Dia 04 de outubro é celebrado o Dia de São Francisco de Assis, por isso se comemora também o Dia do Velho Chico. Na mesma data, registra-se ainda o Dia Nacional da Agroecologia e da Natureza.
Érica Daiane Costa, Articulação do Semiárido - ASA, 4 de outubro de 2021.
Qual sua relação com o Rio São Francisco? Que imagem vem na sua cabeça quando você lembra do Opara, nome dado pelos povos originários, ou Velho Chico, como é carinhosamente conhecido? A nascente histórica desse rio situa-se na Serra da Canastra, no município mineiro de São Roque de Minas. Ele cresce ao se juntar a diversos outros rios do Cerrado e percorre 2.814 km até chegar à Foz, em Piaçabuçu, estado de Alagoas, no Nordeste brasileiro.
Um grande rio que surge e deságua em território brasileiro, o São Francisco passa por 521 municípios nos estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. Suas águas saciam a sede de pessoas e animais, atendem a usos domésticos e industriais e são usadas para garantir a produção de alimentos a partir da agricultura familiar, bem como para assegurar a existência de projetos do agro e hidronegócio, a exemplo da irrigação, mineração, geração de energia, produção de combustíveis, criação de peixes, turismo, etc.
De tanto servir aos diversos modelos de desenvolvimento, o rio hoje padece com uma série de degradações. Sua bacia hidrográfica abriga problemas sociais, ambientais e culturais decorrentes do desmatamento, assoreamento, erosão, contaminação das águas superficiais e subterrâneas, baixa vazão, lançamento de esgoto e dejetos, intrusão salina, extinção de espécies nativas de peixes, concentração de terras, privatização das águas, entre outras ameaças.
Diante disso, não surpreendem os dados apresentados este ano no relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que apresenta o Semiárido com uma área de 13% em estado avançado de desertificação. Conforme o secretário do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), Almacks Luiz da Silva, em 1997, o Plano de Bacia (Lei 9.433/97) já identificava desertificação nas regiões do Rio São Francisco, “porém no Plano não especifica que é causado pelos projetos econômicos”. Apesar do Plano elaborado há 24 anos não constar, Almacks acredita que esta relação pode ser feita, e que, “aliado a essa mudança climática e aliado a forma de ocupação dessa bacia, isso aí sim tem gerado e tem crescido [de forma] alarmante mesmo a desertificação nessa região semiárida da Bacia do São Francisco”, confirma.
A cada dia, as mudanças climáticas aceleram os antigos desafios que existem, a exemplo do cuidado com o Rio São Francisco, conforme alerta o professor, meteorologista e pesquisador da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Humberto Barbosa. “A saúde do Chico é extremamente delicada, as secas, todo assoreamento da Bacia do Rio São Francisco também vai jogar um desafio nos próximos anos”, adianta.
Desertos no berço das águas
Quem conhece o Velho Chico na região do Submédio, na Bahia e Pernambuco, onde também se situam as hidrelétricas e lagos de Sobradinho (BA) e Itaparica (PE), geralmente não associa o volume de águas existente à sua real origem no Cerrado brasileiro, o chamado “berço das águas”. Mas são os cerrados mineiro e baiano que abrigam os principais rios tributários que garantem a perenidade do Rio São Francisco. Ciente disso, o membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Bom Jesus da Lapa (BA), Samuel Brito, evidencia a preocupação com a vida do rio diante do avanço das fronteiras agrícolas, especialmente no Oeste baiano.
Para não intensificar ainda mais a destruição da Amazônia, objeto de preocupação e mobilização internacional, o Cerrado se torna alvo da produção agropecuária, inclusive com amplo aval do Estado brasileiro. Em 2015, o Decreto 8.447/15 dispôs sobre o Plano de Desenvolvimento Agropecuário (PDA) do Matopiba, que compreende os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Ainda que o PDA do Matopiba não tenha se desenvolvido como foi propagado, nos anos seguintes o agronegócio continuou avançando na região e a realidade hoje é de aumento assustador da exploração das águas do Rio São Francisco e seus afluentes, e com um agravante: a extração diretamente das águas subterrâneas, através da perfuração de poços profundos, atingindo o Aquífero Urucuia, que alimenta os lençóis freáticos que mantêm a perenidade do São Francisco, denuncia Samuel, inclusive informando que o uso de pivôs centrais na região aumentou consideravelmente. Os pivôs centrais são sistemas de irrigação que chegam a consumir em média 2,6 milhões de litros de água por hora.
Assim, problemas cruciais e visíveis atualmente no Cerrado brasileiro são a baixa vazão dos rios, a irregularidade do regime das cheias e o assoreamento, consequências da política desenvolvimentista adotada, que não considera o fato do agronegócio ser insustentável. Na avaliação do integrante da CPT, os governos destes estados compactuam com este modelo de desenvolvimento, uma vez que “não tem uma crítica, não tem uma leitura fina e os órgãos do estado, totalmente coniventes”, a exemplo do Inema, na Bahia. Para ele, “é como se o Estado trabalhasse para o agronegócio”, lamenta.
Mitigação dos efeitos
A proposta de Convivência com o Semiárido, defendida por diversas organizações da sociedade civil – dentre elas a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) – instituições de pesquisa e hoje também governos, têm sido uma grande aliada do combate à desertificação e demais efeitos proporcionados pelas mudanças climáticas. Neste contexto, o Rio São Francisco, há muitos anos, aparece como motivo de preocupação e alvo de ações de cuidado, inclusive porque ele atravessa o Semiárido e é indispensável para a população e o ecossistema dos Biomas Cerrado e da Caatinga.
Estudos e pesquisas, saberes populares, assessoria técnica contextualizada, debates, pressão social e a disponibilidade de pessoas que vivem no Semiárido têm sido essenciais para o sucesso de experiências exitosas, visando a vida do Velho Chico. Exemplo disso tem sido o trabalho de popularização das cisternas e outras tecnologias de captação e armazenamento de água da chuva, uma ação que já assegurou o direito à água para mais de um milhão de famílias no Semiárido brasileiro.
Estas ações já eram previstas pelo próprio governo federal, através da Agência Nacional de Águas (ANA), ao editar, em dezembro de 2006, o Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água. Segundo o documento, com menos da metade dos recursos previstos na época para transposição do São Francisco, seria possível beneficiar um número maior de pessoas.
Contrária à obras como a Transposição, as organizações que compõem a ASA, para além da disputa de narrativas, têm se lançado a construir alternativas viáveis junto às famílias, no sentido de mitigar os efeitos das estiagens e contribuir com a vida do meio ambiente. Com sede em Juazeiro (BA), o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa) é uma destas organizações que vem propondo diversas formas de intervenção em parceria com comunidades e organizações sociais, mas, influenciando também a construção de políticas públicas e fortalecimento de espaços de controle social, como conselhos, fóruns, comitês, etc.
Para o coordenador do Eixo Clima e Água do Irpaa, André Rocha, uma estratégia tem sido trabalhar a perspectiva da água do meio ambiente, uma abordagem que integra um conjunto de Cinco Linhas de Luta pela Água: 1. Água da Família; 2. Água da Comunidade; 3. Água da Produção Animal e Vegetal; 4. Água de Emergência; 5. Água do Meio Ambiente. “Essa última se caracteriza por iniciativas de preservação e recuperação de estruturas de recarga de fontes naturais ao nível de microbacias hidrográficas, e também tecnologias de coleta e tratamento de esgotos para fins de reúso agrícola do efluente”, explica André.Cercamentos, construção de barreiros apropriados ao clima, barramentos de pedra; barraginhas, curvas de nível, drenagem, recomposição vegetal, são algumas das tecnologias destinadas a favorecer a infiltração da chuva e evitar assoreamentos. Já para coleta e tratamento de esgotos domésticos são utilizadas tecnologias como Bioágua, Bacias de evapotranspiração e Reator UASB, alternativas que fazem uso de elementos naturais como sol, calor, processos de decomposição, etc.
Paralelo a isso, a instituição faz a defesa da manutenção da “Caatinga em pé”, disseminando a prática do Recaatingamento, termo que substitui reflorestamento na parte do Semiárido onde o Bioma predomina. Esta prática, segundo André, “é a ação mais contundente à tal mitigação. Entre outros aspectos, se traduz na recuperação, preservação e uso sustentável dos bens naturais no bioma caatinga”. Mas, para o colaborador do Irpaa, em linhas gerais, para contribuir para o equilíbrio do clima, é preciso garantir “a distribuição justa da terra em tamanho apropriado, a utilização da vegetação nativa (...) associando-se à manutenção dos estoques de carbono proporcionado pela Caatinga no Semiárido.”
Com recursos da cobrança de uso da água do rio, o Comitê de Bacia Hidrográfica do São Francisco tem realizado projetos demonstrativos que visam a recuperação de bacias e/ou preservação. De acordo com Almacks Silva, “o recurso do Comitê não dá para trabalhar toda essa situação [degradação do São Francisco]”, portanto executa apenas projetos demonstrativos a partir da proposição de instituições, a exemplo do próprio Irpaa, que já foi proponente de um projeto hidroambiental no Riacho Mucambo, em Curaçá (BA).
A vida do Velho Chico depende, portanto, de um conjunto de aspectos que precisam ser enxergados pela justiça, pelos poderes políticos (,Executivos e Legislativos em nível federal, estaduais e municipais) e pela sociedade. Ao olhar para o que já vem sendo feito, André pontua que “tais práticas, juntamente com uma educação formal e não formal contextualizada, e uma comunicação libertadora, que problematize as verdadeiras causas das mudanças climáticas e demais problemas, e aponte soluções que perpassem o meio político, comunitário, mas, também pessoal, pode contribuir significativamente para combater as causas e para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas”.