Luis Felipe Miguel, A Terra é Redonda, 4 de novembro de 2020
“Populismo” é uma daquelas palavras tão desgastadas pelo uso que é difícil dar a elas rigor conceitual. Seu uso em diferentes contextos históricos se refere a fenômenos muito diversos entre si – como colocar no mesmo balaio Andrew Jackson, os narodnik russos e os governantes latino-americanos de meados do século passado?
Na linguagem jornalística e do mainstream da Ciência Política de hoje, populismo é um rótulo genérico que identifica qualquer liderança ou discurso que seja considerado demagógico e que se afaste do consenso liberal. Os dois aspectos, aliás, são complementares, já que tudo o que se afasta deste consenso é considerado demagógico a priori. A ideia de populismo é útil, portanto, para construir a imagem de um centro virtuoso e igualar seus adversários à esquerda e a à direita. Trump e Maduro, Bolsonaro e Lula, o “politicamente incorreto” das direitas extremadas e políticas de socorro aos mais pobres são apresentados como encarnações opostas, mas simétricas, do mesmo mal.
De maneira talvez surpreendente, uma parcela do pensamento de esquerda assumiu a noção de um populismo camaleônico, com encarnações ao longo de todo o espectro político, mas dotando-a de positividade. O principal responsável pela démarche foi o falecido Ernesto Laclau, que o vê como a invocação de um povo indeterminado e vago, tornado sujeito coletivo da luta contra algum “outro” construído discursivamente. Para Laclau, essa característica do populismo deve ser entendida como resposta a uma realidade social que é, ela própria, marcada por vagueza e indeterminação.
No entanto, esse veredicto precisaria ser demonstrado. A realidade social é mesmo tão vaga, tão indeterminada? Ou vaga e indeterminada é nossa análise, preguiçosa ou impotente diante de uma realidade complexa? Além disso, convém lembrar que o próprio Laclau não cansa de afirmar o caráter produtivo do discurso político (sua resposta à outra acusação constante contra o populismo, de que seria “mera retórica”). Nesse caso, o populismo seria reflexo ou – ao apostar num sujeito coletivo deliberadamente fluido e incerto – produtor da indeterminação da realidade social?
No momento em que a esquerda encontra dificuldade para ativar sua base social, atingida pelas mudanças aceleradas no mundo do trabalho e pela ofensiva ideológica neoliberal, a deriva populista se apresenta como sedutora. Autoras do naipe de Nancy Fraser jogam suas esperanças num impreciso “populismo progressista”. Mas a principal porta-voz do projeto é Chantal Mouffe. Em texto recentemente traduzido para o português – postado no site Outras Palavras, ela critica “a estrutura teórica racionalista que, muitas vezes, sustenta a política de esquerda” em favor de uma estratégia populista orientada para uma também elusiva “transformação democrática verde”.
Trata-se de um aggiornamento, destinado a público amplo, das ideias que Mouffe expressou em seu livro For a Left populism (Verso, 2018). A leitura do populismo feita por Mouffe é ainda mais schmittiana que a do próprio Laclau. Trata-se de traçar a linha divisória entre “amigo” e “inimigo” de maneira a coincidir com uma definição de “povo” e “antipovo”.
Na medida em que se trata de uma construção discursiva, há uma maleabilidade infinita para o desenho de tal fronteira. O “povo” pode ser definido em oposição aos estrangeiros. Ou às “elites bem pensantes” interessadas em direitos de minorias. Ou aos corruptos. Mouffe não desenvolve o ponto, com o qual certamente concordaria, mas ele é importante para colocar em perspectiva a tendência à aceitação acrítica da categoria “povo” a que esta abordagem do fenômeno do populismo dá margem. O fato de que a fronteira entre povo e establishment é frequentemente falsa e manipulada em favor do próprio establishment simplesmente não aparece como questão importante.
Mouffe critica, de uma maneira que me parece acertada, a posição de muito da centro-esquerda, que se condena a defender as instituições liberais, a democracia limitada e o status quo. No livro, ela escreve que a força do populismo de direita está em sua capacidade de criar uma fronteira nós/eles que se opõe à oligarquização da política neoliberal. E dá um passo adiante: classificar estes partidos, lideranças e movimentos como “extrema-direita” ou “neofascistas” é uma forma de recusar suas demandas sem reconhecer “a dimensão democrática de muitas delas”.
Nesse ponto transparece certa visão platônica da categoria “povo”, que é própria da reflexão mais recente de Mouffe. Ela diz que a única maneira de enfrentar os populismos de direita é dar “uma resposta progressiva às demandas democráticas que eles estão expressando em linguagem xenofóbica”, o que inclui novamente a crítica válida à postura de muito da esquerda como guardiã da ordem liberal, mas dá de barato que qualquer coisa que seja apresentada em nome de uma categoria construída como “povo” é, por definição, democrática.
No entanto, como observou (entre outros) Éric Fassin, a identidade coletiva construída pelo populismo de direita é fundada em um afeto político, o ressentimento, que está muito distante da revolta que é própria da política de esquerda. Aproximar ambas as posturas por conta de uma vizinhança retórica superficial é obscurecer a realidade – e é imperdoável para quem, como Mouffe, afirma que é necessário “recolocar os afetos no centro da política” (a citação é do olho do artigo traduzido para o português, portanto de responsabilidade da edição, mas sintetiza bem seu pensamento).
Para Mouffe, porém, a resposta aos desafios atuais consiste em construir “outro povo” – volto a citar o livro de 2018 –diferente daquela da direita populista, por meio da “mobilização das paixões em defesa da igualdade e da justiça social”, o que exige descartar a tal abordagem racionalista. Embora política certamente não se faça sem paixão, é complicado jogar fora a razão, como Mouffe parece fazer, na busca de uma massa amorfa que projete sua unidade na identificação afetiva com um líder – que é o horizonte das reinterpretações positivas do fenômeno populista.
O problema principal, segundo me parece, é a falta de materialidade das categorias. A relação entre a desdemocratização e o império do capital financeiro é só um tênue e desbotado pano de fundo. O povo de Mouffe, “significante vazio”, não remete a nenhuma relação de dominação, logo a relação entre a democracia e o combate às formas de dominação presentes na sociedade não tem como se estabelecer.
Apesar de todas suas críticas ao triunfo do liberalismo sobre a democracia, não é desafiado o enquadramento liberal que separa a política como esfera à parte. Parte das limitações de sua teoria deriva de sua tendência a reduzir a luta política à disputa eleitoral (o que é afirmado com clareza em seu livro anterior, Agonistics, de 2013): o povo indeterminado cuja grande qualidade é ser maioria é a imagem do eleitorado indistinto das democracias liberais. É curioso que as instituições representativas estejam no coração do caminho proposto para a nova esquerda no momento mesmo em que, graças ao poder cada vez mais incontrolado do capital, elas se mostram mais esvaziadas de poder.
A aposta no populismo surge como uma espécie de fast track para a mobilização dos subalternos, em substituição à política de classes. No texto recentemente traduzido no Brasil, Mouffe faz essa posição derivar daquela expressada em Hegemonia e estratégia socialista, o livro publicado por ela e por Laclau nos anos 1980. Aqui, é necessário pontuar que Mouffe está fazendo uma leitura enviesada e míope da própria Mouffe. A opção populista é um grande passo atrás em relação às propostas que Laclau e Mouffe então apresentavam.
Diagnosticando a crise da concepção de socialismo baseada na “centralidade ontológica da classe operária”, na idéia da Revolução e na crença na possibilidade de uma vontade coletiva perfeitamente homogênea, “que tornaria inútil o momento da política”, Hegemonia e estratégia socialista propõe que a tarefa da esquerda é promover a articulação de demandas emancipatórias diversas. Impõe-se superar qualquer leitura unilateral da dominação social e entender que o eixo de classe não é o único, nem tem primazia automática, aceitando, como dado da realidade a ser trabalhado pela imaginação política, a presença e a centralidade das demandas emancipatórias de outros grupos oprimidos, bem como o fato de que essas múltiplas demandas não se harmonizam por conta própria. A política da esquerda, portanto, passa por articulá-las num projeto de transformação social.
É uma visão, no entanto, que parte das determinações concretas da dominação e se propõe a articular os grupos dominados não como “significante vazio”, a ser produzido arbitrariamente por qualquer discurso político, e sim no bojo de um projeto emancipatório. Mouffe erra ao julgar que a alternativa ao “populismo progressista” é o retorno às formas de luta política do século XX. Não se trata de recuperar a crença na missão teleológica da classe trabalhadora, muito menos de julgar que a tarefa consiste em fazer a “classe em si” transformar-se em “classe para si”. Trata-se, isso sim, de entender os mecanismos das diversas formas de dominação social e, em especial, de entender que a ordem capitalista é o fio que as unifica.
A crítica que Maurizio Lazzarato faz aos populismos de esquerda ao estilo do “Podemos” – transferir o capitalismo para o segundo plano e focar numa transformação social centrada na representação política – vale também, e não por acaso, para Mouffe. A esquerda precisa apresentar um horizonte de mudança radical, para a classe trabalhadora, para as mulheres, para a população negra, para os povos indígenas, para a comunidade LGBT, um horizonte que promova a superação da opressão e da privação. O caminho para isso não é um discurso populista, mas um projeto anticapitalista.