José Correa Leite, abril de 2017
[Apresentação]
[A experiência brasileira dos governos do PT acendeu, depois de 2002, grandes expectativas na esquerda mundial. País continental, o Brasil poderia ter movido a balança do poder mundial, aprofundando a maré rosa, uma onda progressista que percorreu toda a América do Sul depois de 1999. Mas não apenas a política do petismo à frente do governo federal por 14 anos foi timidamente reformista, mais recuada do que de praticamente todos os países do continente (exceto, talvez, o Chile), como terminou em um desastre. Dilma Roussef foi destituida pelo Congresso em seu sexto ano de governo, em um golpe institucional armado por seu vice-presidente, Michel Temer. Isto pavimentou o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro presidente em 2018, também no marco de outra onda política, agora ultraconservadora, inaugurada pela eleição de Donald Trump presidente dos EUA, em novembro de 2016.
Para ativistas de esquerda mais jovens, que não viveram esse processo como militantes, este período pode ser percebido com nostalgia, como uma época mais civilizada do que os brutais tempos que correm. Mas foram as políticas reformistas dos anos Lula que criaram as premissas sociais do conservadorismo e ultraliberalismo subsequente, depois de 2010 e particularmente depois das mobilizações de 2013. Tivemos, no Brasil como no resto da América Latina (e em outras partes do mundo), o que Eduardo Gudynas chamou de "progressismo canibal", governos de esquerda moderada cujas políticas trabalhavam dentro do neoliberalismo e reforçavam, em um processo de bola de neve, a sociabilidade e os valores próprios aos setores mais conservadores da sociedade.
Para lideranças desta esquerda pragmática, que se via como "neodesenvolvimentista", as críticas de políticas públicas extrativistas podiam parecer sociologia radical frente ao financiamento que elas propiciavam de programas sociais de transferência de renda e integração de novos setores da sociedade no consumo de massa. Mas, na ausência de mobilização popular autônoma, a que estes setores são radicalmente avessos, criava-se clientelas não somente para estes governos, mas principalmente para projetos individualistas, fundamentalistas e ultraliberais - com destaque para o conservadorismo evangélico. Havia (e há) uma incompreensão profunda, por parte do PT, do sentido da democracia como atividade de múltiplos sujeitos e protagonismo popular autônomo e não estatal - que o conduz a ser um partido de manipulação das massas, muito mais que um veiculo de suas demandas e aspirações. Nos paises andinos estas políticas "neodesenvolvimentistas" ainda se chocava com as tradições comunitárias dos povos indígenas, ainda fortes, mas no Brasil o movimento não encontrou nenhum contraponto social e avançou mais radicalmente do que em outras partes.
Em 2021, estes problemas se tornam muito mais graves, porque o espaço para políticas de "ganha-ganha" com governabilidade conservadora se reduziram muito - mas não a vontade de repetí-las. Por outro lado, qualquer opção eleitoralmente viável parece melhor do que a continuidade de Bolsonaro para a maioria da população. Como lidar com esta realidade sem comprometer o processo estratégico de construção de uma alternativa de esquerda socialista no Brasil e no continente? Voltar a estudar o que foram os anos de governo petista parece útil para pensar os anos vindouros.
Este artigo é o capítulo sobre Brasil do livro O eclipse do progressismo: a esquerda latino-americana em debate, publicado em março de 2018 pela Editora Elefante. A versão em PDF está disponível aqui. Seu ponto de partida foi um seminário que organizamos, ainda antes da formalização do impeachment de Dilma, no Fórum Social Mundial de Montreal, no Canadá, em agosto de 2016 - “América del Sur hoy: una evaluación crítica sobre la izquierda y los gobiernos progresistas”. Nele, confrontamos o que se passava no Brasil com o que ocorria em outros países da América Latina - cujos casos constituem outros capítulos de O eclipse do progressismo.]
[J.C.L., maio de 2021]
Parte 1
1. A Nova República: um regime político oligárquico
2. O PT: das greves à governabilidade conservadora
3. Junho de 2013 como prova de fogo do petismo
4. Dilma: da reeleição ao golpe
5. O fim do desenvolvimentismo como interrupção da construção nacional
O Senado brasileiro aprovou, em 31 de agosto de 2016, o impeachment da presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), afastada do cargo desde 12 de maio. Seu (ex) vice-presidente Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), assumiu a presidência, depois de articular um amplo bloco de forças conservadoras, comprometidas com uma política econômica “ortodoxa” (focada na preservação dos ganhos do capital financeiro) e com a aplicação de medidas de austeridade no combate à grave crise econômica que atravessa o país (corte dos gastos sociais do setor público, modificações na previdência social para ampliar a idade de aposentadoria, desmonte da legislação de direitos trabalhistas, ampliação da mercantilização de serviços fundamentais...). Em 15 de dezembro foi aprovada a Emenda Constitucional 95, que limita por 20 anos os gastos públicos, e em 22 de março a lei que libera o trabalho terceirizado em todas as atividades das empresas e várias atividades do Estado. Trata-se de um governo ultraliberal, de caráter nitidamente antipopular.
A deposição da presidente petista pelo seu vice em meio de uma vasta ofensiva conservadora é parte da crônica de como o Brasil foi se transformando em uma sociedade neoliberal, que redefiniu e reforçou traços regressivos da nossa formação. Esse processo de mudança foi conduzido pelo PT entre 2002 a 2015, deslocando as relações de força em detrimento dos explorados e oprimidos e retroalimentando a política, em uma espiral de reforço mútuo. Elementos estruturais e conjunturais, externos e internos, objetivos perseguidos e resultados não intencionais levaram ao impeachment, afetando toda a esquerda.
Pierre Bourdieu dizia que a essência do neoliberalismo consistia não nesta ou naquela política econômica, mas em “um programa de destruição das estruturas coletivas capazes de barrar a lógica do mercado puro”. Em outubro de 2014 foi eleito no Brasil – junto com Dilma e Temer – o Congresso com a composição mais conservadora desde a ditadura militar, dominado pela coalização entre as bancadas do Boi (os ruralistas), da Bíblia (representantes das igrejas fundamentalistas neopentecostais) e da Bala (oficiais das polícias militares e delegados das polícias civis dos estados), tutelados pela grande capital financeiro nacional e internacional. Apelidada de BBB (também sigla do “reality show” Big Brother Brasil, da Rede Globo), essa representação política reacionária expressa a vontade de setores empenhados em romper com as lógicas de direitos, solidariedade e justiça social, que Temer agora encabeça no governo central. Trata-se da afirmação de uma sociedade neoliberal, em que o mercado e a lógica empresarial transbordam da economia para a vida social e política, a subjetividade e a relação com a natureza.
Em um país com um passivo secular de exclusão, violência e barbárie, em que mesmo o direito mais básico, o direito de voto, só foi efetivado para todo o povo em 1985, esta regressão atinge a vasta maioria d@s brasileir@s – da população negra aos povos indígenas, das mulheres aos LGBTs, do trabalhador assalariado ao precário.
1. A Nova República: um regime político oligárquico
A política brasileira se move no terreno definido pela Constituição de 1988. Ela não representou uma ruptura com as estruturas oligárquicas de poder que vêm moldando a política brasileira e acomodando os interesses de suas classes dominantes desde a independência; o Estado brasileiro continuou sendo, nas últimas décadas, uma república oligárquica, avessa ao controle popular. A crise da ditadura militar resultou do impacto combinado da reestruturação do capitalismo global (passagem do capitalismo fordista para a globalização neoliberal) e da retomada da luta de classes no interior do país (a luta democrática pela anistia, a luta popular contra a carestia e as lutas sindicais por aumento de salários) sobre a economia e a política brasileiras. A forte recessão de 1980 erodiu a legitimidade do regime militar, uma vaga de greves varreu o país e as mobilizações populares tornaram a sua queda inevitável. Mas os setores dissidentes do regime não apenas elegeram o governo civil de José Sarney (1985-1989) como determinaram a correlação de forças que resultou na eleição dos deputados constituintes em 1986. A Constituinte teve, assim, uma sólida maioria conservadora das forças que se acomodava no governo Sarney, o chamado Centro Democrático ("Centrão"), antecedente da bancada BBB.
A Constituição de 1988 foi qualificada por Ulisses Guimarães, presidente do PMDB (o partido da oposição consentida pelos militares), como “Cidadã” já que garantiu formalmente direitos políticos e sociais básicos para toda a população, colocando objetivos como a universalização da educação, saúde e previdência pública e gratuita. Refletia uma década de intensas mobilizações sociais, aberta pelas greves operárias de 1978. Mas, no terreno político, o que prevaleceu foram elementos muito retrógrados, o chamado “entulho autoritário” (medidas que reforçavam o peso dos setores conservadores – como o sistema de representação, a estrutura sindical, a organização do judiciário, a manutenção da militarização da segurança pública, controle corporativo da mídia...) e um forte federalismo, com a tutela do poder executivo central pelas oligarquias regionais conservadoras (como na República Velha, de 1889 a 1930 – desmontada por Getúlio Vargas, que recentralizou o Estado, modernizou-o e lhe deu um caráter nacional).
Nascia, com a nova Constituição, o “presidencialismo de coalizão”, em que o presidente eleito tem que compor com um legislativo que desfigura a representação popular até torna-la irreconhecível, tornando-se um pântano de arcaísmos e interesses reacionários sobre-representados. Sob o pretexto de uma democratização do sistema político, o federativismo e o empoderamento das elites locais frustra a soberania popular. A representação popular é solenemente ignorada no Senado, composto por três senadores por estado, cujas populações variam de 44 milhões a 500 mil habitantes, eleitos com mandatos de oito anos – Senado de 81 membros que funciona como câmara revisora de todas as medidas da Câmara e das iniciativas do Executivo. E na Câmara dos Deputados a clausula que estabelece que cada estado deve ter no mínimo 8 deputados e no máximo 70 parlamentares amplia o peso do ruralismo na política brasileira. A única eleição onde todos os votos têm o mesmo peso é para a Presidência da República. O Brasil é uma República Federativa oligárquica e não um regime democrático – como parecem descobrir agora os petistas apeados do poder – em que as representações da classe dominante têm um poder de veto formal, através de seus 81 oligarcas e do judiciário, sobre as eventuais mudanças promovidas pela única instância política que expressa a soberania popular.
O tema do centralismo e do federalismo é crucial na história do Brasil, que manteve sua unidade territorial com um Estado central muito forte, o único Império do continente, numa secessão da monarquia absoluta portuguesa. O federalismo e a república foram as bandeiras das classes dominantes agrarias contra a “tirania” do poder central. Empoderadas, elas eliminaram, em 1881, o direito de voto aos analfabetos, a ampla maioria da população, formalizando sua adesão a uma concepção liberal e elitista da política, intacta até hoje. A República, proclamada em 1889 como vingança dos cafeicultores contra a abolição da escravidão pelo Império, nada representou de progressista para o povo brasileiro. O direito de voto para os analfabetos só foi restabelecido em 1995! Há uma contínua e sistemática demofobia arraigada nas elites agrarias e classes dominantes do país, que tratam a população brasileira como a de um país conquistado, no que Benjamin Moser chamou de autoimperialismo.
A formação de um estado nacional, sob Vargas, rompeu com a elite cafeeira e alavancou o desenvolvimento industrial, mas sem romper com o domínio despótico dos latifundiários sobre as populações rurais. Oligarquias agrárias de natureza pré-capitalista puderam, ao longo do nacional-desenvolvimentismo, se aburguesarem, mantendo sua força política e uma ascendência sobre o estado central muito maior do que seu peso cada vez menor na sociedade. Isso determina a forte tradição repressiva do estado brasileiro, fundado e mantido pela violência, e em toda uma série de preconceitos e valores conservadores – como o racismo, o machismo, a homofobia e a demofobia – que sempre transbordaram para as classes medias, exceto em conjunturas onde um forte contraponto popular se estabelece a eles. A luta contra o conservadorismo social e ideológico – que desde o século XIX se apresentou no Brasil com o nome de liberalismo – é inseparável da luta democrática e por direitos no país.
A natureza oligárquica do poder no Brasil alimentou-se e foi alimentada, depois de 1984, também pela corrupção endêmica nas relações Estado-sociedade. Como o poder político é essencial para a manutenção dos negócios das elites, essas envolvem o Estado em redes de corrupção, nepotismo e privatização da esfera pública – ao mesmo tempo que mantem sua impunidade pelo controle simultâneo do poder político, do judiciário e da mídia. E a promiscuidade entre o poder político e o empresariado foi reforçada, nas últimas décadas, pela hegemonia das finanças no capitalismo globalizado; o neoliberalismo representou, nesse sentido, face à retirada dos estados de bem-estar (New Deal, social-democracia...), uma brasileirização do mundo.
O progressismo e a esquerda brasileiras foram forjados, no século XX, com uma visão economicista e estatista da política. A grande experiência de ruptura com o agrarismo e com a tirania das oligarquias regionais foi, depois de 1930, o getulismo e seu projeto industrialista, urbano e nacional-desenvolvimentista, mantido, depois de 1964, pela ditadura militar. A esquerda que cresceu no Brasil na crise do populismo e se opôs ao regime militar era, como em boa parte do continente, nacionalista, desenvolvimentista, pragmática e instrumental na relação com o Estado, no mais das vezes ignorando o que se passava no mundo agrário, camponês, indígena e quilombola. E essa visão de mundo foi transmitida para a nova esquerda do final dos anos 1970. Assim, a esquerda brasileira estava, na saída da ditadura, pouco capacitada a tematizar de maneira nuançada os problemas formais da democracia e da organização do poder no país – para além de uma contraposição abstrata entre capitalismo e socialismo – e impulsionar e empoderam os processos de auto-organização popular. A natureza da Nova República foi, depois dos anos 1990, ignorada pela esquerda partidária, que se adaptou às suas estruturas políticas, gerindo-as, naturalizando-as, acrescentando a elas conselhos não deliberativos, corrompendo-se – até o impeachment de Dilma evidenciar o caráter do regime estabelecido em 1988.
2. O PT: das greves à governabilidade conservadora
A nova esquerda que reemergiu no Brasil, no final dos anos 1970, tinha três componentes essenciais: o novo sindicalismo, os grupos socialistas remanescentes na clandestinidade e a esquerda cristã, que organizava os setores mais conscientes da população pobre. Eles impulsionaram a formação do PT em 1980, da CUT em 1983 e do MST em 1984, entre outras organizações, inicialmente com uma inserção institucional muito pequena (o PT teve, na Constituinte de 1987/8, 16 deputados em 559 congressistas). Mas considerando que o nível de atividades dos movimentos de massa – e, antes de tudo, sindical – foi, durante a década de 1980, um dos mais elevados da história mundial, existia um forte lastro social ancorando a pequena representação parlamentar do PT.
Porém, com a derrota da candidatura presidencial de Lula em 1989, a abertura da economia, a aplicação das políticas neoliberais e a nova inserção do capitalismo brasileiro no capitalismo globalizado, as lutas sociais refluíram. O crescimento do PT foi marcado, nos anos 1990, pela reorientação das lideranças dos movimentos sociais para dentro das esferas do Estado (com mandatos parlamentares, assessorias destes mandatos, eleições de prefeitos e governadores, indicações de milhares de cargos de confiança por estes governos) ou espaços paraestatais (os fundos de pensão). O petismo mergulhou no labirinto institucional de uma república federativa oligárquica, tornada neoliberal, que o partido não compreendia bem e nem demonstrou, desde então, empenho em modificar. Se nos anos 1980 o PT, sob a influência de setores marxistas, insistia, lembrando a derrota da experiência de Allende no Chile, que “conquistar governos não é conquistar o poder”, depois da derrota eleitoral de 1989 e do colapso da URSS, foi afirmando, na medida em que ampliava sua força parlamentar e institucional, uma visão beatífica do Estado. Seu programa democrático e popular foi engolido pelos mecanismos institucionais de freios e contrapesos do regime oligárquico e as grandes lutas de massa da saída da ditadura esquecidas.
Isso foi transformando o PT, na oposição ao governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), em sócio da estabilização da Nova República como regime político. Olhando retrospectivamente, tanto o PT como o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de FHC contribuíram, por sua ação ou inação, para darem uma feição mais moderna e afiançarem a manutenção do sistema político oligárquico que sedimentou um novo liberalismo no país. Se o PSDB representa a burguesia globalizada e financeirizada, o PT surgiu de uma aristocracia da classe trabalhadora que utilizou fundos estatais para ascender socialmente, para depois legitimar-se com os votos de setores pauperizados, historicamente excluídos e politicamente conservadores da população (como bem analisaram Chico de Oliveira e André Singer). Nenhum dos dois partidos buscou uma ruptura com o poder arcaico e secular das elites de origem agrária sempre sobre-representadas (luta restrita o MST e aos movimentos sociais a ele vinculados). Ambos compraram, no Palácio do Planalto, a governabilidade, aproveitando-se dos recursos que o governo central geria (entre os quais 80 mil cargos de confiança), de um lado, e do fisiologismo das representações dos setores conservadores, de outro. Isso é atestado pelas votações para alterar a Constituição permitindo a reeleição no governo FHC em 1997, pelo Mensalão no governo Lula em 2005, pela revelação da relação com a Petrobrás pela operação Lava-Jato depois de 2014 e pela delação à justiça dos executivos da empreiteira Odebrecht em 2017.
A opção do PT pela governabilidade pactada significava governar com a direita fisiológica, inclusive seus setores mais reacionários (lembremos do emblemático Paulo Maluf...), entregando-lhe cargos, gestão de recursos e parcelas de poder, sem questionar as estruturas políticas. Isso permitia, argumentava-se, desenvolver políticas progressistas no terreno social (elevação do salário mínimo, Bolsa Família, política de cotas...) e afirmar os interesses nacionais, isolando a direita expressa no PSDB, aquela que teria projeto de poder já que vinculada ao capital financeiro globalizado. Em contrapartida, alimentava-se ou ignorava-se a corrupção estrutural do Estado brasileiro e o caráter regressivo das classes dominantes tradicionais. Isso funcionou enquanto a economia crescia, alimentada pelo boom chinês das commodities, nos dois governos Lula. O lulismo resistiu às denúncias de corrupção do Mensalão, que decapitou alguns dos principais dirigentes petistas, mas preservou Lula e o PT no governo.
Entrementes, com as rendas das exportações de produtos primários irrigando o agronegócio e o grande capital financeiro, as políticas do governo permitiam a expansão do mercado de consumo de massa interno (pelo Bolsa Família, mas principalmente pela expansão do salário mínimo), incorporando dezenas de milhões de pessoas antes dele marginalizadas, e o crescimento de uma nova classe de pequenos “empreendedores” e camadas médias afluentes (7,5 milhões de pessoas entraram nos estratos de renda B e A das pesquisas de mercado). O maior nível de renda e informação, na ausência de avanços nas estruturas associativas, cooperativas e políticas, bem como da aquisição daquilo que Bourdieu chama de “capital cultural”, não representaram ganhos na consciência e cidadania. Representaram, ao revés, um crescimento do individualismo possessivo, do consumismo (expresso no “rap da ostentação”) e das identidades religiosas conservadoras (crescimento da “teologia da prosperidade”).
A mesma sociedade que respaldou Lula no Mensalão passou a ver com desconfiança a política parlamentar quando o quadro recessivo global chegou ao país no primeiro governo Dilma; a prosperidade dos políticos que enriqueceram nos cargos contrastava com as dificuldades do povo frente a crise. O ruralismo e a bancada evangélica cresceram, não como oposição, mas na condição de “base aliada” do governo do PT e o PMDB foi ganhando mais e mais espaço no interior do governo. O crescimento do conservadorismo era evidente na eleição de Dilma em 2010. O PSDB já mobilizava os preconceitos da classe média e o conservadorismo evangélico contra o PT e a esquerda e a campanha petista respondeu a isso moderando suas propostas para os setores oprimidos da sociedade (mulheres, negros, LGBTs...) e adulando “seus” evangélicos. Parlamentares conservadores se uniram fazer avançar diversos projetos retrógrados, emblemáticos para a bancada BBB: a flexibilização do Estatuto do Desarmamento (e a apologia da cultura da violência que acompanha a linha de tratamento da criminalidade como um problema de repressão); o Estatuto do Nasciturno, uma ameaça aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres que inviabilizaria, inclusive, os casos de aborto previstos no Código Penal; a instituição do Estatuto da Família, uma ameaça aos direitos LGBT; a redução da maioridade penal; o aumento do tempo de internação de adolescentes no sistema socioeducativo, dentre muitos outros. Orientada por Lula, o estrategista mais consistente da conciliação, que sempre recomendava fazer concessões aos “aliados”, Dilma recuou em quase todas as oportunidades.
Dilma, uma tecnocrata com pouca habilidade política, enfrentou dificuldades crescentes tanto na economia quanto com “aliados” cada vez mais intratáveis. Mantendo as premissas da política econômica anterior, em que recursos provindos das exportações propiciavam medidas redistributivas de apelo popular, ela assistiu um gradativo estreitamento de sua margem de manobra pela deterioração das finanças públicas, redução dos níveis de crescimento, aumento do desemprego e retomada da inflação. Tentou, sem sucesso, reduzir de forma administrativa as taxas de juros e os ganhos do capital financeiro, despertando sua animosidade. Foi neste marco que ocorreram, em junho de 2013, as maiores manifestações da história do pais, já no âmbito da preparação da Copa do Mundo de 2014.
3. Junho de 2013 como prova de fogo do petismo
Em junho de 2013, 24 milhões de pessoas, principalmente jovens, foram as ruas de centenas de cidades brasileiras em torno de bandeiras progressistas de melhores serviços de transporte, educação e saúde e contra o corrupto sistema político vigente. Articulando-se nas redes sociais, estavam confiantes de que valia a pena ocupar o espaço público para dizer que as coisas tinham que mudar. Os protestos configuravam uma adesão dos setores progressistas da sociedade brasileira à onda global de reações tardias à crise econômica de 2008 (Primavera Árabe, Indignados, Occupy Wall Street), emulados por seus exemplos, partilhando de suas reivindicações, seus métodos de ação e seu rechaço do sistema político estabelecido.
As manifestações de junho de 2013 tiveram como pano de fundo, no período anterior, lutas de mulheres e LGBTs contra a ofensiva conservada em curso no Congresso, protestos contra as obras ligadas à Copa do Mundo de 2014 (que, prometia-se, ajudariam a enfrentar os problemas de infra-estrutura de mobilidade urbana, mas se limitaram a construção de estádios faraônicos e super-faturados) e a luta contra iniciativas de predação da natureza e em defesa dos povos indígenas (contra o novo Código Florestal e a usina de Belo Monte, em solidariedade aos Guaranis Kaiowas...). Mas cresceram também mobilizações pela Tarifa Zero nos transportes públicos em várias capitais do país por grupos autonomistas identificados com o Movimento Passe Livre, em especial na capital paulista, núcleo do movimento.
A forte repressão do governo de São Paulo a um ato contra o aumento dos transportes públicos de R$ 3,00 para R$ 3,20, em 13 de junho, desencadeou manifestações de solidariedade em que 300 mil pessoas saíram às ruas por todo o país. Nos dias seguintes, elas se sucederam em várias cidades, com os governos de São Paulo e do Rio de Janeiro anunciando o recuo no aumento das tarifas dos transportes. As manifestações tomam outro caráter, com a ampliação da pauta: contra as PECs 37 e 33, a "cura" gay, o “ato médico”, violência policial, gastos com a Copa das Confederações de 2013 e com a Copa do Mundo de 2014, má qualidade dos serviços públicos e indignação com a corrupção. Nas manifestações do dia 20 de junho, milhões de pessoas saem às nas ruas em mais de 120 cidades; em Brasília, os manifestantes ocuparam a área externa do Congresso Federal. Segundo cálculos do IBOPE, mais de 10% da população saíram às ruas nesses protestos, conformando um grande consenso nacional por fora das instituições e contra elas em torno de dois temas: a crítica do sistema de representação e a defesa de direitos (transporte, educação e saúde).
Se André Singer vê o lulismo como o deslocamento da base social do PT dos setores organizados da classe trabalhadora e das classes medias progressistas para as massas pauperizadas e excluídas até então ausentes da cena política, 2013 foi uma mobilização de amplas camadas da população urbana, incluindo os beneficiados das políticas dos governos Lula e Dilma. 2013 é o resultado de uma década de políticas bem-sucedidas, conduzidas pelo PT, de integração da maioria da classe trabalhadora brasileira ao mercado de consumo de massas, mas agora demandando direitos, serviços públicos e moralização da vida política.
A magnitude das mobilizações aterrorizou os políticos de quase todos os partidos – no governo, na oposição de direita e mesmo na extrema esquerda (o PSTU). O PT inicialmente viu nos protestos uma mobilização da direita e só lentamente se moveu para disputar as ruas; as organizações sociais ligadas a ele (CUT, MST...) nunca entenderam o que aconteceu e trabalharam para construir protestos “verdadeiros” liderados pela "classe trabalhadora organizada" que fracassaram. O PSTU apostou na entrada em cena do "verdadeiro" sujeito revolucionário, a classe operária, e terminou em uma fracassada mobilização unitária com os pelegos. Mas os políticos no poder entenderam rapidamente o que acontecia e moveram-se para esvaziar os movimentos – encaminhando recuos e promessas mirabolantes de medidas que pudessem tirar as pessoas das ruas (embora o Ministro do Esporte, Aldo Rebelo, defendesse a atuação das polícias e o rechaço de manifestações que atrapalhassem os jogos da Copa das Confederações). Esse foi o momento em que o PSOL se tornou, de fato, um partido de esquerda de oposição ao petismo com identificação mais ampla.
Em um pronunciamento à nação em 21 de junho, Dilma prometeu um pacto pela melhoria dos serviços públicos, em especial de mobilidade urbana e destinar 100% dos royalties do petróleo à educação, além deu uma ampla reforma política. No dia 24, ela se reuniu com prefeitos de capitais e governadores para apresentar cinco pactos nacionais sobre transporte público, reforma política e combate à corrupção, saúde, educação e responsabilidade fiscal. Mas sua proposta de convocar uma Constituinte foi descartada, após ser rejeitada por Temer, pela OAB e pela oposição.
Olhando retrospectivamente, este foi o último momento em que o PT – e em especial Dilma – poderia ter virado o jogo e mudado os rumos da política institucional brasileira. Mas isso significaria ter subvertido as regras da governabilidade conservadora e introduzido no jogo político a carta da radicalização das mobilizações de massa contra a direita e o sistema político. Foi o que fizeram, em diferentes níveis, Chavez, Evo, Correa e, até mesmo, Cristina Kirchner. Se essa atitude “bolivariana” algum dia esteve no horizonte de setores petistas, desapareceu no primeiro governo Lula, que encabeçou os governos cor-de-rosa no continente.
Mas ela estava colocada no leque de possibilidades de ação. As manifestações dirigiram-se contra as instituições políticas do Estado e os políticos, demandando uma vasta reforma do sistema de representação. Uma proposta sintética apresentada pela Coalização pela Reforma Política Democrática e por Eleições Limpas, dialogava diretamente com os anseios dos movimentos (em especial na proibição da doação empresarial para as campanhas eleitorais – que, depois, foi o coração da “Operação Lava-Jato”), além da discussão acumulada pela Plataforma pela Reforma do Sistema Político. Mas o PT dividiu-se sobre como enfrentar as demandas, com o setor vinculado a Lula rechaçando o movimento e Dilma recuando, temerosa de perder o apoio do PMDB na disputa presidencial de outubro do ano seguinte.
4. Dilma: da reeleição ao golpe
Nas eleições de 2014, embora desgastada, Dilma foi reeleita com Temer de vice, derrotando Aécio Neves do PSDB por pouco no segundo turno. Ela foi capaz de vencer não apenas por ter Lula como seu cabo eleitoral, mas porque forçou uma polarização entre seu perfil de compromisso com as políticas sociais e uma trajetória de esquerda (seus cartazes com a foto da jovem guerrilheira durante seu julgamento pela ditadura militar foram uma marca da campanha) e a caracterização de seu adversário como um playboy, candidato dos banqueiros.
Mas tomando posse em janeiro de 2015, Dilma implementa a política econômica recessiva que ela tinha combatido na campanha, com a indicação de Joaquim Levy como Ministro da Fazenda, jogando a economia em uma grande recessão. Seu governo era também prisioneiro da bancada BBB no congresso em uma escala até então inédita, evidente na escolha de Eduardo Cunha para presidente da Câmara dos Deputados. Essa orientação termina de frustrar e alienar os movimentos sociais que apoiam o governo.
Enquanto isso, começavam a repercutir as investigações da Operação Lava Jato, deflagrada em março de 2014 para investigar um esquema de corrupção e lavagem de dinheiro na Petrobrás que envolvia as maiores empreiteiras do país e estava no centro da adesão de setores conservadores ao governo – o PMDB, mas também o PP – e do modus operandi do PT. Os peemedebistas pressionavam para Dilma bloquear o avanço das investigações, que rapidamente envolveram Eduardo Cunha e o presidente do Senado, Renan Calheiros. O vazamento seletivo de informações da investigação, com a delação premiada dos presidentes e donos das grandes empreiteiras – sentenciados pelo juiz Sergio Moro a longas penas de prisão –, foi transformando a Lava Jato não apenas no desmonte de redes de corrupção e punição dos culpados, mas também em uma enorme operação política de combate a Lula, a Dilma e ao PT.
Há um envolvimento de grande parte dos políticos do PMDB, PT, PP, PSDB e de outros partidos com doações empresariais ilegais, que representam uma comercialização da coisa pública incompatível com qualquer forma de democracia, no Brasil e em vários outros países, envolvimento que deve ser apurado, com a condenação dos culpados a partir do devido processo legal. Mas o Judiciário nunca foi uma instituição neutra e se colocou, no último período, no centro da luta político-partidária ao lado do bloco reacionário no poder – a destituição de Dilma em um processo político e não jurídico (quando o argumento era um “crime” de responsabilidade), o indiciamento de Lula a partir da premissa dele ser responsável pelo “conjunto da obra” (como apresentado por procuradores da Operação Lava Jato), a blindagem, até o momento, dos políticos do PSDB, são algumas evidências dessa deriva (ou explicitação) do posicionamento oligárquico do judiciário. Isso que não isenta os políticos petistas de responsabilidades, nem faz deles vítimas inocentes, mas exige que o processo seja monitorado por toda a sociedade e não entregue ao arbítrio de uns poucos juízes.
A direita capitalizou o tema do combate à corrupção e aprendeu, em 2013, a usar as redes sociais e levar para as ruas pilares sociais do BBB. A mídia conservadora, setores da Polícia Federal e da Justiça Federal foram, com o apoio de partidos conservadores, montando uma ofensiva política que se desdobrou também em manifestações de rua importantes em 15 de março, 12 de abril, 16 de agosto e 13 de dezembro de 2015 e em 13 de março de 2016. Foram as primeiras mobilizações em décadas de uma base social conservadora até então passiva. Mobilizou-se uma extrema direita regressiva, marcada por fundamentalismos religiosos, homofobica, misógina e racista, que funciona mediante uma lógica punitiva e violenta enfatizando o papel da repressão policial na segurança pública e respaldando a ação de grupos de extermínio. Os “coxinhas” eram sobretudo setores das classes medias reacionárias que expressavam abertamente posições de ódio a Lula, Dilma, o PT, a esquerda e aos pobres. Em um momento em que o petismo consolidava a perda de sua capacidade de mobilização, estas manifestações desequilibraram decisivamente o jogo parlamentar.
Sob o pretexto de um suposto crime de responsabilidade de Dilma (uma ficção jurídica), uma grande parte da base aliada conservadora do governo (envolvida nos esquemas de corrupção), deslocou-se para uma aliança com a oposição conservadora – partidariamente representada principalmente pelo PSDB e pelo DEM. O processo de impeachment está, dessa forma, em sintonia com o casuísmo e o pouco caso pela democracia política que sempre marcou a vida institucional do Brasil, com a involução da “base aliada” e com a evolução da base eleitoral do lulismo (na qual mais capacidade de consumo representou, concretamente, menos consciência política).
O impeachment expressou as novas tendências políticas das classes dominantes do continente. Golpes de estado não são mais dados pela intervenção das Forças Armadas contra governos que preocupam os interesses hegemônicos no seio do capital, mas por outras instituições (legislativo, judiciário) que depõem governos democraticamente eleitos – processo que já tínhamos visto em Honduras e no Paraguai e que agora se repetiu no Brasil.
E, por fim, na crise dos partidos e instituições políticas, é a mídia que passou a ocupar parte desse vácuo e pautar a conduta dos partidos do sistema e de suas bases sociais, inclusive buscando mobilizar setores conservadores da sociedade, em processos já vistos na Argentina e Venezuela. E, no Brasil, diferente do que ocorreu em outros países do continente, o PT e seus governos não fez esforço algum para enfrentar o problema do monopólio corporativo da mídia, além de bloquear iniciativas independentes nesse sentido – um recente relatório dos Repórteres Sem Fronteiras chamou o Brasil de “o país dos 30 Berlusconis”.
O impeachment foi um golpe institucional que atacou a democracia não pelo governo Dilma implementar políticas particularmente progressistas, mas porque a Presidência é o único cargo eleito através de um processo democrático no Brasil, com uma votação em que todos os eleitores têm um voto de igual peso, em contraposição à Câmara dos Deputados, instituição que deforma a representação popular, e ao Senado Federal, um mero teatro oligárquico farsesco. A substituição de Dilma por seu vice afasta um governo eleito pelo voto popular por um de oligarcas sem a legitimidade do processo eleitoral, oportunisticamente constituído para aplicar políticas antipopulares em um marco de crise econômica, foi um processo que catalisou todas as expressões do conservadorismo atávico presente na sociedade brasileira. O regime político brasileiro é presidencialista, não sendo previsto na Constituição da figura jurídica do voto de confiança, que derruba os governos em sistemas parlamentaristas.
As manifestações em defesa do governo Dilma e da democracia em 16 de dezembro de 2015, 18 e 31 de março de 2016, foram menores e não conseguiram reverter o clima político de desgaste do governo da presidente. No final, compreendendo a natureza da polarização política e que o que estava em jogo era um golpe institucional, quase toda a esquerda – inclusive muitos setores críticos ao PT – aderiu a um movimento sob a palavra de ordem “Não vai ter golpe”, que abarcou tanto os movimentos governistas ligados à “Frente Brasil Popular”, quando os setores mais críticos ligados à “Frente Povo Sem Medo”. Mas as massas populares, fazendo o balanço prático de junho de 2013 e do estelionato eleitoral de 2014, não compareceram.
5. O fim do desenvolvimentismo como interrupção da construção nacional
Celso Furtado constatou, em 1992, que a construção do Brasil foi interrompida pela rendição ao neoliberalismo. A construção nacional identificou-se, em grande parte do século XX, com a modernização e o desenvolvimento econômico e estes com a industrialização e a autonomia frente ao mercado mundial, depois de 1930 a orientação estratégica do estado brasileiro. Ora, se analisarmos o quarto de século neoliberal que se seguiu à posse de Collor, em 1990, em conjunto com a década perdida de crise do desenvolvimentismo, entre 1980 e 1990, chegamos a um balanço estrutural deprimente da evolução da economia e da sociedade brasileiras, oculto nas análises que destacam os ganhos na capacidade de consumo da população sob Lula.
A economia brasileira vem regredindo em complexidade, se desindustrializando, tornando-se cada vez mais dependente e está, há mais de três décadas, estagnada. Em 1985, a população do país era de 136 milhões de habitantes e o Produto Interno Bruto foi de US$ 223 bilhões correntes, equivalentes a R$ 2.452 trilhões atualizado pelos valores de 2014. Trinta anos depois, em 2015, a população era de 204 milhões de habitantes e o PIB foi, no ano anterior, de US$ 2,345 trilhões em valores correntes, equivalente a R$ 5,521 trilhões. Um quadro de muito pouco crescimento e dinamismo comparado com outras partes do mundo.
Isso contrasta fortemente com o período anterior, em que o Estado nacional brasileiro impulsionou, entre 1930 e 1980, um crescimento centrado na expansão industrial e na substituição de importações, com taxas medias de quase 6% ao ano. Suas instituições compuseram, então, não apenas as clássicas estruturas de dominação (mecanismos de articulação política, judiciário, forças armadas e órgãos de segurança, burocracia das relações exteriores...), mas também mecanismos de concentração e gestão de recursos econômicos para objetivos comuns, alguns dos quais permanecem até hoje (BNDES, Petrobrás...) ou foram privatizados (Vale do Rio Doce, Embraer...). Meio século de crescimento acelerado, acompanhado de forte urbanização, perseguido ao longo de quatro regimes políticos – o varguismo inicial, a ditadura do Estado Novo, o populismo e a ditadura militar – atingiram seu apogeu no governo do General Geisel (1974-1979), cujo II Plano Nacional de Desenvolvimento tinha por objetivo transformar o Brasil em uma potência industrial. Nesse momento, o país não só tinha estabelecido um vasto parque de industrias de consumo de massa, mas internalizado o conjunto dos ramos característicos da segunda revolução industrial (indústria pesada, siderurgia, química, petroquímica, construção naval, industrial aeronáutica e bélica, geração de energia hidrelétrica), além de ter realizado grandes investimentos em obras de infraestrutura econômica moderna (embora não na infraestrutura de serviços urbanos, como transportes públicos e saneamento). A ditadura concluiu um longo processo de modernização conservadora.
Quando o país foi atingido, em 1980, pelo “segundo choque do petróleo”, respondido nos países centrais com as políticas neoliberais, a manutenção de políticas desenvolvimentistas de corte keynesiano produziu uma versão local da estagflação. Frente a pressão dos países centrais e das instituições de governança do capitalismo global, o desenvolvimentismo foi refluindo, até a eleição de Collor, em 1989. Durante seu governo e os de Itamar e FHC, o Brasil abandonou a prioridade dada ao nacional-desenvolvimentismo, retirou a proteção que oferecia a seu parque industrial e iniciou o sucateamento da industrias, que se acelerou sob Lula e Dilma. Abertura econômica, privatização e desnacionalização produziram a desindustrialização e a hegemonia do grande capital financeiro, estrangeiro e nacional. Argumenta-se que foram as condições internacionais que produziram isso, mas países em condições mais desfavoráveis que o Brasil, como a Índia, foram capazes de preservar seu parque industrial, enquanto o brasileiro se dissolvia.
O auge qualitativo da economia brasileira foi atingido em 1980, quando ela representou 3,2% do PIB mundial, caindo para 2,67% em 1992, depois da abertura da economia por Collor. Esta participação estava em 2,43% em 2007 e caiu para 2,3% em 2015. O Brasil, desde 1980, tem retrocedido para o tamanho relativo na economia mundial que tinha sido atingido há 60 anos.
A globalização neoliberal destruiu, nas últimas três décadas, boa parte do parque industrial e internacionalizou as cadeias produtivas dos setores que resistiram à abertura da economia. A participação da indústria de transformação (excluindo mineração e construção civil) no PIB, que era de 21,6 em 1985, caiu para 17,88% do PIB em 2004 e para apenas 9% em 2015, valor mais baixo da série histórica iniciada em 1947 – ou seja, foi durante os governos Lula e Dilma que a indústria mais regrediu e a economia se reprimarizou de forma mais acentuada. Ao mesmo tempo a participação do estoque de capital estrangeiro na economia brasileira passou de 5% do PIB (cerca de US$ 40 bilhões) em 1995 para 30% em 2015 (cerca de US$ 670 bilhões).
A política econômica de FHC foi preservada com a chegada de Lula à presidência. De fato, ele foi eleito comprometendo-se a preservar o tripé macroeconômico neoliberal estabelecido por FHC (metas de inflação, taxas de câmbio flutuante e austeridade fiscal com metas de superávit fiscal primário). A manutenção do real sobrevalorizado, beneficiando antes de tudo o capital financeiro, foi central para a continuidade da desindustrialização do país: no primeiro governo Dilma, cerca de um quarto dos bens industriais já era suprido por importações. Um contraponto à China, que manteve o yuan desvalorizado por décadas, estimulando as suas exportações industriais.
A alteração mais importante que o PT promoveu à frente do governo foi a elevação contínua, por quase uma década, do salário mínimo e a expansão dos programas sociais de apoio aos setores mais pauperizados da população (o Bolsa Família), que integraram no mercado de consumo dezenas de milhões de pessoas e melhoraram a correlação de forças dos trabalhadores nas negociações salariais. Isso permitiu, no boom das commodities, um crescimento econômico quantitativo com redução da pobreza, ao custo da desindustrialização do Brasil. Assim, frente as corporações que dominam a economia mundial e centralizam o comando do processo produtivo, os processos de trabalho são descentralizados, fragmentando a classe trabalhadora, que não dispõe mais de uma coluna vertebral socialmente articulada. A classe operária fordista de antes deu lugar a uma enorme massa urbana proletarizada, qualificada por alguns de precariado, que no Brasil foi perdendo sua identidade de classe forjada nos anos 1980 na mesma medida em que o PT galgava postos no Estado.
O contexto político-econômico que favoreceu o governo de Lula não foi privilégio do Brasil. Segundo a Cepal, com o boom das matérias-primas, as economias latino-americanas cresceram, entre 2003 e 2012, acima de 4% ao ano, o que não se verificava desde a década de 1960. Os governos progressistas da região puderem utilizar recursos originários desses rendimentos para promover programas redistributivos que não comprometiam os lucros do grande capital. Nesse período, os níveis de pobreza no continente caíram de 44% para 29%, e os de pobreza extrema diminuíram de 19,5% para 11,5%. Já sob o governo Dilma a desaceleração global da economia e uma política desastrosa de incentivos a setores industriais insustentáveis (como petróleo e automóveis), acabou com o período de bonança da economia brasileira. Intensificou-se o processo de desindustrialização e financeirização, aprofundando a tendência a reprimarização da pauta exportadora.
Na atual divisão internacional do trabalho, a economia brasileira reassumiu o papel de fornecedora de matérias primas que lhe coube até 1930. Com Lula e Dilma, o volume de crédito para o setor do agronegócio cresceu cinco vezes; o agronegócio responde hoje por 41,28% das exportações. A China se tornou o principal destino das exportações do agronegócio brasileiro. Com a expansão do cultivo da soja, milho, cana e eucalipto, café, açúcar, suco de laranja, bem como da pecuária e mineração, vastas regiões antes não exploradas em termos capitalistas, tornaram-se parte do mercado de terras. Essa inserção no mercado mundial representa uma regressão qualitativa da participação do Brasil no comercio internacional e torna economia vulnerável às oscilações nos preços das commodities, reduzindo sua autonomia.
A aceitação pelos governos petistas da hegemonia do agronegócio – Lula chegou a chamar os usineiros de “heróis” – é plena de consequências em todos os sentidos. Pouco se avançou na reforma agrária; as famílias beneficiárias não obtiveram condições para uma sobrevivência com dignidade no campo, espremidas pelas terras e processos do agronegócio (contaminação das águas e subsolos por agrotóxicos, mercado de sementes transgênicas, etc). Temos um padrão de agricultura que destrói a biodiversidade e é intensiva em capital e energia, que destrói e contamina o meio ambiente, um modelo que produz muita commodity para exportação, pouca comida para os brasileiros e menos autonomia para os agricultores que resistem e permanecem no campo. E que volta a alavancar o poder político de latifundiários predadores de vidas humanas – ainda hoje promovendo o genocídio de povos indígenas – e biomas, que são hoje os mais comprometidos com o desmonte do embrião de nação constituído no século XX. É significativo que quando a Polícia Federal desencadeou a Operação Carne Fraca contra os frigoríficos, do PSDB ao PT, passando pelo PMDB e pelo PP, denunciaram não só a irresponsabilidade do processo para com a economia nacional, mas os petistas também denunciaram o envolvimento de interesses imperialistas no processo, numa brutal involução ideológica do que foi sua compreensão do Brasil no passado.
As empresas “campeãs nacionais” apoiadas pelo BNDES com dezenas de bilhões de dólares no agronegócio – como a JBS (dona da Friboi e Seara) e a BRF (dona da Perdigão e Sadia) – ou mineração – como a Vale – criaram enclaves altamente lucrativos, com ações negociadas nas bolsas globais, remunerando rentistas e estimulando a concentração de renda, sem irradiarem qualquer influxo progressista para o conjunto do tecido social. Uma sociedade que antes se colocava como objetivo produzir técnicos e operários qualificados, engenheiros, professores, médicos e cientistas, agora cria caixas de supermercado, motoristas de táxi (ou Uber), personal trainers e assalariados que tem que se terceirizar como empreendedores para ganhar melhor. E importa médicos cubanos – 11.400 dos 18.240 atuando no Mais Médicos em 2016! A involução do Brasil no sentido de uma economia primário-exportadora, produzida sob os governos FHC, Lula e Dilma, transforma potenciais cidadãos em consumidores pobres competindo uns contra os outros e desagrega as teias de sociabilidade, produzindo a desolação na qual crescem o narcotráfico e as igrejas pentecostais.
A situação brasileira parece, assim, exemplar do que Eduardo Gudynas chamou, referindo-se ao processo equatoriano, de progressismo canibal. “Os progressismos tiveram êxitos eleitorais iniciais, especialmente por tomarem algumas medidas próprias de esquerda e por adotarem uma retórica que também aproveita imagens da esquerda. Mas os componentes centrais de suas estratégias de desenvolvimento são convencionais e impõem políticas públicas que, por exemplo, aceitam todo tipo de impactos sociais e ambientais, ao mesmo tempo que redesenham a compreensão da democracia, voltando-se para práticas cada vez mais verticalistas e menos participativas, e são esse tipo de fatores os que resultam em seu esgotamento... [Isso] gera condições políticas que fazem com que muitas bases de apoio, em lugar de buscar as alternativas à esquerda, se voltem para setores conservadores. É como se o progressismo tivesse uma veia canibal. De fato, o progressismo devora aqueles componentes de esquerda em duas próprias estratégias de desenvolvimento na obsessão com o crescimento econômico e as exportações. Devora suas bases políticas e, quando estas o abandonam, muitas delas correm para a direita” (“El progresismo caníbal: algunas lecciones de las elecciones en Ecuador”, 3 de marzo de 2017).
Segue na parte 2