É provável que a Covid-19 nos faça avançar quase uma década na consciência das possibilidades de dissociar o trabalho da presença física no local de trabalho. Embora em muitas atividades possamos, uma vez que a pandemia termine, voltar a compartilhar os escritórios físicos, a trabalhar nas fábricas, em muitos outros casos não será assim.
Branko Milanović, Nueva Sociedad, Janeiro de 2021
A atual pandemia é o primeiro acontecimento global na história da espécie humana. Quando digo "global", quero dizer que afetou quase todas as pessoas, independentemente do país de residência ou da classe social. Se em alguns anos - quando, felizmente, a pandemia acabar e nós tivermos sobrevivido - encontrarmos amigos de qualquer canto da terra, todos compartilharemos as mesmas histórias: medo, tédio, isolamento, empregos e salários perdidos, quarentenas, restrições governamentais e máscaras. Nenhum outro acontecimento chegou perto.
As guerras, mesmo as mundiais, foram limitadas: as pessoas na Suíça, sem falar na Nova Zelândia, não tinham histórias significativas sobre a guerra para compartilhar com os habitantes da Polônia, Iugoslávia, Alemanha e Japão. E nos últimos 75 anos as guerras foram locais. Muitos jovens podem ter se manifestado contra a Guerra do Vietnã, mas a maioria não experimentou nenhum de seus efeitos. As pessoas ficaram horrorizadas com o cerco de Sarajevo, o bombardeio de Gaza e a estratégia de "choque e pavor" no Iraque. Mas para 99,9% da humanidade, esse susto não mudou em nada o seu dia a dia: levantavam-se cedo para ir estudar ou trabalhar, riam com os colegas de trabalho, talvez saíssem para beber e acabassem em um karaoke. Não tinham histórias para compartilhar com os residentes de Sarajevo, Gaza ou Bagdá, absolutamente nada em comum.
Nem sequer o futebol pode competir, mesmo que seus torcedores entusiasmados digam a si mesmos que os eventos mundiais imitam o futebol. A última final da Copa do Mundo foi assistida por 1,1 bilhão de pessoas, aproximadamente um em cada seis habitantes do planeta. Houve ainda muitos que ignoraram sua existência e aqueles que não se importaram nenhum pouco com qual time ganhou ou perdeu.
Entrar nos livros de história
A Covid-19 entrará nos livros de história como o primeiro acontecimento verdadeiramente global também em virtude de nosso desenvolvimento tecnológico: não apenas podemos nos comunicar com o mundo todo, mas também podemos acompanhar em tempo real o que está acontecendo em praticamente qualquer lugar. Dado que a infecção, a doença e uma possível incapacidade e morte ameaçam a todos, mesmo aqueles que por outros motivos têm pouco interesse nas notícias checam seus celulares para obter atualizações sobre mortes, taxas de infecção, vacinas e novas terapias.
A própria Covid-19 parece ter sido projetada para essa função. Embora seu nível de mortalidade aumente com a idade, seus efeitos são tão incertos que mesmo grande parte da população mais jovem e saudável não está totalmente livre de preocupação. Se a Covid-19 fosse menos aleatória, teria causado menos medo. No entanto, este acontecimento global é ao mesmo tempo estranho. Requer que as pessoas não interajam fisicamente umas com as outras e, assim, cria outra dimensão, uma nova. Nosso primeiro acontecimento global será aquele em que não nos encontramos cara a cara, em tempo real, com outras pessoas que também o experimentaram.
Se refletirmos sobre isso, faz sentido. Para ser global, o acontecimento tem que ser vivido mais ou menos da mesma forma e ao mesmo tempo por todos. Se nos limitamos ao contato físico e a presença, não podemos alcançar muitas pessoas, simplesmente porque não é possível para cada um de nós se encontrar com milhões de pessoas, muito menos com centenas de milhões. Portanto e ironicamente, o primeiro acontecimento humano global foi desprovido de qualquer contato humano e físico: teve que ser experimentado de forma virtual.
É por isso também que essa pandemia é diferente da de um século atrás. Naquela época, as informações não podiam ser facilmente transmitidas ou compartilhadas. Na época em que as pessoas estavam morrendo na Índia de gripe espanhola, a Europa estava se recuperando e não sabia ou era indiferente às mortes na Índia. E a Índia também não tinha ouvido falar das mortes na Europa até que a pandemia a invadiu.
Globalização do trabalho
O que ficará deste acontecimento global, além da memória das pessoas? Existem apenas algumas coisas que podemos dizer com alguma certeza.
A pandemia acelerará a globalização no segundo fator de produção: o trabalho. (O primeiro fator, o capital, já está globalizado graças à abertura de contas nacionais de capital e a capacidade técnica de movimentar grandes somas de dinheiro em todo o mundo e de construir fábricas e escritórios em todos os lugares). É provável que a Covid-19 nos faça avançar quase uma década na consciência das possibilidades de dissociar o trabalho da presença física no local de trabalho. Embora em muitas atividades possamos, uma vez que a pandemia termine, voltar a compartilhar os escritórios físicos, a trabalhar nas fábricas, em muitos outros casos não será assim.
Isso não afetará apenas as pessoas que trabalham em casa, mas a mudança será muito mais profunda. Um novo mercado de trabalho global virá à luz sem a necessidade de migração. Em alguns segmentos da economia global (como centrais de atendimento e projetos de software), esse mercado já existe, mas se tornará muito mais habitual. A pandemia implicará um salto gigantesco em direção à mobilidade do trabalho, uma mobilidade peculiar, na qual os trabalhadores e as trabalhadoras individuais não se mudarão de seu local de residência, mas trabalharão em 'escritórios' e 'fábricas' a quilômetros de distância.
Aqueles que temem que a globalização possa retroceder ficarão surpresos. Devido à guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, as cadeias globais de valor e o comércio podem sofrer um revés temporário. Mas em termos de mobilidade do trabalho ou, mais precisamente, de concorrência trabalhista - que é extraordinariamente importante - a globalização avançará.
Branko Milanović é economista sérvio-americano e professor da Universidade da Cidade de Nova York, em artigo publicado pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad, Janeiro/2021. A tradução é do Cepat.