Ricardo Cavalcanti-Schiel, Outras palavras/A terra é redonda, 20 de outubro de 2020
Para Memélia Moreira, jornalista veterana, pela sua insistência por esse artigo
Quem já viveu e, sobretudo, realizou pesquisas sobre as dinâmicas sociais na Bolívia durante alguns anos, sabe que os cenários políticos contingentes naquele país são, por regra, instáveis e, em boa medida, inusitados. Os sucessivos e notavelmente estáveis governos de Evo Morales estão mais próximos da exceção que da regra, como também o esteve a sequência de governos neoliberais entre 1985 e 2003. Por um lado, as castas senhoriais do país sempre tiveram que se ver às voltas com disputas faccionais intestinas, além de irrupções contestatárias e eventualmente insurgentes de parte da maioria da população, o que contribuiu para um longo rosário de golpes de Estado ao longo da história republicana do país. Por outro lado, os últimos vinte anos foram marcados pela emergência decisiva das forças populares, de extração indígena andina, nos espaços institucionais de poder de Estado, o que implica, muitas vezes, em lógicas distintas, e não facilmente perceptíveis, de legitimação da representação.
No caso da ação política direta dessas forças populares, é notável como os circuitos de informação e de decisão são sutis e mutáveis. No final do século passado e início deste século, o canal de informação fiável por excelência eram as rádios locais, que transmitiam em quéchua e em aymara, como também as rádios católicas, como a Erbol e a Fides. A partir das mobilizações populares que levaram à queda do neoliberal Gonzalo Sánchez de Lozada em 2003, os celulares passam a servir de canal privilegiado. Em termos ainda mais capilares, a conversação entre membros e representantes sindicais nas comunidades rurais e entre compadres no campo em geral conformam um espaço “invisível”, onde decisões são tomadas e, ao dia seguinte, alguma estrada é bloqueada logo pela manhã, deixando viajantes no meio do caminho, salvo aqueles que, por alguma razão, têm acesso a esses circuitos de informação. É por aí que se desenrola a mobilização popular.
Não é fácil ter informações precisas, na Bolívia, sobre o rumo exato dessas mobilizações, mesmo porque, no nível local, particularmente na porção andina, a tomada de decisões é regida por uma espécie de ética da reticência. Ninguém se adianta às decisões coletivas e tampouco se presta a exibir conhecimento analítico ou prospectivo. A sabedoria (em quéchua, yachay) não se conforma como um cabedal de experiências ou técnicas, que leve ao reconhecimento de uma autoridade diretiva ou instrutiva, mas como uma capacidade de fazer e de realizar esforço, que se expressa como potência de interação e de intercâmbio. As decisões coletivas são sempre comunitárias e consagram-se como consensos. Posições eventualmente divergentes se acomodam a esse consenso ou, do contrário, tenderão progressivamente a se consolidar como uma cisão da comunidade local, como foi o caso da comunidade quéchua onde realizei pesquisas ao longo de muitos anos e onde fiz inumeráveis compadres (leia-se também, inclusivamente, comadres). Nesse mundo, ter compadres é, na realidade, um dos poucos canais eficientes de acesso a informações. O compadrio implica uma relação de lealdade de parte a parte, e sua lógica já chegou a ser eficientemente apropriada, ao final do século passado, para o meio urbano, por um hábil comunicador social, Carlos Palenque, para consolidar seu próprio movimento político, o CONDEPA (“Conciencia de Patria”), o primeiro a lançar mão, em sua discursividade, e de forma sistemática, da simbologia andina e o primeiro a eleger uma “chola”, Remedios Loza, para a Assembleia Nacional Boliviana.
Ainda assim, mesmo entre compadres, a prospecção das movimentações políticas da base popular na Bolívia é um exercício imponderável e arriscado. Sabiamente, se inquirido sobre o rumo das coisas, um compadre diria a outro: “Não sei, compadre. O que será que a comunidade vai decidir?” E esse tempo da decisão é crucial. Depois dele, tudo se precipita.
No mundo popular boliviano (em especial o andino), o voto até pode ser individual, mas a ação política sempre tende a ser coletivamente orientada ou, ao menos, induzida. E isso vale para o campo, para as minas, para os mercados urbanos, para os sindicatos de motoristas, toda uma extensa malha de inclusão das pessoas sociais, que, nesses espaços, compartilham festas e santos padroeiros. Nesse circuito fechado de intercâmbio muito próximo de lealdades, fake news, por exemplo, podem ter uma enorme dificuldade para prosperar. Fake news parece ser, mais, um fenômeno característico de um mundo de individualidades conectadas digitalmente e desconectadas socialmente.
Na última vez que estive na Bolívia, por um mês, imediatamente antes da conflagração da pandemia de coronavírus, havia, por um lado, no meio urbano, uma sensação generalizada de desorientação política, e, por outro, uma bronca surda contra Evo Morales. E ambas as coisas pareciam se misturar. No meio rural, a bronca dos meus compadres com Evo Morales era menor, mas era o mesmo o desconhecimento sobre o que realmente aconteceu por ocasião do golpe de Estado. A mídia local bombardeara exaustivamente ― e tratou-se, de fato, de um bombardeio de saturação ― a versão preparada pelo plano da CIA (com o auxílio da OEA e do Grupo de Lima), de que as eleições tinham sido fraudadas. E essa versão havia se assentado como consenso irrefletido, a ponto de produzir o fenômeno inusitado de que, enquanto todo o resto do mundo sabia que as eleições de 2019 não sofreram qualquer fraude, só na Bolívia a fraude era largamente admitida como fato.
Por alguns meses, a operação de guerra híbrida a que a Bolívia havia sido submetida conseguiu produzir uma asfixia dos canais de informação, que se combinou com os movimentos rápidos e previamente planejados do golpe, sobrepondo-se ao tempo das coletividades, e que incluiu a ação intimidatória quase generalizada de grupos paramilitares de extrema direita (uma breve notícia sobre eles encontra-se aqui), culminando com vários massacres de cidadãos, dos quais se destacam os de Senkata (El Alto) e Sacaba (Cochabamba), que somaram 36 mortos e 50 feridos. E no meio dessa operação de desinformação, choque e pavor estava a bronca com Evo. Uma coisa não parece funcionar bem sem a outra.
Pode-se dizer que a manobra judicial de Evo Morales para concorrer na marra, pela quarta vez, à Presidência foi a culminação de uma atitude que esteve na base do desgaste político do MAS (Movimiento al Socialismo). Ela é a mesma que diz respeito ao PT e a aos outros “progressismos” latino-americanos. Trata-se de uma espécie de chantagismo absolutista: “ou eu ou o dilúvio”. No Brasil, sociedade “cordial” (o que também pode significar “biliar”), apostou-se cegamente no dilúvio. Na Bolívia, enquanto Evo caía, o ambiente majoritário era semelhante ao do impeachment de Dilma Roussef: indiferença ― ou, antes, um implícito “bem feito para ele!”.
Aquele fechar-se em copas, não admitindo qualquer revisão crítica de rumos, acaba funcionando como um blefe de tudo ou nada. Depois de postas as cartas na mesa, só resta ao blefador choramingos de autovitimização. No caso da Bolívia, essa arrogância característica, além de produzir ― tal como no Brasil ― um cegamento para as manobras do inimigo (nem de longe trata-se simplesmente de “adversários” políticos, pois estamos falando de guerra híbrida), também patrocinou uma espécie de sectarismo clientelar, que é muito próprio de certos meios sindicais bolivianos: aos amigos, tudo; aos que não nos dizem amém e não se incorporam à nossa máquina, o desprezo, a anulação e o pior dos mundos. Foi assim no caso do Tipnis. Foi assim em muitos outros casos. Quando veio o golpe, para além do acomodamento de uma rede clientelar (tal como existira no ocaso da hegemonia política do velho MNR), o MAS só contava com o voluntarismo agonístico de algumas tropas de choque de ação inócua e desesperada.
Não foi tão difícil assim derrubar Evo Morales. Bastou a oportunidade e uma boa coordenação. O que, sim, mostrou-se muito mais difícil, após o primeiro momento de desorientação induzida e de ações rápidas, foi conquistar legitimidade para a agenda política da direita, tão mais obtusa quanto predatória. Porque aqui se trata de outra e bem conhecida obtusidade, que na Bolívia vem sendo sistematicamente impugnada nos últimos vinte anos: a obtusidade senhorial.
Com Evo fora de jogo, choramingando na Argentina, batendo na tecla monocórdia do “racismo” ― que cai bem para uma certa agenda liberal internacional, mas diz muito pouco sobre a complexidade boliviana e parece não mais que sufragar a velha teoria política das elites, pois não faz mais do que comprar a perspectiva política das castas senhoriais do país―, com a pandemia e a direita boliviana mostrando a que veio, com a reinstauração do tempo das coletividades, com a admissão pelo MAS de que era preciso corrigir rumos, com um candidato convincente que representa, antes de mais nada, onde os governos do MAS deram certo ―na soberania econômica do país―, algo de novo parece ter mudado no cenário da política, e não meramente no cenário eleitoral. Ainda não tenho muitos dados para julgar com precisão, mas a suspeita lógica (pode-se até chamá-la de “hipótese de trabalho”) é que, mais uma vez, as forças populares na Bolívia, em cenário adverso, fizeram política, e não apenas se agarraram a instrumentos formais de representação. Porque “eleitoralmente”, os rumos apontavam para outra direção.
Não é difícil suspeitar que as eleições bolivianas de 2020, essas sim, estavam prontas para serem fraudadas. Partamos das impressões, que não parecem ser fortuitas. No dia das eleições, o portal web iraniano HispanTV (em espanhol, e que por vários anos albergou o programa Forte Apache, dirigido por Pablo Iglesias), um meio lido por um público mais crítico, divulgou o resultado da enquete entre seus leitores, pela qual 49,4% deles acreditavam que as eleições seriam fraudadas, enquanto 46,6% acreditavam na vitória do candidato do MAS. Dois analistas ouvidos pelo mesmo meio, Cristina Reyes e Jorge Richter também apontavam para o elevado risco de fraude. No sábado, véspera das eleições, o governo golpista despachou 23.000 militares para ocupar as ruas de La Paz e El Alto. A anulação, poucas horas antes das eleições, do sistema de contagem rápida, pelo presidente do Tribunal Supremo Eleitoral, nomeado pela presidente golpista Jeanine Áñez, lançou a apuração dos votos no escuro.
Antes de tudo isso, no entanto, o sistema de votação nos países do exterior que mais concentram imigrantes bolivianos dos extratos populares (Argentina, Brasil e Chile) foi deliberadamente desarticulado, para produzir confusão e abstenção. A intenção parecia simples: como os votos no exterior são apurados primeiro, resultados distorcidos serviriam como a cabeça de ponte para a fraude. Com efeito, no final da manhã de segunda-feira, dia seguinte à votação, a apuração internacional indicava o candidato Carlos Mesa, da frente Comunidad Ciudadana (CC), com 42,22% dos votos, e Luis Arce, do MAS, com 38,45%.
Na terça-feira, com a vitória eleitoral do MAS dada como fato consumado, a apuração da votação internacional já indica Mesa com 31,73% e Arce com 50, 35%:
O que parece ter frustrado a fraude foram as apurações de boca de urna dando uma vitória acachapante para o candidato do MAS. Ou seja, nem tanto a vitória, mas a vitória acachapante. Antes disso, o empresário Arturo Murillo Prijic, pertencente ao clã croata dos ustacha de Santa Cruz de la Sierra (os nazistas balcânicos emigrados para a Bolívia após a derrota nazi na Segunda Guerra Mundial), um dos cabeças do golpe e homem de conexão com o Departamento de Estado de Mike Pompeo e a OEA, além de ministro “de Gobierno” (equivalente à Casa Civil) de Jeanine Áñez, responsável por acusar judicialmente Evo Morales de terrorismo, tentou pressionar os meios de comunicação, as empresas de sondagem e até mesmo o Tribunal Supremo Eleitoral, no sentido de impedir a divulgação das pesquisas. A queda-de-braço durou quatro horas, até que, logo depois da meia-noite, os resultados começaram a ser divulgados. A vitória política do MAS, em lugar da sua possível derrota eleitoral, começava a se consumar. Tentar revertê-la por fraude pode ser um lance extremamente arriscado para os golpistas, e que virtualmente incendiaria o país.
O trabalho político que está por trás dessa vitória acachapante do MAS, e que dispôs o tabuleiro de modo a tornar inócua uma previsível operação de fraude eleitoral, é que é a crônica ainda a ser contada. Suas lições podem nos dizer se a mobilização popular na Bolívia encontrou um antídoto eficiente para a guerra híbrida, em cenário geopolítico extremamente adverso, ou se tudo se tratou apenas de mais uma dessas inusitadas particularidades bolivianas, onde as lógicas locais acabaram impondo mais uma fragorosa derrota à hegemonia global do Império.
No mundo popular boliviano
Ricardo Cavalcanti-Schiel é professor de antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.