento de esquerda para transformar algo do mundo atual?
Nuria Alabao, Nueva Sociedad, dezembro de 2020
É habitual que surjam discursos conservadores na esquerda em tempos de fragilidade das lutas sociais. Eles estão sempre presentes, mas só ganham relevância quando perdemos força. Se as praças estão tomadas ou há manifestações, okupações ou greves – em tempos de força –, quem vai se preocupar em discutir o sujeito do feminismo ou se o ativismo antirracista ou lgtbi+ é «neoliberal»? Infelizmente, estamos em meio a um desses momentos de discussões abstratas de interesse questionável.
Uma delas é a que faz referência ao termo «neoliberal» como adjetivo contra quase qualquer coisa, utilizado para desqualificar lutas que incomodam porque não são compreendidas ou não podem ser lideradas, como aríete em guerras de poder internas de partidos ou simplesmente para se posicionar como o ou a influencer da moda. Assim, o direito à identidade de gênero acaba sendo neoliberal, e as lutas antirracistas ou o feminismo mais transformador, «um conglomerado de postulados pós-modernos das identidades». Tais argumentos são usados muitas vezes para deslegitimar esses movimentos, culpando-os de «deixar de lado a política de classe» ou «os verdadeiros interesses do povo». Eles são usados dessa forma tanto pela extrema direita como por determinadas vertentes da esquerda conservadora, um tanto fascinada pelos êxitos – limitados – da ultradireita, interpretados como consequência do «abandono da classe trabalhadora». Para ambos, as questões materiais não importam, embora alguns se declarem marxistas; tudo acontece no mundo das ideias. Abordaremos aqui algumas dessas questões deixadas de lado.
Não se sabe bem o que significa o neoliberalismo. É como se os inconvenientes do capitalismo tivessem começado na década de 1980 com a vitória neoliberal, ou talvez em 1968, com o nascimento dos movimentos sociais antiestatais. Parece que todo capitalismo prévio foi uma espécie de festa para os despossuídos, ou talvez tenha existido uma era dourada na qual os trabalhadores e o capital convivessem em harmonia. É certo que, para alguns nostálgicos das esquerdas, o capitalismo do Estado de bem-estar é o máximo a que podemos aspirar, o que só pode ser fruto de uma idealização. Em que países, por quanto tempo, para que faixas sociais funcionou esse Estado, e quem dele ficava de fora? Na Espanha, por exemplo, só podemos falar de um Estado de bem-estar subdesenvolvido; em outros países, como os Estados Unidos, a classe trabalhadora negra foi excluída desse mundo de estabilidade. E, afinal, não foi tudo isso construído à custa da sujeição e da subordinação das mulheres nos lares a seus patrões maridos ou pais?
Não se pode esquecer que, como explica Melinda Cooper em Family Values [Valores familiares], em muitos países ocidentais, a ordem socioeconômica posterior à Segunda Guerra Mundial foi articulada em torno do chamado «salário familiar fordista» – o homem provedor de sustento para mulher e filhos –, que funcionou como um mecanismo para a normalização das relações sexuais e de gênero, e que precisamente contribuiu para estruturar a organização do trabalho a partir das divisões de raça, gênero e classe1. No caso dos eua – a Europa viveria algo parecido com as migrações provenientes das ex-colônias –, isso foi conseguido excluindo os homens afro-americanos do salário familiar e relegando as mulheres afro-americanas à mão de obra barata e doméstica em lares brancos ou na agricultura. É preciso fazer com que os nostálgicos de outro ideal se lembrem destas questões: o sujeito trabalhador de fábrica, branco e com a mulher em casa. Eles efetivamente poderiam culpar o feminismo por contribuir para liquidar essa ordem com sua luta contra o modelo do homem provedor e da família fordista, sempre que considerem que as mulheres deveriam retornar a seu antigo papel e que essa ordem deveria ser recuperada à margem do nível de vida de migrantes e pessoas racializadas.
Muito se fala agora do «neoliberalismo progressista»2, uma expressão que Nancy Fraser utiliza para se referir a um tipo de feminismo institucional hegemônico nos eua que poderia ser exemplificado na figura de Hillary Clinton. Alguns utilizam esse conceito para deslegitimar todo o feminismo – ou todas as lutas lgtbi+ – ignorando contextos sociais e históricos, bem como disputas de classe dentro desses mesmos movimentos. Assim, essas mobilizações seriam irrelevantes e até mesmo contraproducentes, pois se adaptam bem «ao novo espírito do capitalismo», e o neoliberalismo seria progressista no sentido de ser capaz de absorver toda luta política. É evidente que se pode e deve criticar os partidos socialdemocratas que separaram as políticas de reconhecimento – de direitos das minorias – das políticas de igualdade material, embora a linha que as separem nem sempre seja tão clara. Digamos que se pode e deve apontar aquelas que, enquanto se denominavam feministas, apoiavam as políticas econômicas neoliberais.
Contudo, os movimentos sociais existentes não podem ser considerados culpados pela incapacidade coletiva de se opor ao avanço do neoliberalismo. Não se pode responsabilizar o feminismo, as lutas lgtbi+ ou o antirracismo pela fragilidade dos sindicatos ou pela desarticulação do movimento trabalhador (que foi um processo histórico complexo e que envolveu vários fatores)3. Não significa, no entanto, que não se possa articular uma crítica às derivas identitárias de alguns desses movimentos ou a suas políticas de demanda por integração estatal, mas, em qualquer caso, isso implicaria análises mais aprofundadas, e não uma impugnação total sob o risco de jogar fora a criança com a água suja do banho. Os direitos obtidos em questões que alguns chamam «de representação» foram fruto de árduas mobilizações. Muitos desses movimentos também tinham um cunho fortemente anticapitalista, mas sua derrota é o sinal dos tempos. É preciso lembrar mais uma vez que a classe trabalhadora existe em processos de auto-organização, e não simplesmente a invocando como palavra. Ela não existe como puro discurso. E a classe trabalhadora como categoria sociológica hoje na Europa é precisamente racializada, plural, repleta de pessoas lgtbi+, e migrantes e mulheres ocupam as posições mais exploradas4. Somente ignorando esse fato é possível continuar invocando mentalmente a «verdadeira classe» e seus verdadeiros interesses. Novamente, apenas aqueles que se auto-organizam, lutam e falam por si mesmos podem definir quais são esses interesses.
O neoliberalismo é progressista?
O neoliberalismo triunfou na década de 1980 sob o comando de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que uniram sua preocupação pela família e pela tradição aos elementos mais radicais do liberalismo. O neoliberalismo era apresentado teoricamente como uma forma revolucionária capaz de abalar os pilares de toda a sociedade – e de fato o fez –, mas também como uma doutrina e uma prática perfeitamente compatíveis com a preservação da família e dos valores tradicionais. Mesmo antes desse casal maléfico, o neoliberalismo já era experimentado sem obstáculos durante a ditadura de Augusto Pinochet no Chile. Nesse país, a questão não é se o neoliberalismo era progressista; ele nem sequer era democrático. De fato, a democracia para o neoliberalismo tende a ser uma metáfora do mercado, e a liberdade é concebida como liberdade econômica. O mercado é a expressão material e concreta da liberdade. Não há outra possível. Tudo mais é secundário.
Precisamente, como explica Melinda Cooper, o individualismo neoliberal combina perfeitamente com a defesa da família tradicional, que funciona como estabilizador social, espaço de controle social e de subordinação da mulher, crianças e pessoas lgtbi+, e na qual se reproduz grande parte da violência patriarcal5. O trabalho de Cooper, que se concentra nos eua, mostra como os cortes neoliberais do gasto público em educação, saúde e bem-estar se basearam no pressuposto de que as relações familiares substituiriam esses serviços públicos a partir da dívida intergeracional. Nesse sentido, os neoliberais não estavam tão distantes dos conservadores em suas propostas, ainda que, diferentemente destes – ou da ordem fordista –, sua proposta não estivesse sujeita a costumes sexuais disciplinares específicos ou a uma defesa da família heteronormativa.
Os laços familiares são apresentados como imprescindíveis para absorver os choques e a indeterminação provocados pelo livre mercado, já que se pretende desmontar qualquer suporte de bem-estar enquanto se liberaliza – precariza – o trabalho e os bens básicos são deixados à mercê da «mão invisível». Assim, o neoliberalismo utiliza a família para reduzir funções do Estado. De fato, depois da crise de 2008 com seus cortes e a austeridade, a saída neoliberal, a família se tornou mais importante para a sobrevivência das pessoas.
Lembremos que a família é essa instituição sem a qual não haveria trabalhadores prontos para serem explorados – mulheres que reproduzem a mão de obra – e que ela é fundamental para reproduzir a estrutura de classes. Além disso, na ordem neoliberal, a origem social é cada vez mais importante para as possibilidades econômicas e de vida das pessoas. A herança é um mecanismo essencial, mas também a educação, os contatos, as possibilidades de endividamento, etc. O problema não é a família em si, mas o fato de não haver alternativas que ofereçam autonomia. Como destaca Cinzia Arruzza, apesar da multiplicação das identidades e práticas sexuais, e da maior visibilidade das pessoas trans e dos estilos de vida que não se enquadram no gênero – assim como sua mercantilização e promoção como nichos de mercado e novas fontes de lucro e destinos de investimento –, a família continuou ganhando peso, juntamente com a sujeição que isso implica. Portanto, o neoliberalismo não só não ataca essa instituição fundamental para o sustento da ordem social, mas também a reforça ao fazer recair mais peso sobre ela6.
Sendo assim, material e constitutivamente no que mais importa para nós, o neoliberalismo tem pouco de progressista ou feminista, e os direitos das pessoas trans e o feminismo de classe não são neoliberais. O neoliberalismo é fundamentalmente um programa econômico que organiza a sociedade em torno do mercado, um mercado ordenado e impulsionado por um Estado incitado a administrar os serviços públicos mínimos; um Estado que deve facilitar que o mercado opere com máxima liberdade e administre as maiores áreas possíveis da vida. Nada disso contribui para a autonomia das mulheres ou das pessoas trans. Como proposta econômica ou de organização social, isso é compatível tanto com regimes «progressistas» ou de direitos como com a extrema direita de Jair Bolsonaro no Brasil ou de Donald Trump nos eua.
A crítica necessária para avançar é um pouco mais complexa e deve ser tripla para ter eficácia. Por um lado, ela deve denunciar o neoliberalismo e sua guerra contra as possibilidades de vida, mas também ser anticonservadora – à direita e à esquerda –, contra a fascinação que a extrema direita desperta em alguns e suas críticas ao capitalismo baseadas na nostalgia da família, da homogeneidade étnica ou da nação. Nenhuma nostalgia nos tornará iguais e livres. Finalmente, ela deve ser profundamente anti-identitária quando essas identidades dificultem a articulação das frentes amplas de que necessitamos para nos opor ao poder do capital.
- 1.
M. Cooper: Family Values: Between Neoliberalism and the New Social Conservatism, mit Press, Cambridge, 2018.
- 2.
Nancy Fraser: «The End of Progressive Neoliberalism» em Dissent, 2/1/2017.
- 3.
N. Alabao: «La militancia en la era Twitter» em CTXT, 11/12/2019.
- 4.
N. Alabao e Emmanuel Rodríguez: «Soberanistas de todos los países, uníos» em CTXT, 10/7/2019.
- 5.
M. Cooper: op. cit.
- 6.
C. Arruzza: «The Fantasy of Normalcy: Neoliberalism, the Family, and the New Right» em Blog of the APA, 25/9/2019.
Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Dezembro 2020, ISSN: 0251-3552