Millennials’ são os principais promotores do idioma, que começa a ser ouvido no Congresso após a posse do novo Governo de Pedro Castillo
Jacqueline Fowks, El País Brasil, 1 de setembro de 2021
Pilar Revolledo tem 30 anos e é médica residente em um hospital público de um bairro pobre de Lima. Num plantão de fim de semana, uma paciente falante de quéchua, de 86 anos, prestes a ser operada, no entendia termos como amputação, anestesia, via endovenosa. Não se acalmava quando as enfermeiras lhe diziam “manam, manam” (“não, não”, em quéchua). “Ama manchacunckichu” (“não tenha medo”), pediu então a cirurgiã, e a mulher respondeu “añay, mamay” (“obrigado, mamãe”).
Revolledo é parte da geração de millennials que, para o linguista Carlos Molina Vital, virou “o motor de um renascimento do quéchua no Peru: as gerações de filhos ou netos de migrantes que viveram com maior estabilidade econômica ou política que seus antecessores e puderam refletir sobre suas origens”. “Aprendi quéchua com as enfermeiras dos meus Serums”, diz a cirurgiã sobre o serviço rural obrigatório que os médicos precisam cumprir se quiserem trabalhar num hospital público. O dela foi na comunidade de San Antonio de Chuca, em Caylloma, departamento de Arequipa.
Revolledo conta que também fez um curso de quéchua quando estudava Medicina na Universidade Nacional San Agustín, em Arequipa. “Mesmo antes da atual conjuntura, sempre considerei que é necessário abraçar nossas raízes e o que somos”, acrescenta. A médica se refere ao debate sobre o uso do quéchua no Congresso. Em seu primeiro pronunciamento no plenário, o primeiro-ministro Guido Bellido fez uma saudação em quéchua de dois minutos, enquanto alguns deputados o interrompiam aos gritos. A presidenta do Congresso, Maricarmen Alva, solicitou que falasse em espanhol, porque não estava sendo entendido. Bellido respondeu em sua língua materna que, segundo o artigo 48 da Constituição, o espanhol e o quéchua são línguas oficiais no Peru. O primeiro-ministro cresceu como camponês no distrito da Livitaca, em Cusco, e sua mãe não fala espanhol.
De volta ao Congresso na sexta-feira passada, antes da votação de nomeação do Gabinete, Bellido esclareceu que usou sua língua materna “não com o propósito de renegar ninguém, e sim para integrar todos os habitantes do Peru, sobretudo os chamados povos originários”. Explicou que desejou usar a língua que sua mãe ensinou na infância “em homenagem a muitos peruanos que morreram sem entender uma palavra do que se dizia aqui”. Entretanto, congressistas de oposição, formadores de opinião e personalidades midiáticas questionam o primeiro-ministro por usar o quéchua como uma forma de “provocação” e de “divisão entre os peruanos”.
A jornalista e escritora Sonaly Tuesta, que há duas décadas percorre o país documentando os costumes e rituais fora da capital, destaca que quase quatro milhões de pessoas (14% da população) falam quéchua no Peru. “Estamos em outro cenário: não só o Congresso, mas também os meios de comunicação precisam estar preparados cada vez que uma pessoa fala em quéchua; uma intérprete se torna representante das pessoas que estão escutando, e não é uma ofensa [usar o idioma]”, comenta Tuesta. Ela destaca que, além do primeiro-ministro, “há um bom grupo de jovens que têm maior consciência”, como Solischa, nome usado na internet por uma camponesa e antropóloga que se inspirou em um jovem músico difusor do quéchua nas redes sociais, morto em 2018, para promover sua cultura e sua língua materna no Facebook, Twitter e YouTube.
Línguas e direitos
O linguista Carlos Molina Vital explica que o quéchua é uma família ou conjunto de línguas relacionadas entre si por origem histórica, como nos casos do árabe e do chinês. “Em alguns casos, algumas variedades dessas famílias não são inteligíveis entre si: por exemplo, as faladas em Junín não se entendem com os do quéchua das regiões Puno ou Cusco, mas estas se entendem perfeitamente com um falante de quéchua boliviano”, diz Molina, instrutor desta língua na Universidade de Illinois e cofundador da Iniciativa de Inovação e Ensino do Quéchua (QINTI, na sigla em inglês).
Para Molina, a reforma agrária de 1969, que marcou o fim do regime de latifúndios, marcou o momento em que os camponeses falantes do quéchua se viram livres, e depois migraram para as cidades. “Mas não transmitiram o quéchua aos seus filhos nem aos seus netos. Depois, desde 1980, muitíssima população falante do quéchua se deslocou de Ayacucho e Huancavelica devido ao conflito armado interno, e isso reforçou que não se usasse o idioma abertamente em suas casas.”
“A geração de millennials mantém a presença do quéchua nos últimos 15 anos, começando com a atriz Magaly Solier e os cantores Renata Flores e Liberato Kani. Essa é a população jovem que o está difundindo em ambientes urbanos, que tem crescido entre os dois mundos, os falantes jovens que aprenderam o quéchua como uma segunda língua, porque viveram com seus avós ou com seus pais”, descreve o professor universitário. Molina calcula que esta língua originária tenha 5.000 anos.
O linguista Luis Andrade Ciudad salienta que o quéchua, como as 47 línguas originárias no Peru, foi tradicionalmente relegado à comunicação cotidiana, íntima e familiar, sendo excluído dos espaços públicos, mas que isso poderia mudar. “Imaginamos uma relação fixa entre os idiomas e seus âmbitos de uso habitual: por isso, gera desconcerto escutar o quéchua na abertura de um discurso no Congresso. Entretanto, já fomos testemunhas de iniciativas similares; por exemplo, na acidentada posse da congressista María Sumire perante uma desconcertada mesa diretora do Congresso, no ano de 2006 [que recusou o juramento feito em quéchua]. Impasses desse tipo poderiam ser evitados com sistemas de tradução e interpretação. Há um projeto a esse respeito que foi apresentado recentemente no atual Congresso, e seria muito proveitoso para construir um aparato estatal sensível ao caráter intercultural do país”, analisa o professor da Universidade Católica do Peru.
Andrade observa que, embora o Censo não registre a quantidade de peruanos bilíngues em quéchua e espanhol, supõe-se que a grande maioria seja, embora o bilinguismo englobe um domínio do espanhol que vai do mais rudimentar até o mais fluente.
“Os falantes de quéchua que se localizam mais perto do primeiro polo poderiam interagir muito melhor com o Estado como interlocutor se este se comunicasse em quéchua. E além das vantagens de intercompreensão, ser atendido pelo Estado na língua originária constitui um direito, reconhecido tanto pela Constituição como pelas normas associadas às línguas originárias, que protegem os direitos linguísticos de seus falantes”, afirma o especialista em linguística andina e sociolinguística.