Ele saiu do Amazonas após conflitos e dominação da Igreja Católica. Na metrópole, encontrou meios para sustentar a família, fazer filmes e ensinar sua cultura em escolas. Deseja pedaço de terra, para manter sabedoria ancestral…
Angela Pappiani escreve o depoimento de Kary Báya, Outras palavras, 13 de maio de 2021
Na imagem de abertura, Kary Báya no filme Wayna Lágrimas de Veneno.
Relato de Kary Báya (povo Tariano) a Angela Pappiani, na série Trincheiras Indígenas nas Cidades
A história de Anderson Peixoto Moreira, poderia virar filme. Kary Báya, seu nome indígena, é ator com vários trabalhos em cinema e televisão, produtor cultural e divulgador da cultura de seu povo Tariano, e ainda evampreendedor, sobrevivendo em São Paulo no ramo de controle de pragas urbanas. Anderson nasceu em Iauaretê, no Alto Rio Negro, divisa do Brasil com a Colômbia. Divisa inventada, que não existe para os mais de 22 povos originários que ali vivem, falando diversos idiomas e se relacionando num complexo sistema social, político e cultural, em aldeias, comunidades e famílias dispersas pelas matas e rios, nos dois países. Uma população que há praticamente 200 anos convive com os não indígenas – seringueiros, comerciantes, missões religiosas, militares, garimpo e mineração – enfrentando e resistindo a muito desrespeito e violência que atingem as pessoas, os territórios e as culturas. Esses povos já foram escravizados pelos seringalistas no começo do século passado; doutrinados; treinados para serem “civilizados”, aprendendo profissões nos internatos administrados pelas missões católicas, longe de suas aldeias e tradições. Muitas meninas foram entregues a famílias de não indígenas, “acolhidas” para cuidarem das casas e crianças, sem consulta aos seus pais, sem remuneração ou direitos, sendo levadas até para fora do país nessa condição de trabalho escravo.
Durante as décadas de governo militar, a região foi ocupada por destacamentos do exército com o objetivo de fortificar as fronteiras e assegurar a soberania nacional, com controle da população local contra uma possível rebelião que poderia, com ajuda internacional, desmembrar essa região do Brasil. A ocupação seguiu mesmo depois, no governo Sarney, com o Projeto Calha Norte, entregando a exploração de minérios e outros bens a empresas transnacionais.
Esse pensamento belicoso, de defesa das fronteiras contra um inimigo imaginário, e a ocupação das áreas de floresta, apesar destas estarem sob proteção constitucional com reservas de proteção ambiental e Territórios Indígenas regularizados, voltou a ser uma meta governamental, com incentivo ao garimpo ilegal, ao desmatamento, grilagem de terras da União e ataque explícito às populações tradicionais, com disseminação do coronavirus, tiroteios, poluição dos rios com mercúrio.
A situação desse e de outros territórios parece não mudar, apesar de diferentes inclinações e ideologias dos governos que vêm controlando o país ao longo dos séculos. Os interesses econômicos imediatos estão acima da lei, da proteção da vida e do patrimônio natural.
Anderson é parte dessa história e sua trajetória nos ajuda a entender o peso dessa realidade sobre as pessoas. Ele vive há menos de três anos em São Paulo, com mais 12 pessoas de sua família. Como muitos outros indígenas dessa região do país, viram-se forçados a deixar seu lugar de origem em busca de uma vida mais tranquila, com segurança e possibilidade de futuro. Como outros parentes, Kary Báya sofre no exílio a distância dos lugares sagrados revelados nos mitos de seu povo, e se revolta com a dominação dos não indígenas sobre seu território, sobre a vida e a alma das pessoas.
Neste relato, fala dos caminhos percorridos até chegar a São Paulo, de seu trabalho como ator e divulgador cultural, sobre os sentimentos de raiva e indignação, sobre os sonhos e contradições da vida de indígena refugiado.
“Meu nome é Kary Báya, nasci no distrito de Iauaretê, antes o lugar de origem do clã a que pertenço, os Dyroá, ‘os filhos do trovão’, e que agora não é mais só nosso, ocupado por várias etnias e muitos interesses. Esse lugar, há muito tempo não era mais aldeia, foi transformado numa pequena vila, com ruas, casas, escola e a presença forte dos padres. Os Salesianos estão lá há mais de 100 anos.
Como a maioria da população de Iauaretê, nossa família trabalhava com a agricultura, roça, pesca e caça. Algumas pessoas foram preparadas pelos padres para terem profissão e trabalhavam como encanador, eletricista, pedreiro, funções da construção civil. Meu pai foi trabalhar com as irmãs, como pedreiro. A gente continuou na agricultura, com minha mãe. Quando começou o programa Bolsa Família, no começo dos anos 2000, muita gente que passou a receber o dinheiro, parou de fazer roça e começou a comprar os produtos das famílias que continuaram a produzir. A gente continuou na agricultura e o que antes era só de consumo, passou a ser para a venda, numa feira que acontecia todo domingo. Mas a contaminação maior do nosso modo de vida começou há muito mais tempo, desde a chegada dos padres que impuseram a roupa, a obrigação de falar português, de estudar, de praticar a religião deles. Ao invés de aprender as tradições, muitos jovens aprenderam a tocar piano, a ser coroinha na missa, a jogar bola. Isso desde a época do meu pai.
A gente é Tariano, do tronco Aruak, mas perdemos a língua porque os casamentos dos Tariano são com mulheres do povo Tukano, e essa língua dominou a região do rio Uaupés e o Rio Negro inteiro. Mesmo os padres sabiam falar Tukano. Meu pai estudou na missão Salesiana, foi para o colégio com 12 anos, mas, apesar de ter aprendido uma profissão e de trabalhar para as freiras, sempre manteve as tradições. Mesmo não sabendo falar bem o português, ele brigava tanto com os padres, quanto com as freiras, discutia com outros parentes porque queriam tocar violão e ele queria tocar flauta de pan, queria cantar os kapi wayas, que são os cantos da tradição, e eles queriam ouvir lambada… A gente cresceu assim, aprendendo a tradição, observando os lugares sagrados, as histórias que contam: aqui aconteceu tal coisa, ali aconteceu outra coisa. Todas as noites em casa, ou quando ia para a roça, eu escutava a mitologia do meu povo. Meu pai passou para nós tudo que era para ser passado das tradições, cantos, músicas, mitologia, os locais de origem.
Agora tenho 30 anos, somos em 11 filhos, cinco irmãs, sou o penúltimo. Aqui em São Paulo estão minhas irmãs, minha esposa, meu filho e meus sobrinhos. Chegamos em 2019. O primeiro deslocamento foi de Iauaretê para Manaus, onde moramos 16 anos.
A mudança para Manaus, acredito que foi um tremendo engano, minha mãe não queria, minhas irmãs não queriam, eu também não queria ir, mas uma das minhas irmãs, que já morava na cidade, prometeu coisas que acabaram não acontecendo. Toda vez que a gente pensava em voltar, acontecia alguma coisa e a gente acabava ficando. Depois de cinco anos, nos acostumamos. Começamos a fazer os trabalhos de divulgação da cultura indígena, apresentações em escolas, para o público. E isso ajudou a gente a se manter.
Quando a gente chegou em Manaus, enfrentamos o preconceito, eram pessoas diferentes que não gostavam da gente por sermos indígenas, por falarmos nossa língua, o Tukano. As pessoas tinham aversão, não queriam chegar perto, faziam aquele som ‘Uh Uh Uh!, olha o índio, o índio’! Manaus não me traz boas lembranças. Ali tive que sobreviver ao preconceito, sem ajuda dos órgãos públicos. Onde a gente ia, em qualquer apresentação, a gente falava: somos seres humanos, como qualquer um.
Eu fui para a escola em Manaus e não conseguia me sentir inserido. Quando tinha trabalho em grupo, não me chamavam. Isso atrapalhou muito o meu desenvolvimento escolar. Depois, foi difícil no trabalho. Passei por sete empresas e em todas senti o preconceito.
Em Manaus, tem muita gente que foi das aldeias para lá. Gente que se desconectou da sua tradição e até parentes mesmo que se trancavam, escondiam sua origem, quando pisavam na rua falavam só português. Nossa família não, nunca deixamos de falar nossa língua, nunca fingimos ser o que a gente não era. Isso me irritava mais ainda, não conseguia entender por que a pessoa que se parece com você, que tem a mesma origem, é capaz de te discriminar, fazer essas brincadeiras agressivas. Nos mudamos várias vezes porque tinha encrenca com os vizinhos, proprietários das casas que se sentiam incomodados em alugar o imóvel para indígenas. Lá em Manaus, o motorista do ônibus não abre a porta porque você parece indígena, se você falar a sua língua no ônibus as pessoas falam: você é índio, volta pra sua aldeia! Acho que só 20% das pessoas vão chegar em você na boa, ou vão só te ignorar, o resto, os 80%, vão ter preconceito, vão ser agressivos.
Eu nunca pensei em me mudar para São Paulo. Eu ouvia aquela história do Gaudino, que foi assassinado em Brasília, outras histórias que aconteciam em cidades do sul, onde os índios eram agredidos, assassinados… era isso que a gente ouvia dos parentes que andavam mais. Então, em 2018, eu e minha irmã viemos para a Mostra Internacional de Cinema. Aí eu treinei bastante para enfrentar qualquer ameaça, porque eu pensava que se eu saísse na rua, iam querer me bater, tinha que estar preparado. Então eu fui andando do shopping Frei Caneca até a rua 25 de Março. Fui andando e voltei andando. Comentei com minha esposa depois: andei tranquilo, estou vivo, ninguém me agrediu, aqui ninguém liga para sua aparência, para o que você é.
Essa primeira vinda para São Paulo foi porque nossa família toda, meu pai, mãe, minhas irmãs e eu, participamos de um filme do Sergio Andrade que se chama “A Terra Negra dos Kawa”. Ele ia participar da Mostra de Cinema e nos convidou, trouxe eu e minha irmã para participarmos do lançamento do filme aqui. Foi essa a primeira vez. Depois vim participar da gravação da série Aruanas, que tinha algumas cenas aqui. Como em Manaus estava bem difícil para a gente que trabalha em meio cultural e artístico, decidi: vamos embora, em São Paulo deve ter mais oportunidade na nossa área, principalmente para a gente que trabalha com atuação. Bora ser figurante lá…. Começamos a vender as coisas e viemos. Foi uma decisão rápida.
Minha impressão de São Paulo foi melhor do que de Manaus. Não posso dizer que eu me sinta bem, bem mesmo, aqui. Mas a gente tenta reviver um pouco daquilo que perdeu há muito tempo. A gente luta desde que criou o Grupo de Artes Byroa Bayá. A gente sabe que não tem como voltar para uma vida boa em Iauaretê. Outras etnias dominaram nosso território e, se voltarmos, vamos ter problemas com eles, conflitos, talvez até derramamento de sangue, porque eles são muitos e nós somos poucos. Então queremos conseguir um sítio, um pedaço de terra para reconstituir uma comunidade do nosso clã. Sinto essa necessidade de um local onde a gente possa ter agricultura, um pouco da vida que a gente tinha e também trabalhar com turismo. A gente já vive neste mundo urbano há muito tempo e acho que seria difícil deixar de usar certas coisas, de ter essa conexão com as pessoas da cidade.
Aqui em São Paulo, sentimos um grande alívio, a gente consegue sobreviver, não sofre preconceito e também tem esse sonho de uma terra para viver em paz, oferecer essa alegria para os meus pais. Eles sentem muita falta de fazer roça, comer peixe, viver num lugar tranquilo, no contato com a terra. Eles sentem muita saudade da terra. Às vezes me sinto um pouco assim, como um refugiado mesmo. Não tem como reivindicar os meus direitos do lugar de origem, então o melhor para sobreviver e manter a paz com minha família e com meu filho é viver na cidade e lutar para conseguir o que pode ser nosso, uma terra da família. Porque o nosso território, que é homologado, reconhecido como Terra Indígena, quem manda lá são os padres, quem manda lá é o exército, não é a gente. A gente lutou tanto para ter o direito reconhecido, e a terra não é nossa. Até para fazer roça tem que pedir autorização, para ocupar uma parte do terreno, tem que falar com o exército, com o padre. Então eu penso, vamos lutar pra comprar um terreno onde a gente vai poder dizer: essa terra é nossa, não é dos Salesianos.
Muita gente que saiu de Iauaretê e foi para a cidade acabou virando evangélico, deixaram de ser católico, mas lá em Iauaretê tem muito forte a presença dos Salesianos. Eu fico muito triste com isso, com as várias invasões aos nossos territórios, tem os garimpeiros em muitos locais, e tem os evangélicos. Eu sempre falo para a minha esposa, se eu tivesse três filhos homens, eu não estaria aqui na cidade não, estaria lá lutando, como tem que ser a luta mesmo, como o meu ancestral lutou, porque é com o sangue que a gente ganha respeito. Muita gente não gosta e eu nem falo muito sobre isso, prefiro não abrir a minha boca. O garimpeiro mata, estupra, como fazia antigamente, e estamos no século 21! Dá vontade de preparar o material de guerra e lutar. No caso dos padres já é outra questão, não tem como tirar, eles têm uma força mundial. Muitos parentes que ficaram contra perderam tudo que tinham, até familiares… Os padres falam em nome de Deus, mas quando é para agir a favor deles, são capazes de tudo.
Quando fomos para Manaus, um produtor estava procurando um índio que falasse a língua para fazer um filme. Então meu pai e meu avô foram fazer. Assim a família entrou nessa área. Todo trabalho que precisava desse perfil indígena, a gente foi fazendo, ganhando experiência. Depois criamos o Grupo de Artes Byroa Bayá com a proposta de divulgar a cultura do nosso povo Tariano porque era uma oportunidade, onde a gente tinha voz para passar o nosso ponto de vista para os alunos, para o público. Trabalhamos muito com apresentação em escola. Depois surgiram outras oportunidades. O cineasta Sergio Andrade que me chamou para fazer um personagem no segundo curta metragem dele, chamado “Cachoeira”, em 2012. Foi o primeiro trabalho que eu me lembro, assim com diretor, com história. Antes a gente ia, como figurante, aparecia e ia embora.
Depois desse curta, trabalhei um tempo como segurança privada em casa de festa, trabalhei em shopping. Mas o que me manteve mesmo foi o trabalho de apresentação da cultura indígena do meu povo e atuação, sempre que aparecia. E agora, aqui em São Paulo, a gente trabalha com controle de pragas. Essa oportunidade foi através de uma pessoa que conhecemos aqui. Ela sabia que era bem difícil encontrar um trabalho, então apresentou a gente para um senhor, um dos fundadores da APRAG, a Associação dos Controladores de Vetores e Pragas Urbanas, e ele nos ensinou esse ramo de controle de pragas.
É muito estranho quando eu penso nisso, eu vejo esses insetos sendo expulsos do espaço deles porque incomodam os humanos. Quando eu penso na minha pessoa, Anderson Peixoto Moreira, eu esqueço desse conflito. O Anderson é o controlador de pragas. E o Anderson também é artista, ator. Quando volto para o Kary Báya, o Kary Báya é o indígena, um ser que carrega uma herança, o nome de um guerreiro que lutou contra todos os povos, contra os inimigos. Então vem esse pensamento sobre os insetos que incomodam e eu falo: é assim mesmo, eles são combatidos, eliminados. Carrego comigo as três personalidades. E os três têm que andar juntos, tento controlar os três, sempre no mesmo nível, se não pode haver um conflito dentro de mim.
Quando olho para os lados, eu penso o que eu estou fazendo aqui? Longe do meu lugar de origem, sozinho no meio dessas pessoas estranhas, no meio desses prédios, lutando como uma formiguinha contra uma anta. Penso então que não tenho mais que me preocupar com isso, existe o preconceito, e é muito, mas procuro não me incomodar. Eu ignoro, mas ao mesmo tempo faço o meu trabalho. Um parente falou que a educação tem que vir do berço. E é onde eu foco agora, procuro ir às escolas, falar com as crianças, levar informação. Os adultos, se eles querem mesmo conhecer nossa cultura, eu falo.
Espero que no futuro, daqui a 50 ou 100 anos, esse preconceito acabe. Para mim, espero conseguir um terreno, um lugar onde eu faça minha maloca, onde meu filho tenha um lugar de referência, mesmo que eu morra, ele tenha esse lugar como sagrado, onde aprenda a dançar, a cantar, os fundamentos da nossa cultura, sobre as plantas que a gente trouxe lá do Amazonas. É isso que eu quero e espero deixar para ele. Para que ele não perca esse conhecimento. Eu só mantive esse conhecimento fora do meu lugar de origem por causa desse trabalho com as apresentações, assim fui aprendendo. Se eu ficasse trabalhando só como segurança, eu não teria tempo para nada. Meu pai estava dormindo quando eu saia de casa e já estava dormindo quando eu voltava, a gente nem se via. Por mais de dois anos eu me desconectei da minha origem, e não quero isso para meu filho nem para os meus sobrinhos. Quero que eles tenham um tempo livre para aprender a cultura indígena também. O trabalho de controle de pragas nos dá isso, essa liberdade de fazer o nosso tempo e trabalhar com a arte também, ter uma pausa para escutar e falar com meu pai que está com 72 anos, com minha mãe, eles têm muito para ensinar. Conseguir esse espaço é o meu objetivo agora. E manter o foco no trabalho com as escolas, com as crianças e com os professores para que eles também eduquem seus filhos para não julgar o outro pela aparência ou pelo que falou, pelo que ele leu no livro ou na revista.
Nosso clã aqui está com 13 pessoas, eu, meus pais, irmãs, sobrinhos. Ano passado vivemos momentos de desespero com a Pandemia. Eu peguei covid, perdemos o trabalho, passamos muita dificuldade. Amigos ajudaram muito, indicando nosso grupo para apresentações virtuais, levando cestas básicas, conseguindo trabalho em casas de famílias para minha esposa e irmãs. Assim a gente conseguiu se firmar de novo e seguimos com muita confiança.
Por isso penso muito no futuro. Muitos dos meus parentes morreram cedo e não tiveram tempo de passar o conhecimento, a cultura. Então eu gravo, faço arquivos de mídia para que, caso aconteça alguma coisa comigo, meus filhos tenham acesso à nossa cultura.”
Para conhecer o trabalho de Kari Báya
Filme: A terra negra dos Kawa
Filme: Cachoeira
http://www.kinoforum.org.br/curtas/2014/filme/40289/cachoeirana