Um inquérito recente apontou que pelo menos 19 milhões de brasileiros passaram fome nos últimos meses de 2020. Mas, salvo por raríssimas exceções, os supermercados não figuram na discussão.
João Peres e Victor Matioli, Le Monde Diplomatique Brasil / O Joio e o Trigo, 10 de junho de 2021.
1º de março de 2021. As ações do Assaí, braço de atacarejo do Grupo Pão de Açúcar, estreiam na bolsa de valores com 385% de valorização. Três semanas mais tarde, o rival Carrefour responde, anunciando a compra do Big (ex-Walmart) por R$ 7,5 bilhões. Não há mais dúvida: estamos diante da terceira fase da guerra fria entre as duas gigantes do supermercadismo brasileiro. Agora, a aposta é para saber quem consegue se beneficiar mais do cenário de recessão, desemprego e inflação.
Economistas, jornalistas e especialistas de diversas áreas têm buscado entender e explicar o brutal aumento do estado de insegurança alimentar e nutricional do país. Um inquérito recente da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) apontou que pelo menos 19 milhões de brasileiros passaram fome nos últimos meses de 2020. Mas, salvo por raríssimas exceções, os supermercados não figuram na discussão. Essas corporações tiveram êxito total no projeto de se apresentar como uma plataforma neutra onde os fornecedores expõem os produtos e as pessoas compram.
A realidade, como de praxe, é mais complexa. Em nosso livro Donos do mercado. Como os grandes supermercados exploram trabalhadores, fornecedores e a sociedade (Elefante, 2020), listamos uma série de razões para duvidar dessa pretensa neutralidade. A crença é de que a concentração no setor de supermercados seria benéfica aos consumidores, uma vez que os permitiria oferecer preços mais baixos. Hoje, pesquisadores e órgãos de análise da concorrência do mundo todo têm revisto essa posição, mas o brasileiro Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) prefere manter os olhos fechados para um sem-fim de variáveis.
A começar pela inflação que tanto tem preocupado as famílias brasileiras. Hoje, as grandes redes de supermercados são garantia de encontrar o preço mais baixo do dia porque elas têm toda a condição de espremer os fornecedores, inclusive levando-os a prejuízos e falências. Mas nós não sabemos se estaríamos pagando mais barato caso as grandes redes não existissem. Elas remoldaram nosso sistema alimentar de uma forma tão profunda que é impossível restituir as variáveis que nos permitiriam fazer essa conta.
Nas últimas décadas, os supermercados travaram uma guerra contra feiras livres e sacolões. Foram parte da ofensiva publicitária para que as pessoas trocassem alimentos in natura por ultraprocessados. Para que limitássemos a nossa diversidade alimentar àquilo que interessa ter nas gôndolas, excluindo alimentos regionais, frutas de quintal, verduras brasileiras. Desafiaram leis trabalhistas para impor um funcionamento de 24 horas, sete dias por semana.
E obrigaram agricultores a se concentrarem ou quebrarem. Um estudo da organização não governamental Oxfam mostra como a fatia de lucro dos supermercados tem aumentado na extensa cadeia de abastecimento de alimentos, chegando a 30% do total. De novo, não tem segredo: são agricultores e trabalhadores que ficam com cada vez menos. O gigantismo dos supermercados leva ao surgimento de um ecossistema de atravessadores pequenos, médios e grandes que repassam a mercadoria entre si até que chegue na ponta final. Às vezes, há dois atravessadores antes de um alimento chegar à Central de Abastecimento (Ceasa), e mais um ou dois até chegar no varejista. Nos casos em que a relação se dá diretamente com as grandes redes, não é exatamente uma boa notícia: apenas fornecedores grandes conseguem lidar com essa negociação e, para não sair perdendo, eles precisam espremer os agricultores.
Isso acontece porque os supermercados impõem uma série de taxas que acabam pressionando os fornecedores. Enxoval, taxa de administração, taxa de centralização, taxa de crescimento, taxa de quebra, promoções. Tudo isso tem um impacto sobre o preço final? Muito provavelmente. Mas os órgãos públicos que teriam possibilidade de produzir essa estimativa seguem de olhos fechados.
Sempre foi assim. Abilio Diniz, responsável pela transformação do Pão de Açúcar em império e expressão máxima do supermercadismo no Brasil, encontrou portas abertas no Palácio do Planalto e no Ministério da Fazenda em todos os governos pós-ditadura. Entre 2002 e 2019, o BNDES desembolsou R$ 8,5 bilhões para o setor de supermercados — R$ 8,4 bi ficaram com Pão de Açúcar e Carrefour.
Antes da compra do BIG, as duas gigantes concentravam o mesmo faturamento das 78 concorrentes seguintes — o próprio BIG havia deixado de figurar no ranking da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). Nos anos 1990, por diferentes vias, ambas empreenderam um primeiro ciclo de expansão. Enquanto o Carrefour recebia um grande aporte financeiro da matriz europeia, o Grupo Pão de Açúcar se capitalizava nas bolsas de valores de São Paulo e Nova York. Em 2007 e 2008, com a compra dos atacarejos Assaí e Atacadão, o segundo ciclo ficou claro.
Até então, as duas redes não conseguiam colocar os pés para fora dos grandes centros. Dependiam de fornecer às classes médias e altas nas metrópoles do Sudeste. Eram um retrato de tudo o que o paradigma do desenvolvimento cunhado nos anos 1950 nos prometeu: lojas limpas, com um cheiro neutro, música ambiente, temperatura controlada. Um retrato de um mundo que parecia próspero.
Os atacarejos mudaram esse panorama. As lojas sujas e desorganizadas, que oferecem preços baixos aos clientes e lucros altos para os varejistas, aceleraram a marcha sobre um Brasil um pouco mais profundo. Capitais do Norte, Nordeste e Centro-Oeste foram agraciadas com suas primeiras unidades. Em pouco mais de uma década de operação, os atacarejos viraram a galinha dos ovos de ouro das duas maiores supermercadistas do país. Hoje, algo entre 60% e 70% do faturamento das redes sai desse tipo de loja.
A chegada da pandemia foi uma grata surpresa para os executivos das duas corporações, que divulgavam com largos sorrisos, no ano passado, vendas recordes impulsionadas pela crise sanitária. Nas duas últimas semanas de março de 2020, quando os brasileiros se familiarizavam com o isolamento social, o Carrefour divulgou um aumento de 20,9% no faturamento das lojas. O Pão de Açúcar, por sua vez, vibrava o aumento de 56,5% nas vendas do trimestre.
Aproveitando a comoção nacional em torno da fome, a Abras lançou em meados de abril deste ano uma engenhosa campanha: empresas e pessoas físicas podem doar recursos que serão utilizados em um cartão, com crédito de R$ 100, que será distribuído a famílias em situação de vulnerabilidade. Com um detalhe: o dinheiro só pode ser usado em supermercados. Uma substituição do Bolsa Família, com endereço certo.
A seguir, separamos um trecho do livro
Donos do Mercado que apresenta as contradições do atacarejo, o mais brasileiro dos formatos de varejo
Meses antes da chegada da Covid-19 ao Brasil, em duas visitas ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo, acompanhamos pelo menos duas dezenas de audiências que tinham as grandes redes varejistas como reclamadas em processos trabalhistas. Ouvimos histórias de funcionários de todos os cantos da capital, mas um cantinho específico apareceu repetidamente nos relatos: Taipas.
Parada de Taipas, como é mais conhecida, é um subdistrito de Pirituba-Jaraguá. Ganhou esse nome porque abriga uma estação de trem — ou uma “parada” — da linha que conecta São Paulo a Jundiaí. Mais que um trilho de trem, Taipas hospeda unidades do Atacadão e do Assaí, as bandeiras de atacarejo dos grupos Carrefour e Pão de Açúcar. É o ambiente perfeito para um modelo de negócios que avança sobre as camadas mais pobres da população. Um modelo que garante aos clientes os menores preços do mercado, mas que desvaloriza os alimentos frescos, que demandam cuidados específicos, e dá protagonismo aos ultraprocessados, que duram meses ou anos intocados nas prateleiras. Um modelo que troca a segurança alimentar e nutricional dos clientes pelo custo baixo, que troca qualidade por quantidade, que troca os direitos trabalhistas dos funcionários por índices crescentes de produtividade.
O aparentemente famoso “Atacadão de Taipas” surgiu tantas vezes em nossas conversas de corredor no TRT que não pudemos ignorar o chamado. A viagem do centro de São Paulo à unidade consumiu pouco mais de uma hora da nossa tarde chuvosa de segunda-feira. A região fica isolada do resto da cidade por uma porção de mata nativa cada vez mais escassa e acanhada, mas as ruas movimentadas da parte mais urbana não se diferenciam em nada de outros pontos da periferia de São Paulo. Sem o auxílio incansável do GPS, não teríamos história alguma para contar.
Só tiramos os olhos da tela do celular quando avistamos o galpão laranja sob uma enorme bandeira do Brasil. Chegamos buscando uma explicação para o volume imenso de ações trabalhistas originadas naquela loja específica, mas encontramos um projeto em andamento do que deve ser o futuro do varejo alimentar no Brasil.
Tudo por ali é pensado para ter o menor custo possível. Nos super e hipermercados tradicionais, existe uma separação clara e necessária entre a área de vendas e a área de estoque ou armazenagem. Numa loja de atacarejo, essa distinção não existe. O galpão no qual os clientes circulam também abriga boa parte do estoque da loja. Os carrinhos dividem os corredores de cimento queimado com empilhadeiras e pallets. Aliás, o que não falta em uma loja de atacarejo são pallets. Eles estão no chão, empilhados no topo das prateleiras, no estacionamento, servem de gôndola para caixas de leite e engradados de cerveja; não surpreenderia se a própria estrutura do galpão fosse feita de pallets.
Já na entrada da loja, pelo menos três pessoas tentam convencer os clientes a criarem um cartão de crédito do Atacadão. O atacarejo não tem tanto medo de mostrar a que veio quanto as lojas tradicionais. No fundo, vender objetos não é o main business das redes. Fazer dinheiro é, de fato, o main business. Oferecer crédito para quem já estourou o cheque especial é muito mais negócio do que vender refrigerante e produtos de limpeza. A rentabilidade oriunda de operações financeiras é mais simples do que a obtida nas gôndolas — e os computadores não reclamam de trabalhar sete dias por semana, em turnos de 24 horas.
Em 2019, o banco Carrefour apresentava uma receita de 2,9 bilhões de reais, um crescimento de quase 20% em meio a uma economia estagnada. O cartão do Atacadão vinha com tudo, representando 28% do faturamento total do braço financeiro da corporação. No concorrente, o Assaí havia emitido 430 mil novos cartões em 2019, passando de um milhão em circulação.
Tem mais um degrau aqui. Num supermercado tradicional, a “pressão” sobre o cliente para fazer um cartão de crédito poderia ser um motivo de dissidência, uma razão para que o comprador buscasse uma outra loja. No atacarejo, não é. Quando o cliente entra, assina um contrato imaginário no qual abre mão de todo tipo de conforto. Se você não quer pessoas te incomodando, procure um Pão de Açúcar, combinado?
O Atacadão de Taipas realmente não poderia se parecer menos com um Pão de Açúcar. Não há música, não há ar-condicionado, não há espaço entre as gôndolas e o teto. Cada corredor tem um cheiro diferente, quase sempre desagradável, e os clientes parecem ter se acostumado a conviver com embalagens violadas, frascos quebrados e produtos espalhados pelo chão. Enquanto andávamos pela loja, uma garrafa de energético se esvaziava, jogada sobre outros produtos, em um pallet no corredor de bebidas; cinco quilos de alho escorriam por um pote enorme virado perto da seção de pães; um senhor se equilibrava sobre a fina camada de pó branco acumulada em frente à prateleira das farinhas de trigo. Quando não esperávamos mais nada, a cereja do bolo: um filhote de barata passeava calmamente em uma embalagem de fórmula infantil, namorando o metal em busca de uma fresta.
Essa é a cara do modelo de loja que ganhou o coração dos executivos das grandes redes de supermercados: feia, suja, desorganizada e assustadoramente lucrativa. Dos 62 bilhões de reais que o Carrefour faturou em 2019 no Brasil, 42 bilhões vieram das lojas de atacarejo. No começo de 2020, o grupo anunciou a compra de 30 lojas da rede holandesa Makro a serem transformadas na bandeira Atacadão. Quem se importa com o cheiro de alho perto do corredor dos pães?
Os carrinhos tamanho-restaurante se convertem em carrinhos tamanho-família. Em tamanho-crise. De uma realidade que está expressa nas páginas do jornal Valor Econômico, diário que estampa o reflexo do encolhimento brutal de renda. “Pela 1ª vez, há mais consumidores no ‘atacarejo’ que em supermercados”, anunciou uma reportagem publicada em novembro de 2016, ecoando uma pesquisa da consultoria Nielsen. Foi um desses momentos de virada que soam perpétuos.
Há cada vez mais segmentos sociais ali dentro. Um jovem casal escolhe uma caixa com 36 hambúrgueres. Um senhor analisa os preços de pacotes com dezenas de salsichas. Mães com crianças levam iogurtes, biscoitos, salgadinhos, leite em pó, achocolatados. Os carrinhos tamanho-crise logo se veem preenchidos — suficientes na medida — por refrigerantes comprados em fardos (a partir de 6 unidades, geralmente, é mais barato), peças gigantes de mortadela e de mussarela, potes e potes e potes de margarina. Um Tang genérico anuncia no pacote de 300 gramas ser reduzido em açúcares, mesmo que continue a ser, basicamente, açúcar; o importante é a capacidade de render 13 litros.
O carrinho de uma senhora ostenta, sobre uma montanha de ultraprocessados, um resistente maço de salsinha. Um corpo estranho. É isso que os vegetais se tornaram por aqui: um luxo. Um apetrecho quase desnecessário em meio ao êxtase colorido de embalagens plásticas que anunciam a tragédia social, ambiental e sanitária que vai se aprofundando.