Caroline Nunes, Alma Preta. 17 de fevereiro de 2022.
Neste ano, comemora-se o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, que representa o marco zero do modernismo no Brasil. Contudo, o movimento modernista paulista não é considerado inclusivo, pois não representou a negritude brasileira, tampouco a comunidade indígena.
O ano de 1922 foi bastante simbólico, pois era o primeiro centenário da independência do Brasil, e o país passava por uma série de mudanças sociais, políticas e econômicas. Após 34 anos da abolição da escravatura, o evento de arte moderna era protagonizado pela elite branca – principalmente filhos de ex-senhores de engenho ou cafeicultores.
Os trabalhos, que mostravam temas brasileiros baseados, sobretudo no folclore “nativo” e nas “lendas rurais”, era algo que, nos dias de hoje, facilmente seria interpretado como apropriação cultural e apagamento negro. Nas pinturas, as minorias eram retratadas, mas na prática, artistas negros e indígenas não estavam incluídos no seleto grupo. É o que explica a artista da Exposição Recostura – obras de mulheres negras adaptadas com bordados, no Theatro Municipal – Chris Tigra.
“O problema é que apesar dessa vontade de romper paradigmas – e, de fato, rompeu com alguns e trouxe frescor – o modernismo não deu conta de olhar pra fora de si e, nesse sentido, comeu a si mesmo, autoantropofágico. Ou seja, não houve ‘Semana de Arte Moderna’ pra negros, indígenas e outros corpos não brancos”, comenta a artista.
Participaram nomes como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Heitor Villa-Lobos e Di Cavalcanti. O Movimento Antropofágico, surgido, com a publicação do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” de Oswald de Andrade, por exemplo, acreditava na “devoração”, “digestão” e “deglutição” das influências estrangeiras que subsequentemente seriam vomitadas pelos artistas com as cores, a fim de retratar fielmente a “essência brasileira”.
A diretora geral do Theatro Municipal de São Paulo, Andrea Caruso Saturnino, avalia que na Semana de Arte Moderna de 1922, artistas e intelectuais negros brasileiros que, àquela altura, já gozavam de relativo reconhecimento – como os irmãos Timótheo, Artur e João –, não estiveram presentes no evento devido ao contexto histórico que ele estava inserido.
“Os primeiros anos da República foram marcados por uma intensificação da desigualdade racial que marca o Brasil até hoje, e que parte dos intelectuais e artistas de 1922 eram integrantes ou vinculados ao ideário das classes dominantes. Mesmo as propostas mais inovadoras, dificilmente conseguiram romper com sua origem de classe”, ressalta a diretora.
Oportunidade, reparação e olhar crítico
“Hoje parece que vivemos na era da reparação publicitária. O acesso ainda é restrito, mas existe, e sempre há um interesse bizarro por trás: o de cumprir ‘representatividade’ para se proteger de possíveis críticas. A representatividade não é uma coisa bonita, temos que falar de proporcionalidade, aí a gente começa a conversar”, ressalta Chris Tigra.
A artista avalia que os espaços voltados à arte são criados a partir de um pensamento de classe burguesa, branca. Segundo ela, o sistema é estruturalmente viciado. Já a diretora geral Andrea afirma que para reparar o apagamento negro nas artes, é preciso, antes de tudo, dar espaço real para artistas negros e indígenas nas programações artísticas na cidade.
“O que falta é acesso, tanto dos artistas em espaços considerados de ‘prestígio’ como da população negra a esses espaços”, avalia.
Contudo, para Chris Tigra, o movimento modernista evidenciado na Semana de Arte de 1922 conseguiu, mesmo que a passos pequenos, trazer algo novo dentro das limitações do contexto em que o evento estava inserido. Para a população negra, Chris recomenda que o marco seja observado com um olhar crítico.
“O principal é reconhecer que a Semana foi como foi, reconhecendo as mazelas e que essas lacunas dizem muito sobre a construção desse Brasil. Compreender o passado para atuar no presente e intervir no futuro é a onda. Tudo que aconteceu lá atrás na nossa história tem a ver com o que vivemos hoje, essa desigualdade toda. Reconhecer para mover, deslocar, criar um mundo novo que não repita os mesmos erros” finaliza a artista..