André Moreira Cunha e Andrés Ferrari, Sul21, 5 de julho de 2021
“É hora de as corporações estadunidenses e os 1% mais ricos começarem a pagar sua parcela justa [de impostos]. Somente a sua parcela justa”. (Joe Biden, discurso ao Congresso dos EUA, 28/04/21)
“… é hora de renovar o compromisso de nosso governo de desempenhar um papel mais ativo e inteligente na economia …. estamos propondo investimentos inteligentes – para tornar nossa economia mais competitiva e sustentável, para fornecer oportunidades para todas as famílias e trabalhadores e para tornar nosso sistema tributário mais justo”. (Janet Yellen na Câmara de Comércio dos EUA em 18/05/2021).
A pandemia da Covid-19 propiciou a emergência de debates importantes acerca do papel das políticas públicas nas sociedades contemporâneas. E, para além das discussões estritamente acadêmicas ou políticas, a ação efetiva dos Estados Nacionais foi um ensaio para possíveis avanços no desenho de tais políticas e de seu financiamento.
A ideologia neoliberal marcou era da globalização. Sua disseminação se deu a partir da ação ativa das elites econômicas dos países de alta renda, particularmente os Estado Unidos, dos think tanks privados, setores da academia, grande imprensa e instituições multilaterais. As assim-chamadas “reformas pró-mercado” eram justificadas a partir de determinada leitura sobre a crise da estagflação dos anos 1970 e o padrão de intervenção estatal predominante no pós-segunda Guerra Mundial. Argumentava-se que o excesso de regulamentação, de impostos e de gastos prejudicariam a eficiência das economias, sua capacidade de inovar, gerar ganhos de produtividade e crescimento mais elevado.
A liberdade para os capitais tornou-se o mantra da nova era. Nas economias de alta renda e em países periféricos foram reduzidos os impostos sobre lucros, patrimônio e heranças; e elevados os impostos sobre as rendas do trabalho e o consumo. Sindicatos foram enfraquecidos, setores econômicos desregulamentados, investimentos públicos em infraestrutura reduzidos, serviços públicos essenciais para manutenção da coesão social foram privatizados ou passaram a ter seu acesso mais restrito. Gastos públicos e subsídios não foram comprimidos totalmente, mas redirecionados dos interesses coletivos para os setoriais e privados. Com menor capacidade de arrecadação, os governos se viram forçados a ampliar suas dívidas públicas. A pressão dos credores para a manutenção de sua solvência foi gerando sucessivas ondas de “políticas de austeridade”. Como reconhece o próprio FMI e, cada vez mais, os acadêmicos independentes, a “austeridade” contribuiu para reduzir o dinamismo econômico e ampliar as desigualdades sociais.
Os resultados da globalização sob a égide do neoliberalismo foram decepcionantes para o conjunto da economia global, ainda que tenham sido extremamente benéficos para determinadas economias e/ou segmentos sociais. Com exceção de poucos países, especialmente os asiáticos que não seguiram a cartilha neoliberal, o crescimento da renda per capita foi menor e mais volátil nos últimos quarenta anos do que nas três décadas anteriores. As rendas do trabalho estagnaram e a desigualdade se ampliou fortemente. Os incrementos de produtividade foram modestos e os problemas derivados do uso predatório dos recursos naturais se elevaram consideravelmente.
A falta de maior dinamismo econômico e de perspectivas para a mobilidade social ascendente de grupos populacionais cada vez maiores, mesmo nos países de alta renda, se traduziram em questionamentos acerca das instituições políticas e sociais existentes nas democracias liberais. A sensação de que os Estados funcionam para poucos e de que as injustiças são prevalentes, ameaçam os alicerces daquelas democracias. Neste contexto, cientistas políticos e demais geral sugerem que regimes políticos autoritários podem emergir mesmo em países com longa tradição democrática.
Em síntese, o neoliberalismo nada mais foi do que o governo dos ricos para os ricos. Diante da pandemia e de problemas ainda maiores, como as mudanças climáticas e as tensões geopolíticas entre os principais polos globais de poder, esse arranjo ideológico e institucional perdeu funcionalidade. Todavia, ainda não está claro quais contornos políticos e institucionais prevalecerão no mundo depois do neoliberalismo.
A OCDE e sua Reforma Tributária “Histórica”
A liberdade plena dos capitais na era da globalização permitiu uma nova concentração da renda e, principalmente, da riqueza nas mãos da mesma elite que capturou e redesenhou as políticas públicas desde os anos 1980. Estudos do World Inequality Lab, dirigido por Thomas Piketty e seus colegas, sugerem que, desde 1980, os 1% mais ricos se apropriaram de uma parcela duas vezes maior dos incrementos da renda global em comparação com a parcela direcionada aos 50% mais pobres.
O recém-lançado “Global Wealth Report 2021” (Credit Suisse, June) fornece um quadro estrutural ainda mais perturbador. Em 2020, enquanto a renda global, que mede o fluxo de bens e serviços novos produzidos, variou entre -3% e -4%, o estoque da riqueza global (o valor de mercado de ações, títulos diversos, imóveis etc.) aumentou em mais de 7%. Nos últimos vinte anos, somente em 2008 a riqueza global experimentou contração. A queda brutal nos preços dos ativos financeiros no último trimestre daquele ano, fruto dos efeitos da falência do Lehman Brothers, explica tal ponto fora da curva. Já em 2009, as políticas de expansão quantitativa dos balanços dos principais bancos centrais produziram a intensa recuperação no preço das ações e demais ativos. Essa política também foi aplicada em 2020, com resultados equivalentes. Enquanto milhões de pessoas perdiam seus empregos e pequenos negócios, os ricos foram protegidos e ganharam ainda mais com a crise em curso.
Neste ambiente, tornou-se voz corrente, inclusive em meios de comunicação conservadores como o Financial Times e a The Economist, que seria necessário levar a sério a reversão de quarenta anos de frouxidão tributária para com os ricos. A administração Biden, com o seu “Build Back Better” tentar rever as políticas prévias de redução na tributação de lucros corporativos e rendas financeiras, bem como os créditos tributários, isenções e legislações que favorecem a elisão fiscal. Ademais, aposta na retomada dos investimentos públicos em infraestrutura, inovações, e seguridade social em sentido amplo, bem como defende políticas de valorização do salário mínimo e fortalecimento dos sindicatos.
Sob a liderança da Secretária do Tesouro, Janet Yellen, os países do G7 acordaram estabelecer um piso global para a taxação das multinacionais. Na sequência essa mesma ideia ganhou a adesão mais ampla. Com isso, no dia 1 de julho, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) anunciou que 130 países (ou jurisdições) entraram em um acordo considerado, por esta organização, “histórico” e que visa a atualização das regras a tributação dos negócios internacionais. Foram aprovados dois pilares para o desenho da futura reforma: o primeiro estabelece reequilíbrio na divisão das receitas tributárias geradas pela taxação das empresas transnacionais (ETNs) entre os países em que tais entidades estão formalmente sediadas e os países onde elas geram receitas e, portanto, lucros; o segundo define um piso internacional para a tributação das ETNs.
A definição específica da distribuição “mais justa” ou do “piso” ainda será objeto de discussão. A OECD estima que, no caso do primeiro pilar, haveria a realocação de USD 100 bilhões/ano para as jurisdições de realização dos lucros. É importante lembrar que tem sido prática usual das ETNs estabelecerem suas sedes e/ou subsidiárias em paraísos fiscais exatamente para usufruir em vantagens tributárias. Já o pilar dois, que vai estabelecer um piso mínimo, cujo parâmetro inicial será de 15%, gerará receitas adicionais de USD 150 bilhões/ano.
Assim, a geração potencial de recursos ou de realocação dos mesmos pode atingir, com tais parâmetros, um ganho de USD 250 bilhões/ano, o que equivale a 0,3% do PIB global em 2020. Considerando que: (i) a carga tributária dos países de alta renda entre 2011 e 2020 foi de 36% do PIB, em média; e (ii) que esse mesmo parâmetro foi de 28% nos países emergentes e em desenvolvimento, chegando inclusive a não mais do que 10% a 15% dos países de renda baixa; então os ganhos prometidos pela OCDE são ainda tímidos. Até porque, não eliminam os paraísos fiscais ou capturam ganhos de arrecadação derivados da tributação das diversas formas de arbitragem internacional entre ativos financeiros, preços macroeconômicos como câmbio e juros, regulações e jurisdições.
A reforma negociada na OCDE não é suficiente para dar conta das necessidades de financiamento das políticas públicas para estes tempos de crises diversas. Ela pode ter sido um passo importante para as economias de alta renda. Os países europeus, por exemplo, esperam ganhar com o novo modelo de divisão das rendas de tributação das ETNs, especialmente no caso das big techs estadunidenses (Google, Facebook, Apple, Amazon e Microsoft) e demais grandes empresas da assim-chamada Gig Economy (Airbnb, Care, Uber, etc.). Já os Estados Unidos, que agora percebem os riscos geopolíticos e econômicos criados pela relocalização de suas empresas em países competidores, especialmente a China, querem retomar o controle sobre suas “forças produtivas” e tecnológicas e vislumbram esse mecanismo como um meio adicional de pressão sobre o setor privado.
E quanto aos países emergentes e em desenvolvimento? Até o momento não resta claro se haverá ganhos substantivos nesta mudança, cujo impacto geral já se mostra marginal. Em muitos países, particularmente na América Latina, o principal desafio fiscal segue sendo o mesmo: como desenhar as políticas de gasto e do seu financiamento que garantam a capacidade de os Estados atuarem efetivamente como promotores de dinamismo econômico e da equidade social.
No Brasil e demais vizinhos latino-americanos, observou-se um gap crescente entre a capacidade de arrecadar e as demandas por investimento em infraestrutura física, novas tecnologias, meio ambiente e em políticas sociais. Os países da região possuem elites que são aparentemente mais competentes que as suas congêneres, pois logram se apropriar de parcelas ainda maiores da renda e da riqueza de suas economias. Ao controlar seus respectivos Estados Nacionais, se protegem da tributação e dos efeitos da concorrência internacional em uma proporção mais intensa do que aquela observada em outras economias. A região não possui grandes EMNs, controladas por capitais locais e que sejam líderes globais em setores intensivos em tecnologia. Levantamentos como o da Fortune Global 500 ou da Unctad (World Investment Report) não reportam a existência de empresas latino-americanas de destaque nos setores mais dinâmicos da economia mundial.
Os trabalhos mais recentes do professor Gabriel Palma, da Universidade de Cambridge, apresentam evidências muito robustas sobre o padrão de eficiência das elites latino-americanas na era da globalização neoliberal. Ganham muito e fazem pouco por suas sociedades em comparação com outras elites econômicas, tanto em termos de geração de impostos, quanto de dinamismo econômico. Por isso não causa estranheza que nossos países sejam líderes globais em desigualdade e, ao mesmo tempo, apresentem capacidades estatais tão incompatíveis com o potencial que poderia ser esperado dado o tamanho de suas economias.
No estudo do Credit Suisse, por exemplo, o Brasil desponta como o mais desigual na distribuição da riqueza dentre as maiores economias do mundo, quando se considera o índice de Gini (tabela 3, p. 23): em 2020, os 1% mais ricos detinham 49,6% da riqueza nacional. A Rússia vinha em segundo lugar e os Estados Unidos em terceiro. Quando se toma a renda, e não o estoque de riqueza, ou quando são olhados outros indicadores que não o Gini, o quadro que emerge é o mesmo, com os países latino-americanos destacados dentre os mais desiguais do planeta.
Tributar melhor as multinacionais não resolverá os graves problemas de eficiência e da efetividade das políticas públicas na América Latina ou em outras regiões periféricas. Precisaremos fazer muito mais e muito melhor. Poderíamos começar seguindo o exemplo recente do Presidente Biden e de sua Secretária do Tesouro, trabalhando para que os ricos deem a sua contribuição efetiva no financiamento das políticas públicas e que os trabalhadores possam resgatar o fortalecimento de seus sindicatos e a dignidade de suas famílias. Se fomos tão eficientes em adotar o neoliberalismo desenhado pela elite estadunidense, também seremos capazes de adaptar localmente as estratégias agora utilizadas para reverter os seus estragos.
Nota:
[1] A versão integral deste texto, com as fontes dos dados e demais referências, está disponível no Portal de Análises da Conjuntura da FCE-UFRGS, neste link.
André Moreira Cunha e Andrés Ferrari são professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS,