Ataque ao Congresso dos EUA foi planejado em grande medida nas grandes plataformas e em obscuros fóruns onde crescem as teorias conspiratórias
Jordi Pérez Colomé, El País Brasil, 10 de janeiro de 2021
Dias atrás, o presidente dos EUA, Donald Trump, falava por telefone com o secretário de Estado da Geórgia em uma conversa publicada pelo The Washington Post. Insistia em uma nova contagem eleitoral. Trump mencionava sem parar uma história já desmentida sobre uma funcionária eleitoral que supostamente havia roubado milhares de votos para seu rival, Joe Biden. Com argumento de autoridade, Trump disse: “Na Internet todo mundo a conhece”. E também: “Era tendência na Internet”. Para finalizar, Trump acrescentou uma pergunta retórica perfeita: “Sabe, a Internet?”. A base dos argumentos de Trump era “Internet”. Pode parecer uma loucura, mas essa Internet de Trump já não pode ser desprezada.
Nos últimos quatro anos se consolidou uma ideia central ao futuro de nossas sociedades: a vida digital está cada vez mais perto da vida real. Para Donald Trump, o que saía na rede era a realidade. O ataque de 6 de janeiro ao Capitólio foi a última evidência de que já não se pode dizer que as teorias, ameaças e tramas que emergem na Internet ficarão na Internet. Nossa realidade dependerá cada vez mais da rede. E aí há cada vez mais coisas.
Essa Internet não é obviamente o único meio para entender essa realidade: o alto-falante da presidência dos EUA e o coro de muitos veículos de imprensa tradicionais, tanto na televisão como em suporte digital, têm um papel fundamental no processo vivenciado nos últimos quatro anos. Mas seu peso cresceu sem parar. E três exemplos provam. Primeiro, em um obscuro fórum nasceu e cresceu o QAnon, o guarda-chuva para dúzias de teorias conspiracionistas que afirma que o mundo está nas mãos de uma rede de progressistas pedófilos e que um personagem chamado Q, provavelmente Trump, nos salvará. Segundo, as grandes redes continuam sendo o alto-falante de Trump e o espaço onde centenas de líderes de opiniões parecidas às do presidente difundiram suas opiniões. Terceiro, em obscuros sites e redes sociais alternativas debateram e compartilharam dezenas de histórias que justificam qualquer crença. Algumas dessas plataformas são mais conhecidas, como Gab, Parler, Telegram, 8kun e Discord. Mas outras são menos famosas: TheDonald(.)win, Voat(.)co, MeWe, Zello, DLive.
A culminação desse processo levou a uma vitória dos trolls. “Os eventos em Washington nos mostram mais uma vez que o ativismo e a ação coletiva online têm consequências no mundo offline”, diz Claudia Flores Saviaga, Facebook fellow e doutoranda da Universidade da Virgínia Ocidental. Em um artigo científico de 2018 chamado Mobilizando o trem de Trump, Flores Saviaga e outros dois autores explicavam como algumas inovações tecnológicas são exploradas por campanhas presidenciais quatro anos depois de sua aparição: a própria web, os blogs, o Facebook e o Twitter. As plataformas que filtram informação como o Reddit foram exploradas politicamente em 2016 no formato de comunidades de trolagem”, diz o artigo. Quatro anos depois demonstraram sua eficácia. É inevitável ver nas roupas e na atitude dos atacantes do Capitólio uma mistura rara de personagens extravagantes e declarações psicodélicas. Ou seja, perfeitos trolls que vivem de memes. Esse qualificativo logicamente dissimula a diversidade de grupos e objetivos radicais que a multidão esconde.
“Como as redes sociais estão moderando o conteúdo impróprio em suas redes, os trolls políticos preferiram outras plataformas mais fechadas e encriptadas, como o Discord, que lhes oferecem liberdade para se expressar”, diz Saiph Savage, diretora do Human Computer Interaction Lab da Universidade da Virgínia Ocidental e outra das autoras do artigo. Este movimento às plataformas mais fechadas é um dos marcos dos últimos quatro anos. As grandes redes sociais continuam sendo centrais, mas já não estão sozinhas nesse novo panorama.
As redes tradicionais recebem duas acusações claras neste processo.
1/ O algoritmo amplifica o conteúdo externo. A ideia não é nova. O conteúdo mais emocional, simples e extremo chama a atenção. Os tabloides vivem dessas premissas desde o século XIX. O algoritmo das grandes redes aperfeiçoou o conceito. Em maio, o Wall Street Journal publicou uma valiosa exclusiva sobre debates internos no Facebook sobre seu algoritmo. “Nossos algoritmos exploram a atração do cérebro humano pela divisão”, alertou uma apresentação de engenheiros do Facebook de 2018, de acordo com o jornal norte-americano. “Se os deixarmos assim, o Facebook dará mais e mais conteúdo divisor em um esforço de ganhar a atenção e aumentar o tempo na plataforma”. O resultado? Mais gente e mais tempo no Facebook significa mais anúncios. Os dirigentes da plataforma descartaram as descobertas de seus engenheiros.
Nos últimos anos o Facebook se transformou no grande tabloide do mundo. Seus conteúdos vão além das fake news. No intenso debate acadêmico sobre se as câmaras de eco existem, a última contribuição, ainda à espera de revisão, vem do Oxford Internet Institute. O artigo se chama provisoriamente As Câmaras de Eco Existem!. O argumento até agora era que nas redes estamos expostos a pontos de vista mais diversos do que quando líamos nosso jornal favorito. Portanto, não havia câmaras de eco tão evidentes. Mas as novas evidências mostram que vemos esse conteúdo oposto às nossas crenças somente para que seja rebatido por nossa câmara de eco e continuemos vivendo ainda mais confortavelmente com nossas ideias.
2/ A capacidade de recrutar. A mudança dos fãs de Trump a páginas mais ocultas tem para eles um problema evidente: no Instagram e Youtube há milhões de pessoas a atrair. Quando se fecham em seus nichos, é mais difícil encontrar novos fãs.
“Está claro que há um efeito de descoberta na rede. Nos últimos quatro anos conspirações relacionadas ao QAnon foram se infiltrando dos extremos ao centro, em parte porque eram assumidas por pessoas normais no Instagram e no Facebook”, diz Nahema Marchal, pesquisadora do Oxford Internet Institute. “As plataformas permitiram que esse conteúdo se amplificasse”, acrescenta. Esse conhecimento permite também, segundo Marchal, buscas dirigidas. “Quando alguém começa a procurar coisas na Rede buscando um tipo de vocabulário extremo, pode se encontrar facilmente em um ecossistema informativo alternativo”. As palavras com as quais se procura contam.
Os trolls, portanto, não vão desaparecer totalmente das redes tradicionais. É preciso estar lá para ser conhecido. É como os grupos religiosos que ficam nas ruas centrais para deixar-se ver e sorrir aos que duvidam. Depois, em seu templo acabarão por convencê-los. Mas é preciso estar no lugar por onde passam milhões, mesmo que seja nos comentários.
Mas se as redes proíbem e limitam seus conteúdos, como fazem? A moderação limitou os conteúdos radicais, mas isso não significa que os tenham extinguido. No Facebook continuam existindo dúzias de grupos sobre Stop the Steal para denunciar o hipotético roubo eleitoral. No Twitter montes de contas ainda falam do QAnon, que na teoria está proibido. Nas duas redes, as contas de Trump e as de muitos de seus asseclas estão somente suspensas, não bloqueadas.
Sua capacidade para emitir mensagens radicais continua intacta. Uma vez captados pelo novo ecossistema, podem ser convencidos com mais facilidade. Um artigo científico do final de 2020 explica como as comunidades criadas após um grupo ser expulso tendem a ser mais radicais e menos numerosas. “Uma possível explicação para o crescimento das plataformas extremas é que permitem opiniões mais radicais, de modo que os usuários já não precisam se reprimir”, diz Manoel Horta Ribeiro, pesquisador da Escola Politécnica de Lausanne e um dos autores do estudo. “A longo prazo, isso pode significar que nessas plataformas, ideias que seriam eliminadas do Reddit, como apoiar a guerra civil, prosperem livremente”, acrescenta. Entre os trolls do Capitólio, por exemplo, havia gente com camisetas comemorativas de Auschwitz.
Esta segmentação crescente de públicos em realidades diferentes tem consequências reais. Nesse contexto, o 6 de janeiro no Capitólio é na verdade um início, não um final.
A solução não é simples. “Censurar Trump de certo modo é censurar o candidato apoiado por 74 milhões de norte-americano”, diz Flores Saviaga. “Uma grande porção da população pode sentir que sua voz não está sendo ouvida. Em nossa pesquisa vimos que os casos onde conteúdo pró-Trump era bloqueado e censurado incitavam participação maior em redes pró-Trump”, acrescenta.
Não só isso, diz Flores Saviaga, essas redes permitiram a Primavera Árabe e o Black Lives Matter. “É difícil traçar a linha do que é correto ou não dependendo da situação e do país. Também é difícil saber quem é o encarregado de regular o que acontece dentro das redes sociais. Os governos? As empresas de tecnologia?”.
Horta Ribeiro acha que uma opção é coordenar melhor o bloqueio desses grupos nas grandes redes para que não possam saltar de uma a outra e coordenar sua saída a uma rede favorável às suas ideias. Mas também não tem uma resposta clara: “Apesar de existirem várias coisas que as plataformas podem fazer, ainda temos pouquíssimas ideias sobre quais ações deveriam tomar. As plataformas têm suas equipes trabalhando para melhorar seus serviços, mas têm pouca ideia de como avaliar se uma medida de moderação é boa ao grande esquema das coisas”, diz. O grande esquema das coisas é algo que irá emergindo da Internet à vida real, com mais perguntas do que respostas.