A “indústria 4.0” vendeu-se como um conto de fadas em que o trabalho penoso desaparecia, as hierarquias se dissipavam e o trabalho dos colarinhos azuis deixava de ser uma experiência de classe. Mas estes trabalhadores contam uma história diferente em que o controlo e ritmos de trabalho aumentaram.
Angelo Moro, Esquerda.net, 23 de janeiro de 2022
A inovação tecnológica está associada a vários mitos, em particular ao do fim do trabalho e da exploração capitalista. Contudo, a observação das “fábricas 4.0” revela uma distância face a esta narrativa encantada de tecnologias digitais que permitiriam emancipar o trabalho das restrições físicas e partilhar o poder de decisão. Não apenas o trabalho operário continua a ser uma experiência de classe, marcada por uma muito limitada autonomia e trabalho árduo, mas também estas tecnologias permitem, na realidade, reforçar o controlo burocrático sobre o processo de produção.
Em As Classes Sociais na Europa [1], os sociólogos Cédric Hugrée, Étienne Penissat e Alexis Spire notam que “a primeira característica das classes superiores europeias é a autonomia que lhes é concedida, ou melhor que os seus membros se concedem a si próprios relativamente ao trabalho” (p. 125). “Esta autonomia, continuam, vai além da mera capacidade de controlar o seu ritmo de trabalho: diz respeito ao conjunto da organização do seu trabalho e toca tanto no conteúdo das missões quanto nos objetivos” (pp. 125-126). Ao invés, para os membros das classes populares, a organização do trabalho constitui uma obrigação imposta do exterior e é a experiência de subordinação ao trabalho que une os membros desta classe.
Por outro lado, as desigualdades de classe no trabalho manifestam-se igualmente nas condições de trabalho: os membros das classes populares (e nomeadamente os trabalhadores das indústrias metalúrgicas e eletrónicas) estão de facto particularmente expostos a condições de trabalho penosas e perigosas, às quais os progressos tecnológicos das últimas décadas não puseram termo.
As consequências (imaginárias) das inovações tecnológicas
A questão das consequências (ou da ausência de consequências) das inovações tecnológicas nas condições de trabalho é um elemento essencial para compreender a experiência contemporânea das classes populares nos países industrializados. Como nota a socióloga alemã Sabine Pfeiffer [2], a retórica dos empregadores e gestores sobre a proclamada “quarta revolução industrial” renovou nestes últimos anos o interesse dos políticos, jornalistas e universitários pelo trabalho na fábrica, depois de o terem rejeitado como um mero resto do passado numa sociedade que se teria tornado pós-industrial desde pelo menos há três décadas. As fábricas voltam subitamente ao centro do debate público, não enquanto epicentros dos conflitos sociais como nos anos 1970, mas enquanto postos avançados da inovação tecnológica, capazes de antecipar um futuro digital que transbordaria pouco depois para o resto da sociedade.
Em todos os países industrializados ou quase, os consórcios das indústrias dominantes conceberam e promoveram, com a colaboração de grandes gabinetes de aconselhamento e o apoio dos decisores políticos, diversos projetos com vista a favorecer a adoção de novos artefactos tecnológicos na indústria (robots colaborativos, dispositivos digitais, Internet dos objetos, etc.). Conhecidos por diferentes nomes consoante os países (“indústria 4.0” na Alemanha e Itália, “manufatura avançada” nos Estados Unidos, “indústria do futuro” em França, “Made in China 2025” na China), estes projetos têm como objetivo atrair fundos públicos para apoiar as estratégias de mercado de determinados setores industriais postos à prova pela crise de 2008-2009, financiar os seus esforços de investigação e desenvolvimento e protegê-los da crescente concorrência internacional. [3]
Em Itália, em particular, o plano “Industria 4.0”, lançado tardiamente relativamente aos outros países europeus, disponibilizou às empresas uma subvenção de 18 mil milhões de euros – incluindo incentivos fiscais, contribuições e facilidades de empréstimo – para apoiar investimentos em inovação[4].
No entanto, como revela um estudo recente [5], a adoção das tecnologias digitais reflete a heterogeneidade do tecido produtivo do país: as empresas que introduziram estas tecnologias são principalmente as médias e grandes empresas, situadas nas regiões do norte e concentradas em alguns setores produtivos específicos (indústria mecânica e química, serviços financeiros, atividades ligadas às tecnologias da informação e da comunicação). Segundo os investigadores, a adoção de novas tecnologias teve nestas empresas um efeito positivo na produtividade do trabalho, nas vendas e nos salários médios. Porém, em termos económicos o seu efeito na produtividade e nas vendas até ao momento foi duas vezes mais importante do que nos salários médios, revelando assim que a redistribuição dos ganhos provenientes da adoção de novas tecnologias foi fraco. [6]
Isto não quer dizer que a adoção de novas tecnologias digitais não tenha tido repercussões nos processos de produção e, consequentemente, na experiência profissional concreta dos trabalhadores. Uma vez desvanecido o sonho recorrente das “fábricas no escuro” (ou seja fábricas sem componente humana), mesmo aos olhos dos seus mais ferventes apologistas, o processo de digitalização e interconexão dos processos de produção foi apresentado pelos seus defensores como uma estratégia industrial “à escala humana” que visava favorecer a deslocação de poder de decisão para o lado mais baixo da estrutura hierárquica e, desta forma, aumentar o grau de autonomia e participação dos trabalhadores. Por outro lado, a introdução de robots colaborativos e de outros equipamentos de ponta deveria ter um impacto positivo nas condições de trabalho, eliminando as tarefas mais físicas ou repetitivas e melhorando a experiência do trabalho tanto no plano físico quanto mental.
Na base destas hipóteses, a adoção das novas tecnologias digitais foi acolhida com entusiasmo, até por muitos sindicatos. No setor automóvel, em particular – que em Itália continua a ter um peso profissional importante com cerca de 280.000 empregos direitos e indiretos que representam mais de 7% do emprego no setor da manufatura (dados da ANFIA [7]) – a questão dos efeitos reais destes novos artefactos nas condições de trabalho nas fábricas foi ocultada. Em vez disso, divulgou-se uma narrativa adocicada que descreve o mundo encantado das “fábricas inteligentes” onde a fadiga, as doenças profissionais e o perigo teriam desaparecido e onde os trabalhadores, tornados também eles “4.0”, trabalhariam com tablets em vez de chaves de fendas. [8]
Neste cenário de conto de fadas, o trabalho dos colarinhos azuis deixaria de ser uma experiência de “classe” na qual é o diferencial de poder na organização do trabalho que determina as desigualdades, não apenas de salário mas também de condições de trabalho e de capacidade de auto-determinação. Pelo contrário, num salto lógico típico do pensamento mágico, a unificação aparente das experiências de trabalho com base nas novas tecnologias deveria quebrar as barreiras hierárquicas, permitindo a gestores, engenheiros, técnicos e operários partilhar responsabilidades e contribuir para determinar as escolhas estratégicas das suas empresas.
É claro que nenhuma tecnologia é capaz de inverter por si própria a divisão vertical do trabalho. Nas fábricas do setor automóvel, a vaga de inovação tecnológica a que se tem chamado “indústria 4.0” longe de conduzir à automatização total ou à revolução digital do trabalho, integra-se plenamente na tendência histórica de “aligeiramento” dos processos de produção ligada à difusão do toyotismo e às técnicas de gestão da lean production. Deste ponto de vista, a “indústria 4.0” parece seguir o mesmo caminho que a lean production: permitem uma maior racionalização e padronização dos processos produtivos para aumentar a produtividade, intensificando o desempenho do trabalho através da redução dos tempos mortos e eliminando atividades de “baixo valor agregado”, incluindo movimentos de trabalho considerados “inúteis”.
Por exemplo, os novos torquímetros eletrónicos, introduzidos massivamente nas cadeias de montagem nestes últimos anos, estão programados para efetuar certas sequências de aperto e bloqueiam se o trabalhador não apertar corretamente na sequência definida. Antes disto, o trabalhador regulava ele próprio o torquímetro em função da sequência de aperto a efetuar, seguindo as instruções que figurassem na sua ficha de trabalho. Ainda que o risco de cometer um erro fosse claramente mais elevado, o trabalhador podia sempre modificar a sequência na ficha, ainda que de maneira informal, e adaptá-la às exigências do seu trabalho. Por outro lado, em caso de erro, era ele que o devia assinalar, enquanto que os novos torquímetros eletrónicos, ligados por Wi-Fi a uma unidade de controlo, transmitem constantemente dados sobre a sua utilização.
A experiência operária concreta deste processo de trabalho revela assim mais uma vez a sua duplicidade: por um lado, o equipamento informático, fornecendo ao trabalhador indicações ou obrigações técnicas precisas, reduz consideravelmente a margem de erro; por outro, capta os seus conhecimentos tácitos e submete-os a uma supervisão quase permanente (exercida igualmente através da recolha de dados de desempenho com um grau de granularidade sem precedentes), limitando assim fortemente o seu poder discricionário na execução das tarefas. Segundo as declarações de um operário da fábrica ex-FCA de Cassino que recolhemos numa entrevista, numa fábrica digital, as cadeias tornam-se “invisíveis, wireless, porque não te podes deslocar para além dos teus dois metros de espaço, porque cada operação que faças está ligada ao sistema e não te deixa nenhuma liberdade”.
A subordinação persistente dos “operários 4.0”
Que resta então das promessas de aplanar a estrutura hierárquica e aumentar a participação dos trabalhadores? Não grande coisa, se se considerar que as inovações organizacionais introduzidas nas fábricas não puseram em causa o fundamental da experiência de subordinação dos operários. Os processos de aligeiramento das hierarquias das oficinas continuam a ser amplamente formais e não se traduzem por uma maior autonomia ou uma maior capacidade de decisão dos trabalhadores.
O mesmo acontece para os mecanismos de participação (reuniões de equipa, recolha de sugestões, etc.), cuja implementação prática raramente se traduz num envolvimento efetivo dos operários que no máximo têm muito fracas expetativas quanto à eficácia destes mecanismos e no mínimo recusam conscientemente participar neles, temendo que as suas sugestões sejam usadas para intensificar o seu trabalho. Estas são as conclusões de dois inquéritos realizados recentemente em Itália, um dos quais diz respeito às fábricas do antigo grupo FCA (agora Stellantis)[9], e o outro às fábricas metalúrgicas da região de Bolonha que estão entre as mais tecnologicamente avançadas do país[10].
Estes inquéritos mostram como, no setor automóvel, as luzes estão sempre acesas e como os “operários 4.0” continuam a viver a sua condição de trabalho como uma experiência de classe. Mas a maior parte destas considerações podem igualmente ser alargadas a outros setores produtivos, como mostra um estudo recente de Dario Fontana [11] que, para além do setor mecânico, analisou os setores agro-alimentar, biomédico, logístico, bancário e a produção de cerâmica. A aura de neutralidade e fatalidade em que está envolta a retórica e a prática da inovação tecnológica desaparece, em suma, na experiência concreta dos trabalhadores que contam uma história diferente mas não nova para aqueles que a queiram escutar.
Angelo Moro é especialista em Sociologia do Trabalho no INRAE – Centro de Economia e Sociologia aplicados à Agricultura e aos Espaços Rurais. Este artigo foi publicado no número 13 da Jacobin Itália em dezembro de 2021. Foi depois traduzido para francês por Juan Sebastian Carbonell e Daria Saburova e publicado na revista Contretemps(link is external). Traduzido a partir desta versão por Carlos Carujo para o Esquerda.net.
Notas:
[1] Cédric Hugrée, Étienne Penissat e Alexis Spire, Les classes sociales en Europe. Tableau des nouvelles inégalités sur le vieux continent, Agone, Marselha, 2017.
[2] Sabine Pfeiffer, The Vision of “Industrie 4.0” in the Making – a Case of Future Told, Tamed, and Traded(link is external)», Nanoethics, n° 11, 2017, pp. 107–121.
[3]Tommaso Pardi, Martin Krzywdzinski, Boy Luethje, Digital manufacturing revolutions as political projects and hypes : evidences from the auto sector(link is external), ILO Working Paper n° 3, 2020.
[4]ISTAT, Rapporto sulla competitività dei settori produttivi – Edizione 2018(link is external), Roma, 2018.
[5] Valeria Cirillo, Lucrezia Fanti, Andrea Mina e Andrea Ricci, Digitizing firms : Skills, Work Organization and the Adoption of New Enabling Technologies(link is external), Inapp Working Paper n° 53, 2020.
[6] Valeria Cirillo, Lucrezia Fanti, Andrea Mina e Andrea Ricci, Digital technologies and firm performance: Industry 4.0 in the Italian economy(link is external), Inapp Working Paper n° 61, 2021.
[7] L’ANFIA (Associazione Nazionale Filiera Industria Automobilistica) é a associação patronal italiana das indústrias de equipamentos para veículos.
[8] Para um exemplo paradigmático ver o livro de Marco Bentivogli e Diodato Pirone, Fabbrica futuro, Egea, Milão, 2019.
[9] Lavorare in fabbrica oggi. Inchiesta sulle condizioni di lavoro in FCA/CNH, Fondazione Feltrinelli, Milão, 2020.
[10] Francesco Garibaldo e Matteo Rinaldini (dir.), Il lavoro operaio digitalizzato. Inchiesta nell’industria metalmeccanica bolognese, Il Mulino, Bolonha, 2021.
[11] Dario Fontana, Digitalizzazione industriale. Un’inchiesta sulle condizioni di lavoro e salute, Franco Angeli, Milão, 2021.