Os nomes ligados a associações do agronegócio que podem captar de graça até 1,8 bilhão de litros diários, volume capaz de abastecer 11 milhões de pessoas. [Os infográficos da matéria podem ser acessados no site da Pública].
Bianca Muniz e Rafael Oliveira, Agência Pública, 8 de dezembro de 2021
Cada brasileiro gasta, em média, 154 litros de água diretamente para todas as suas atividades diárias, segundo dados de 2019 do governo federal. Em meio às recorrentes crises hídricas e energéticas, o recado governamental, veiculado em diversas peças publicitárias é sempre o mesmo: tome banhos mais curtos, não lave o carro nem a calçada.
Mas no oeste da Bahia, região do Cerrado brasileiro que é uma das últimas fronteiras agrícolas do país, o problema ganha não só uma escala diferente como personagens privilegiados. Em especial nas últimas duas décadas, o agronegócio do oeste baiano tem avançado sobre as águas que servem de fonte de renda, lazer e vida para os ribeirinhos, agricultores e pescadores que vivem nos Gerais da Bahia. O objetivo é expandir suas plantações para áreas onde as chuvas são menos abundantes, e os cultivos demandam irrigação, quase sempre feita por meio de pivôs centrais — situação que tem causado conflitos socioambientais.
O agro que é “tech” e “pop” – como prega uma famosa campanha publicitária – é também, segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), o setor que consome 78,3% da água do país. E no oeste baiano são bilhões de litros de água captados diariamente pelo setor. Boa parte dessa água, como você verá a seguir, está nas mãos de figuras do agro na região, que se articulam por meio de duas grandes associações: a Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba) e a Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa). Todos esses recursos hídricos são captados gratuitamente, já que não há, atualmente, previsão de cobrança pelo uso da água.
Água suficiente para abastecer a população de Pequim
O dado inédito – 1,8 bilhão de litros de água por dia – é o que o estado da Bahia concedeu em outorgas hídricas a mais de duas dezenas de diretores e conselheiros da Aiba e da Abapa e a familiares e empresas ligadas a eles.
O levantamento inédito da Agência Pública, feito a partir de portarias de outorgas de recursos hídricos, que são publicadas no Diário Oficial, dá a dimensão dos montantes utilizados pelo agronegócio naquela região.
O volume de água é o suficiente para abastecer cerca de 11,8 milhões de brasileiros, população que é maior que a de 22 estados e do Distrito Federal. Somente São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e a própria Bahia têm população maior, de acordo com dados do IBGE. O montante poderia abastecer diariamente também a população de Pequim, na China.
Quem faz a gestão da água, autoriza o seu uso e define quanto dela pode ser utilizada é o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), órgão do governo estadual. É a autarquia que tem concedido os recursos hídricos usados por grandes fazendeiros e grupos internacionais para irrigar suas vastas plantações de soja, milho, algodão e outras commodities, em sua maior parte destinadas à exportação.
Por causa desse uso intensivo de água para a irrigação, muitas vezes associado ao desmatamento autorizado pelo Estado e promovido pelo agronegócio para ampliar suas áreas cultiváveis, os moradores de comunidades seculares têm visto os rios da região, historicamente considerada um “oásis” de águas, secarem.
Os grandes irrigantes da Bahia
A maior parte desses recursos hídricos é “sugada” por dragas da superfície dos vários rios que compõem as bacias hidrográficas do rio Corrente e rio Grande, dois dos principais afluentes do rio São Francisco. Há ainda uma parcela captada do subterrâneo, a partir da perfuração de poços que puxam água do aquífero Urucuia, fundamental para a manutenção das duas bacias e igualmente central para o Velho Chico. Nos últimos anos, no entanto, milhares de quilômetros cúbicos de água do Urucuia secaram, de acordo com estudos científicos recentes.
Atraídos pelas terras planas e pelas chuvas, os empresários do agro no oeste baiano começaram a ocupar a região no final da década de 1970, muitos deles vindos do Sul do país.
Segundo apuração da Pública com fontes locais, esses fazendeiros teriam sido beneficiados ao longo do tempo por incentivos fiscais e pela aparente falta de empenho dos órgãos locais na realização de ações discriminatórias – um procedimento judicial em que o Estado reivindica as chamadas “terras devolutas”, de posse estadual, como são boa parte dos 2,6 milhões de hectares hoje destinados à produção na região. Além disso, ter a “posse” do uso da água, ainda que a captação não seja feita, promove a valorização da propriedade, o que tem incentivado proprietários de terra da região a solicitar outorgas para fins de especulação imobiliária.
Mais recentemente, a área tem visto uma presença crescente de grupos estrangeiros, vários deles ligados a fundos de pensão americanos, como o de Harvard, e que negociam com grandes multinacionais, como Bunge e Cargill. Essa flexibilização e desregulamentação da legislação ambiental do estado tem permitido, dizem as fontes consultadas pela reportagem, a retirada de vultosos volumes de água sem, necessariamente, promover a fiscalização para checar se a quantidade autorizada é a que está sendo efetivamente captada por fazendeiros. Somente em janeiro deste ano o Inema publicou portaria estabelecendo “critérios para implantação de sistema de medição para monitoramento”.
Revoltas e mobilizações
No primeiro dia de setembro de 2021, a plenária virtual que discutiu a aprovação do plano de bacia do rio Corrente terminou com uma conquista dos movimentos sociais organizados em torno do coletivo Águas do Oeste.
Além da suspensão de novas autorizações de supressão vegetal (ASVs), em áreas prioritárias, o coletivo conseguiu aprovar a adoção de medidas para recuperação de parte dessas áreas afetadas, e também a redução da quantidade de água que pode ser autorizada para captação dos rios — de 80% para algo entre 60% e 70% do índice atualmente utilizado, que leva em conta séries históricas dos rios.
Essa aprovação de um plano de bacia menos predatório é fruto de um processo histórico de mobilização social na região em defesa das águas que atingiu seu pico no final de 2017, quando a escassez de chuvas foi especialmente intensa e milhares de ribeirinhos invadiram e depredaram a fazenda Rio Claro, de posse da Igarashi Agropecuária. A empresa, que produz gêneros alimentícios, como batata e cenoura, tinha autorização para captar milhões de litros do rio Arrojado, e os moradores das comunidades locais vinham sentindo os impactos da retirada de água no seu dia a dia. À época, as ruas de Correntina foram tomadas por cerca de 10 mil manifestantes em apoio à ação. Atualmente, a Igarashi tem autorização para captar 176,5 milhões de litros do mesmo rio Arrojado.
Mas o recente plano aprovado, quatro anos depois do episódio da Igarashi, parece contrariar os interesses do agronegócio. Segundo relatos colhidos pela reportagem, Cézar Busato, que ocupa uma das cadeiras destinadas aos irrigantes e agropecuaristas no comitê que votou o plano, era um dos descontentes. Membro do Conselho Fiscal da atual administração da Aiba, o jovem produtor rural é a terceira geração de sua família no negócio.
Seu pai, Júlio Cézar, e um de seus tios, Marcos Antônio, estão entre os agronegociantes com maior quantidade de água outorgada em todo o oeste baiano. Somados, eles têm autorização para retirar mais de 325,2 milhões de litros de água diariamente, de rios como o Corrente, o Grande e o Galheirão, além de poços de captação subterrânea.
Há ainda outros membros da família nas associações do agro na região: o avô de Cézar, Hélio, citado na Operação Faroeste da Polícia Federal, é também membro do Conselho Fiscal da Aiba; o pai, Júlio Cézar, é ex-presidente da Aiba e da Abapa, sendo membro do Conselho Consultivo de ambas, além de ser o atual presidente da versão nacional da Abapa, a Abrapa. Os Busato têm fazendas em cidades como Baianópolis, Serra do Ramalho e São Desidério.
Além de Cézar Busato, existem outros representantes do agronegócio no comitê, como Adelar Pizzatto e Denilson Roberti – ex-conselheiro fiscal da Abapa, ele e mais dois familiares são donos de outorgas que totalizam 45 milhões de litros diários, em Jaborandi. Todos eles foram voto vencido na plenária virtual, que contou com representantes da Secretaria do Meio Ambiente (Sema) e do Inema.
Segundo as fontes consultadas pela reportagem, a reação dos servidores da Sema e do Inema também teria sido de desgosto. “O Eduardo Topázio [da Diretoria de Recursos Hídricos e Monitoramento Ambiental], que representava o Inema na reunião, ficou tão enfurecido quanto o Cézar Buzato”, conta um representante de movimento social que prefere não se identificar. “Os representantes do Estado vieram com muita truculência, como se o comitê não soubesse o papel que ele tem, como se a gente tivesse fazendo uma ilegalidade”, relata Marcos Rogério Beltrão, ativista da Associação Ambientalista Corrente Verde e membro do Comitê do Corrente.
Do lado de quem está o governo da Bahia?
Houve ainda, em outubro deste ano, uma segunda reunião com nova vitória da sociedade civil em relação às ressalvas propostas ao plano de bacia. Segundo Marcos Rogério e a pesquisadora Karla Oliveira, que é ligada ao Observatório Matopiba e estava presente em ambas as reuniões, chamou atenção a atuação dos representantes dos órgãos ambientais estaduais. De acordo com ambos, uma representante da Sema teria afirmado que a secretaria iria entrar na Justiça contra a suspensão de novas autorizações de supressão de vegetação e que “não cumpriria o determinado”.
A vitória dos movimentos sociais no Comitê do Rio Corrente foi precedida, um dia antes, de uma derrota em outro comitê, o do Rio Grande, em que também foi votado um plano de bacia. Na ocasião, as ressalvas da sociedade civil ao proposto pela empresa contratada nem sequer foram colocadas em votação. “A queda de braço ali é desigual porque eles [o agronegócio] estão enquanto usuários [dos recursos hídricos] e estão também em algumas vagas da sociedade civil”, explica Amanda Silva, técnica da Agência 10envolvimento que participou das negociações.
O secretário do comitê, responsável por conduzir o processo de votação, é Enéas Porto, analista ambiental da Aiba – associação que tem uma das cadeiras destinadas aos órgãos de classe. A organização do agronegócio ocupa ainda outra vaga no colegiado, com o Instituto Aiba, seu braço social, que está em espaço reservado para a sociedade civil.
“Quando a Amanda foi apresentar as ressalvas, simplesmente a gente viu um show de horrores de machismo, de autoritarismo. Chegou ao ponto do secretário tirar o fone de ouvido e começar a ler a ata. Foi horrível”, relata Karla Oliveira, uma das responsáveis pela formulação das ressalvas.
Além disso, no Comitê do Rio Grande, o representante do Inema no colegiado é Saul Cavalcante Reis, coordenador regional do órgão em Barreiras, que é casado com Alessandra Chaves Cotrim Reis, diretora de Meio Ambiente e Irrigação da Aiba desde 2013.
Além do apoio dos órgãos ambientais estaduais e das duas cadeiras da Aiba, o domínio dos produtores rurais no Comitê do Rio Grande se dá graças às vagas destinadas aos irrigantes, que têm como representantes Maurício Joel Gatto e Elisa Zancanaro Zanella. Maurício, atualmente vice-presidente do comitê, é parte de um grupo familiar que reúne as empresas Irmãos Gatto Agro e Sementes Oilema. Um deles, Valter Gatto, é do Conselho Fiscal da Aiba.
Somados, eles têm outorgas que totalizam mais de 149 milhões de litros de água que podem ser captados diariamente. Elisa, que já foi presidente do Comitê do Rio Grande, é filha do casal Marilene Zancanaro Zanella e Celestino Zanella, ex-presidente da Aiba e da Abapa, além de membro do Conselho Consultivo de ambas. Eles são ligados à Agrícola Decisão e à Naz Agrícola, junto com outros familiares de Marilene, e têm outorgados 68 milhões de litros diários. Há ainda outro “ramo” da família Zancanaro com atuação no oeste baiano: Diloe, Milton César, Cimara e Gelci Zancanaro somam 180 milhões de litros de água.
“Governador da capitania do oeste”
No último dia 27 de outubro, o governador Rui Costa (PT) reuniu-se com quatro fundos de investimento em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, no penúltimo dia de uma missão internacional que passou por países da Europa e da Ásia. Na comitiva do governador estavam Moisés Schmidt, atual vice-presidente da Aiba, seu irmão David Schmidt, do Sindicato dos Produtores Rurais de Barreiras, e Luiz Carlos Bergamaschi, presidente da Abapa.
A família de David e Moisés, donos da Schmidt Agrícola, também inclui o segundo vice-presidente da Abapa, Paulo, que tem autorização para captar 33,4 milhões de litros de água para irrigação da fazenda Rio de Janeiro, em Barreiras. Já Bergamaschi, que, além de estar à frente da Abapa, é conselheiro convidado da Aiba, detém outorga para captar 44,7 milhões de litros diários em quatro de suas fazendas, localizadas em Correntina. Em uma delas, o produtor rural trava disputa com a comunidade de Capão do Modesto, que relata episódios de violência, inclusive com agressões físicas e disparos de arma de fogo. Além da água outorgada ao presidente da Abapa, seu irmão, Jarbas, e sua cunhada, Grasiela Bergamaschi, com quem ele rompeu sociedade, podem retirar outros 82,6 milhões diariamente para irrigar plantações na cidade de Luís Eduardo Magalhães.
A viagem com Rui Costa não foi a primeira comitiva governamental que contou com a presença do agronegócio. Em dezembro de 2017, à época do episódio Igarashi, o vice-governador João Leão (PP) foi à China, levando na comitiva três produtores rurais. Segundo as fontes consultadas pela reportagem, é o vice-governador quem manteria interlocução mais próxima com as associações do agro no oeste baiano. Leão já defendeu publicamente os interesses do agro, comparecendo em eventos e buscando investimentos – além de levar representantes do grupo em comitivas internacionais.
“Ele age como governador da capitania do oeste da Bahia. A impressão que se tem aqui é de que todas as questões relevantes da região são entregues a ele, que tem uma influência absurda desses projetos. Nós percebemos uma atuação promíscua do Estado”, diz Maurício Corrêa, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR).
Na China, João Leão estava acompanhado do então presidente da Aiba Celestino Zanella e dos à época presidentes dos sindicatos dos produtores rurais de Barreiras e de Luís Eduardo Magalhães, Moisés Schmidt e Carminha Missio, respectivamente. Zanella é pai de Elisa Zancanaro, que faz parte do Comitê do Rio Grande. Já Carminha Missio é uma das irmãs da família Gatto, também já citada nesta reportagem.
Outro lado
Em respostas aos questionamentos da Pública, a Aiba e a Abapa destacaram que a porcentagem de terra irrigada (200 mil hectares) em relação ao total dedicado à agricultura (2,6 milhões) “está bem abaixo da média de outras regiões agrícolas tradicionais.” As organizações também ressaltaram o estudo sobre aproveitamento hídrico do Aquífero Urucuia e do oeste da Bahia, feito por pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e financiado pelas associações. A nota enviada pela assessoria, que pode ser lida na íntegra, também afirma que “ [a atuação dos órgãos] junto ao governo da Bahia, ao judiciário e ao legislativo, é marcada por um diálogo transparente, respeitoso na defesa dos interesses dos seus associados junto aos poderes públicos, como é prática das entidades representativas da sociedade civil em sociedades democráticas”.
O Inema, a Sema, o governador Rui Costa (PT) e o vice-governador João Leão (Progressistas) não responderam aos questionamentos da reportagem até a publicação. A Pública também não conseguiu contato com nenhum dos agronegociantes citados no texto, à exceção do presidente da Abapa, Luiz Bergamaschi, que é representado pela assessoria da associação. Neste caso, também não houve resposta às perguntas encaminhadas.
Metodologia