Em algumas partes das terras baixas amazônicas, em apenas um grama de terra convivem mais de 1.000 espécies de fungos. Em apenas 10.000 metros quadrados de floresta tropical existem mais tipos de árvores do que em toda a Europa. E nas águas que percorrem a imensa bacia hidrográfica habitam uma em cada 10 espécies de peixes de água doce do mundo, mais da metade delas são endêmicas. Entre elas, o imenso pirarucu, um peixe que tem as escamas mais duras do mundo, uma língua óssea e que é capaz de respirar fora da água.
Juan F. Samaniego, La Marea-Climática, 25 de janeiro de 2022. A tradução é do Cepat.
Ainda hoje, grande parte de seu território permanece inexplorado. Na Amazônia, uma nova espécie é descrita à ciência a cada dois dias. Aos pés dos Andes e até o Atlântico, há cerca de 10 milhões de anos a região é o laboratório de biodiversidade do planeta. Mas, além disso, esse ecossistema de mais de 7 milhões de quilômetros quadrados, capaz de gerar sua própria chuva, influencia o clima global e é um de nossos últimos freios de emergência diante das mudanças climáticas.
Mesmo assim, observamos sua destruição com indiferença. “A Amazônia é o refrigerador do planeta, seu ar condicionado. Se a destruirmos, teremos consequências globais. Não temos consciência que de que todos fazem parte de um mesmo planeta. Tudo está interligado de modo que não conseguimos entender”, explica Encarni Montoya, pesquisadora de Geociências Barcelona (GEO3BCN-CSIC) e uma das integrantes do Painel Científico pela Amazônia, formado por mais de 200 especialistas.
É também uma das autoras de um relatório de avaliação da Amazônia apresentado durante a COP26, realizada em novembro, um documento que resume dois anos de intenso trabalho científico e que alerta que a região está se aproximando de um ponto crítico de não retorno por culpa, entre outras coisas, do desmatamento, incêndios e mudanças climáticas.
“Teve pouca repercussão, menos ainda na Espanha. Teve muito pouco impacto em relação ao nível de pesquisa que se faz aqui e os laços que temos com a América Latina. A indiferença com o qual foi recebido é desanimadora”, destaca Montoya, especialista em estudar os fósseis para entender a ecologia do passado.
Uma fábrica de reciclagem de chuva
Uma floresta encharcada onde crocodilos e piranhas espreitam, dezenas de tipos de tarântula se abrigam entre as raízes e imensas colônias de formigas formam procissões quilométricas em busca de alimentos. A Amazônia evoca uma imagem muito clara em nossa mente. Mas a realidade é muito mais diversa. A região abrange de florestas costeiras a ecossistemas pré-andinos, florestas chuvosas e secas, pântanos, turfeiras e savanas.
“Só a bacia amazônica é maior que a Europa”, explica a paleoecologista. Sua magnitude é tal que a região é uma imensa fábrica de chuvas. Uma correia transportadora de água do oceano Atlântico para o interior da América do Sul. “Graças às temperaturas e à fisiologia das árvores, a água captada na costa entra em um ciclo de precipitação e evaporação constante, de reciclagem, que a transporta para o interior. Assim, consegue-se que a umidade do Atlântico vá praticamente até os Andes”.
Essa corrente de umidade refresca todo o continente, absorvendo energia da atmosfera, gerando chuva e reduzindo a temperatura da superfície em uma zona tropical que recebe grande quantidade de radiação solar. Além disso, esse gradiente de energia e precipitação influencia os movimentos da chamada zona de convergência intertropical (a região onde convergem os ventos alísios do hemisfério norte com os do hemisfério sul, que por sua vez influencia em fenômenos como o do El Niño). Ou seja, acaba marcando uma parte importante do clima do planeta.
“Dado que é a mais extensa floresta tropical contínua da Terra, suas dinâmicas têm um efeito planetário. As árvores captam CO2 da atmosfera, o CO2 que nós emitimos e que é a principal causa das mudanças climáticas, então, a Amazônia é um imenso sumidouro de carbono, que depois se acumula na vegetação e no solo”, acrescenta a pesquisadora de Geociências Barcelona.
Uma região encurralada
A Amazônia perpassa nove países diferentes. As linhas imaginárias das fronteiras também marcam a saúde dos ecossistemas. Ao noroeste da bacia, no Equador e na Colômbia, as florestas chuvosas estão mais intactas (embora não livre de ameaças). Ao sul e sudeste, onde está o chamado arco do desmatamento, os ecossistemas estão mais degradados e as pastagens e explorações mineiras estão vencendo a batalha contra milhões de anos de evolução.
“A Amazônia está um pouco encurralada. Há perigos mais locais, como a mineração, o desmatamento e os incêndios intencionais. E outros globais. Temos que pensar na culpa do resto do mundo pelo fato da Amazônia estar assim. De onde sai o alimento para as granjas de animais na Espanha? O principal produto para rações são os campos de soja do Brasil. Mais de 50% do grão produzido mundialmente é para alimentar o gado”, reflete Encarni Montoya.
A partir de meados do século XX, a colonização da Amazônia dirigida pelos governos da região para aumentar a exploração dos recursos esteve acompanhada de infraestruturas, novos assentamentos, reformas agrárias e a expansão dos setores mineiro, energético e pecuário. Hoje, ao menos 17% da superfície do solo amazônico é de uso humano (urbanização e indústria). E outro tanto está degradado, segundo os dados do relatório do Painel Científico da Amazônia. O desmatamento, liderado pelo Brasil (mas também em aceleração na Colômbia), avança sem trégua.
“Há muitos indicadores que nos mostram que estamos nos aproximando de um ponto de inflexão, uma mudança de regime para uma savanização da Amazônia”, explica a pesquisadora. “Um desmatamento de 25% pode ativar irremediavelmente o processo. E já estamos nisso. Quanto maior for o desmatamento, maior a vulnerabilidade e mais provável é que aumente a destruição por incêndios e a mortalidade de espécies. Por sua vez, isso faz com que haja mais espaços sem mata e que o gradiente de umidade seja interrompido. Entra-se em um efeito cascata com consequências catastróficas. Caso seja ativado, não temos nem ideia de como detê-lo”.
Um terremoto de alcance global
Desde que a vida surgiu na Terra, conseguiu se adaptar a qualquer contexto. Se as condições do ambiente mudam, as espécies também mudam. Algumas desaparecem e outras triunfam no novo mundo. Mas essa aparente indestrutibilidade da vida não evita que na história do planeta tenha existido momentos mais agradáveis do que outros. Nem que seja difícil se recuperar de certos impactos, ao menos em escalas de tempo humanas.
“Há cerca de 8.000 anos, houve uma forte seca na região, o que se conhece como o evento seco do Holoceno médio. Hoje, sabemos que em algumas regiões ocorreu uma grande substituição da massa florestal por outras espécies. Essa mudança demorou ao menos 3.000 anos para ser revertida, uma vez que as condições de umidade foram restabelecidas e isso considerando que a pressão do ser humano era mínima”, explica a paleoecologista.
“Do ponto de vista geológico, caso fossem interrompidos todos os ataques à Amazônia, os ecossistemas poderiam se recuperar em um prazo não muito longo. Mas não será algo que veremos, nem nossos filhos, nem nossos netos. Se queremos evitar que aconteça uma mudança de regime, qualquer ameaça precisa ser parada imediatamente”, acrescenta.
As consequências dessa mudança de regime serão vistas em escala local, tanto entre os povos indígenas que há milhares de anos estão adaptados à Amazônia, como entre os países da região, que sofrerão impactos sociais, econômicos e climáticos. Mas, além disso, o desaparecimento das florestas em favor de ecossistemas mais parecidos à savana também teria efeitos em escala global.
“Caso desapareça nosso principal sumidouro de carbono, a concentração de CO2 na atmosfera aumentará de forma significativa, razão pela qual teremos um efeito rebote das mudanças climáticas”, explica Encarni Montoya. “Além disso, haverá mudanças climáticas ligadas às mudanças nas circulações atmosféricas. Isso são apenas alguns efeitos, porque não fazemos nem ideia de até onde as consequências podem chegar”.
O relatório, amparado sob o guarda-chuva do programa ambiental das Nações Unidas e inspirado no Pacto de Leticia pela Amazônia, aponta algumas das soluções para escapar da catástrofe ambiental e climática: parar os ataques, restaurar os ecossistemas degradados, continuar pesquisando e monitorando o estado do Amazonas, reconhecer a soberania da região e os direitos dos indígenas, autênticos guardiões da biodiversidade e, sobretudo, proporcionar à região um futuro sustentável, com um sistema econômico que ofereça possibilidades para quem vive nela, sem que esse sistema coloque em risco o imenso capital natural da última grande floresta da Terra.
“Estamos no mesmo planeta, não estamos divididos em compartimentos. O que acontecer na Amazônia, todos nós sofreremos. Todos temos que mudar um pouco a perspectiva, mas, sobretudo, os políticos. Ninguém quer dar as notícias ruins, mas por olhar para outro lado os problemas não desaparecem”, conclui a pesquisadora. “Quanto tempo demoramos para se importar um pouco com o IPCC sobre as mudanças climáticas? Esse relatório da Amazônia é o trabalho de dois anos, de mais de 200 pesquisadores”. Vamos ouvi-los.