Linda Brasil*. Junho de 2023, em Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.
O Brasil é reconhecido como o país que, pelo 14° ano consecutivo, mais matou pessoas trans no mundo, segundo a ONG Trangender Europe (TGEU). Nesse cenário, a resposta para a pergunta no título deste artigo parece óbvia, mas na verdade é complexa e merece a nossa reflexão.
É sempre um enorme desafio refletir sobre qualquer tema que envolva a nossa vida enquanto pessoas trans e travestis, uma vez que estamos falando de uma população cuja existência é sempre questionada, quando não negada.
Ser chamada por nosso nome é quase sempre um desafio; usar um banheiro público torna-se um problema; ter um trabalho formal é quase impossível; ser expulsa de casa e não poder concluir os estudos é a regra; morrer até os 35 anos é a expectativa para a maioria de nós.
Se, por um lado, a transfobia e a negação de direitos têm sido impedimentos históricos ao acesso de pessoas trans e travestis ao mercado de trabalho; por outro, o desemprego é, sem dúvida, um dos maiores desafios em termos de garantia da nossa cidadania.
Transfobia e violência
Aproximadamente 2% da população brasileira é composta por pessoas trans. Essa é a estimativa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), já que há uma dificuldade de obter dados mais precisos, pois o Censo Demográfico Brasileiro não contempla informações direcionadas à população LGBTQIA+. Nosso desafio na formulação de políticas públicas já começa aí.
Também, de acordo com a Antra, em 2022, pelo menos 151 pessoas trans foram mortas, sendo 131 casos de assassinatos e 20 de pessoas trans suicidadas. Nossas vidas importam? Houve ainda 142 violações de direitos humanos e os casos de impedimento de uso do banheiro foram os que mais tiveram destaque na última edição do Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras, lançado em 27 de janeiro de 2023.
O dossiê fala na existência de uma epidemia de transfobia, operada pela necro-trans-política, ou seja, uma política de morte que articula a misoginia e transfobia enquanto política de Estado, o que teve grande centralidade no governo do ex-presidente fascista. O cistema (cisgênero) nos impõe barreiras sociais e políticas, além de ciclos de violências que reduzem as possibilidades de acesso e de sobrevivência das pessoas trans, representando um impedimento real e concreto para que esse segmento da população brasileira desenvolva sua força de trabalho.
Ainda de acordo com a Antra, as mulheres trans e travestis são as mais atingidas pelo desemprego e são maioria na prostituição pela falta de oportunidade, especialmente as negras. Estima-se que 90% da população trans no Brasil esteja compulsoriamente na prostituição, sendo essa a sua maior fonte de renda e única possibilidade de subsistência.
Os dados da Antra mostram ainda que, em média, pessoas trans são expulsas de casa pelos pais aos 13 anos. A estimativa é de que a cada 48h uma pessoa trans seja assassinada no país. As vítimas possuem uma idade média de 27,7 anos e a maioria esmagadora se encontra na prostituição: 70% dos assassinados são cometidos contra profissionais do sexo, sendo que 55% deles aconteceram nas ruas.
Já informações do Projeto Além do Arco-Íris/AfroReggae, apontam que apenas 0,02% estão na universidade, 72% não possuem o ensino médio e 56% não completaram o fundamental. Qual outro segmento da população brasileira apresenta dados socioeconômicos tão estarrecedores? E só piora.
Negação de direitos
Segundo o censo trans de 2022, realizado pela RedeTrans, 64,3% das pessoas trans foram expulsas da escola por não encontrarem acolhida e suporte para continuar os estudos. Nesse sentido, a política educacional para inclusão e permanência de estudantes trans nas escolas da rede pública é praticamente inexistente, e a política afirmativa nas universidades públicas ainda é irrisória, embora necessária.
Dados produzidos pelo Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mostram que apenas cinco universidades públicas destinam cotas para o ingresso de pessoas transexuais e travestis na graduação. São elas: Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Universidade Federal do ABC (UFABC), e a Universidade do Estado do Amapá (Uepa).
Ainda assim, no período de 2020 a 2021, o número de vagas disponíveis para pessoas trans na graduação caiu de 478, em 2020, para 98, em 2021. Uma queda de quase 80%. Nas regiões sul e centro-oeste não foram identificadas políticas de ação afirmativa para o ingresso de pessoas trans na graduação.
Toda essa violência e preconceito sofridos pela população trans refletem diretamente na possibilidade de conseguir postos de trabalho.
O Mapeamento das Pessoas Trans no Município de São Paulo, publicado em 2021 pelo Centro de Estudo de Cultura Contemporânea, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania do Município de São Paulo, demonstra que mais da metade da população entrevistada (57%) não está preparada para o ingresso no mercado de trabalho.
O tipo mais comum de trabalho para pessoas trans e travestis é o informal ou autônomo, temporário e sem contrato. O popular “bico”, com registro de 72% de travestis e 62% de mulheres trans vivendo a instabilidade para a garantia do sustento.
Para se ter uma ideia de como a desigualdade de gênero também atinge as pessoas LGBTQIA+, os homens trans representam 49% dos ocupados em emprego formal com carteira de trabalho assinada. Do outro lado, destaca-se o percentual elevado de travestis (46%) e de mulheres trans (34%) que se declararam profissionais do sexo, acompanhantes e garotas de programa.
Essa é a principal variável sócio-ocupacional que distingue as identidades de gênero. No caso de homens trans, praticamente, inexiste a ocorrência de pessoas que se declaram profissionais do sexo e, dentre as não binárias, o índice foi de apenas 3%.
Ou seja, quanto mais marcadores sociais as pessoas trans e travestis têm, mais exclusões vão se criando e mais dificuldade de acesso ao mercado de trabalho vai acontecendo. Por isso, os dados evidenciam a natureza sistêmica, estrutural, e institucional da necro-trans-política e da transfobia em nossa sociedade.
A partir daí, inicia-se um ciclo de precarização da vida das pessoas trans que gera violência, adoecimento mental, invisibilidade e marginalização.
Eu sou uma mulher trans de 50 anos, sobrevivi à prostituição, consegui construir uma boa relação com a minha família, ingressei na Universidade Federal de Sergipe aos 40 anos. Lá, com muita luta, me formei em Letras/Francês, depois recebi o título de mestra em Educação (PPGED/UFS), e dei início a minha luta política por meio do movimento feminista. Em 2020, fui eleita a primeira vereadora trans de Aracaju e também a mais votada da cidade, e, agora em 2022, fui eleita deputada estadual, a primeira eleita pelo PSOL.
Tenho plena consciência de que a minha corpa, assim como a história de luta e de resistência, devem estar à serviço da luta coletiva do conjunto da classe trabalhadora, que inclui todas as pessoas LGBTQIA+. Por isso, estamos construindo uma mandata com mais de 80% de pessoas LGBTQIA+, das quais 14 são pessoas trans e não binárias. Queremos construir políticas para nós que sejam pensadas e formuladas por nós. Esse é um desafio.
Algumas iniciativas legislativas de parlamentares do PSOL, como Fábio Félix (PSOL/DF – PL 960/2020), Renata Souza (PSOL/RJ – PL 144/2021), e eu, Linda Brasil (PSOL/SE – PL 195/2021), propõem a reserva de vagas de emprego para pessoas trans e travestis nas empresas privadas que mantenham contrato ou convênio com o poder público, com o objetivo de estimular as empresas a contratarem pessoas trans, ampliando a inserção no mercado de trabalho como política de inclusão e reparação. Esse é o nosso esperançar por um futuro.
Além disso, é preciso fortalecer as políticas públicas de educação básica e superior, de incentivo à qualificação profissional, de combate à violência, de respeito, de moradia e acesso à saúde pública. A população trans e travesti precisa estar inserida na luta de classe, inclusive as profissionais do sexo, na busca por trabalho, cidadania, dignidade e renda. Esse é o lugar em que devem estar as trabalhadoras e trabalhadores trans, porque a nossa existência já é por si só uma revolução!
Por Linda Brasil. Linda Brasil é uma mulher trans, deputada estadual (PSOL/SE) e mestra pelo Programa de Pós-graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal de Sergipe (UFS).