USP, Unesp, Unicamp e Fapesp podem ter verba de pesquisa confiscada em nome do “ajuste fiscal”. Desmonte já atravessa duas décadas, sob governos do PSDB. Mas resistência, que já barrou investidas anteriores, rearticula-se, agora com reitores
Por Carmen Sylvia Vidigal Moraes e Lincoln Secco, Outras Palavras, 15 de setembro de 2020
Os anos recentes assinalaram uma ruptura histórica. A inteligência crítica debate se vivenciamos o fim da “nova república” ou também o desmonte do próprio estado brasileiro como foi estruturado ao longo do século XX. Em nenhum momento da nossa história a integridade nacional, os direitos sociais e as funções básicas do estado estiveram tão ameaçadas.
Por trás do discurso autoritário que desciviliza a esfera pública há um ataque muito mais mortífero aos fundamentos econômicos, legais e institucionais que sustentam uma coesão mínima da sociedade brasileira, por si mesma aluída constantemente pela insuportável desigualdade social. A universidade, neste contexto, também jamais enfrentou um desafio maior.
Em meio às graves crises sanitária, social, política e econômica que nos assolam, acompanhadas do declínio das forças políticas e culturais que se lhes opõem, o governo do Estado de São Paulo apresentou à Assembleia Legislativa, no início de agosto, em regime de urgência, o projeto de lei de n. 529.
O Desmonte
Com a justificativa de previsão de um déficit de 10,4 bilhões de reais no orçamento para 2021, o referido projeto prevê a extinção de 10 empresas públicas: a Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo (EMTUgraves /SP); a Fundação Parque Zoológico de São Paulo; Fundação para o Remédio Popular Chopin Tavares de Lima (Furp); a Fundação Oncocentro de São Paulo (Fosp); o Instituto Florestal; Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo (CDHU); a Superintendência de Controle de Endemias (Sucen); o Instituto de Medicina Social e de Criminologia (Imesc), o Departamento Aeroviário do Estado de São Paulo (Daesp) e a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo José Gomes da Silva (Itesp) (1).
Conforme o PL 526, além da extinção das “entidades descentralizadas”, o governo visa, estrategicamente, implantar uma “gestão pública moderna e eficiente”, definindo um conjunto de metas destinadas a “extinguir 1000 unidades administrativas” ( 2). O Projeto interno da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, por exemplo, prevê a extinção de 645 Casas da Agricultura, como resultado da reestruturação da Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI), histórico órgão de extensão rural, cujo nome foi trocado por Doria para Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável (CDRS), prejudicando milhares de agricultores assentados e várias comunidades quilombolas (3).
As Universidades
A proposta do governo estadual agride diretamente as universidades públicas paulistas (USP, UNESP e UNICAMP) e, também, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). O artigo 14 do cap. V do projeto estabeleceu, inicialmente, que o “superávit” financeiro das autarquias e das fundações fosse transferido à Conta Única do Tesouro Estadual. Segundo o governador, a previsão viria “equacionar o déficit mencionado e ainda recuperar parte da capacidade de investimento do Estado” (4). Ocorre que os fundos da FAPESP não constituem superávit, mas sim reservas financeiras para projetos de pesquisa científica em andamento, os quais, por sua natureza, são de longa duração, ultrapassando o ano de exercício, como é o caso de pesquisas para produção de respiradores e o apoio a testes clínicos de uma nova vacina relacionada à Covid-19 (5).
Decerto, a universidade não contribui para a sociedade apenas com pesquisa aplicada. Ela é o locus do pensamento crítico e sistematizado indispensável para civilizar nossa sociedade civil. Quando a USP foi fundada visava-se criar uma elite intelectual destinada a dirigir o desenvolvimento do Estado e quiçá do país.
Esse período de crescimento e consolidação terminou em 1964. No início, a USP enfrentou a difícil articulação de antigas unidades (Direito, Medicina, Politécnica) com as novas. Uma real integração nunca se completou.
A Ditadura cobre a segunda fase de desenvolvimento das universidades paulistas (já com a Unicamp e a Unesp) e marcada pela profissionalização, departamentalização, especialização, massificação, dispersão e, especialmente, pela repressão contra alunos e docentes.
O período de redemocratização (terceira fase) mudou pouco a Universidade nos marcos institucionais, mas foi assinalado pelo surgimento de entidades de docentes, funcionários e estudantes que procuraram democratizá-la. A autonomia financeira, referendada pelo Decreto 29.598, de 2 de fevereiro de 1989, foi sua conquista histórica, fruto da mobilização geral da sociedade nos anos 1980 e especialmente das greves sustentadas durante meses no segundo semestre de 1988.
O novo século não conduziu ao aprofundamento da autonomia e nem a um compromisso permanente do Estado com as universidades. De maneira menos perceptível ingressamos numa quarta fase resultante do neoliberalismo avassalador que alterou o papel do Estado Brasileiro e os valores dominantes na sociedade.
A universidade, situada num Estado muito conservador, deixou de responder aos problemas oriundos de sua expansão. As crises se avolumaram e o primeiro decênio do século XXI foi marcado por greves e ocupações estudantis. Em 2007 o governo estadual decretou o fim da autonomia universitária. Após 28 dias de ocupações e protestos, o governador José Serra editou um decreto declaratório afirmando que os decretos anteriores não podiam ferir a autonomia universitária.
A fase neoliberal não eliminou o entulho ditatorial, como por exemplo a reiterada invocação do Decreto 52906/72 que “disciplina” o funcionamento da USP. Mas incorporou o discurso supostamente moderno da privatização e terceirização. Cabe ressaltar que diversas pesquisas feitas na própria USP demonstram que o objetivo das medidas neoliberais não é redução de gastos com a educação, mas desviá-los para remunerar empresas educacionais privadas em nome da ideologia da eficiência.
A Resistência
As universidades já enfrentam problemas financeiros devido à grave crise em função da diminuição no recolhimento do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) (6). Após as críticas do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) ao projeto do governo Doria e sobretudo a mobilização da sociedade civil, liderada pelo Fórum das Seis (que reúne reitores e representantes sindicais de docentes e funcionários das 3 universidades estaduais) e demais entidades, o governador recuou.
O posicionamento do Cruesp, sem dúvida, de grande importância política à continuidade da luta conjunta em defesa dos serviços públicos do Estado de São Paulo, reafirma as grandes perdas sofridas pelas universidades estaduais nos períodos de crise econômica dos últimos anos, perdas agravadas nesse período de pandemia (7), e reitera sua defesa da autonomia de gestão financeira e orçamentária das universidades públicas. Nessa direção, os reitores contestaram o propósito do governo de recolher o superávit financeiro para financiar as despesas com aposentados e pensionistas pois as universidades já realizam tal procedimento orçamentário e financeiro, e os aposentados “são pagos pela cota-parte do ICMS e não pela SPPREV” (8).
A nosso ver, este é um momento vital para dar impulso e continuidade à resistência, para o fortalecimento da luta unificada de todos os servidores públicos, de entidades científicas e sindicais contra o avanço do projeto de privatização em defesa da saúde e da educação públicas, da pesquisa e do desenvolvimento científico.
Referências
1 – Carta Capital, 21/08/2020 . Reitores criticam projeto de Dória que tira verbas da Universidades e Instituições de pesquisa:https://www.cartacapital.com.br/educacao/reitores-criticam-projeto-de-doria-que-tira-verbas-de-universidades-e-instituicoes-de-pesquisa/
2. Carta Capital. Projeto de Doria prevê extinção de empresas públicas e retirada de verba de universidades, por Thaís Reis Oliveira. Publicado edição n. 1121 de Carta Capital, 27 de agosto de 2020: https://www.cartacapital.com.br/politica/projeto-de-Doria-preve-extincao-de-empresas-publicas-e-retirada-de-verba-de-universidades/?utm_campaign=novo_layout_newsletter_-_31082020&utm_medium=email&utm_source=RD+Station
3. ADUSP : Prevista no PL 529, extinção do Instituto de Terras prejudicaria agricultores familiares assentados e comunidades quilombolas:https://www.adusp.org.br/index.php/defesa-do-ensino-publico/3812-itesp-pl529
4. Carta Capital. Projeto de Doria prevê extinção de empresas públicas e retirada de verba de universidades, por Thaís Reis Oliveira. Publicado edição n. 1121 de Carta Capital, 27 de agosto de 2020. Op. cit
5. Carta Capital. Por Renê Trentin: Opinião: Governador se aproveita da crise sanitária e econômica para tentar emplacar um ‘pacote’ de medidas ultraliberais: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/rene-trentin-a-boiada-privatista-de-joao-doria/
6. Academia de Ciências do Estado de São Paulo (ACIESP). Manifesto Contra o Projeto de lei 526:https://www.change.org/p/deputados-do-estado-de-sp-contra-o-projeto-de-lei-no-529-2020?
7. Não se pode esquecer que nesse período crítico, houve a demissão voluntária de 2.760 servidores técnicos e administrativos (mais de 15% do quadro) e o corte de cerca “de 30% das despesas de custeio e de investimentos”, o que trouxe como consequência a precarização do trabalho nas unidades, incluindo o Hospital Universitário (HU), que sofreu enormes prejuízos e uma queda drástica no número de atendimentos prestados à população pelo hospital. https://www.adusp.org.br/index.php/defesa-do-ensino-publico/3805-vahan-pl529
8. Jornal da USP. Institucional: Cruesp divulga nota sobre matéria divulgada no portal G1 a respeito do projeto de lei 529. 05/09/2020. https://www.cartacapital.com.br/educacao/reitores-criticam-projeto-de-doria-que-tira-verbas-de-universidades-e-instituicoes-de-pesquisa/