Joana Salém Vasconcelos, A terra é redonda, 18 de maio de 2021
Desde outubro de 2019, o Chile vive uma grande erupção social e uma crise de hegemonia política. As elites chilenas assistem, atordoadas, ao transbordamento da luta popular por direitos, gratuidade, bem-estar e dignidade. Apesar dos entraves impostos pelo Acordo Pela Paz Social de 15 de novembro de 2019, que definiram um quórum conservador de 2/3 para a mudança constitucional; apesar da regulamentação restritiva da Convenção Constituinte, enquadrada nos marcos da geopolítica neoliberal; e claro, apesar da pandemia, as organizações populares seguiram sua construção política autônoma de outubro de 2019 até hoje, preparando-se para o confronto contra o maior entulho autoritário da ditadura: a Constituição de 1980.
Os governos democráticos de 1990 a 2021 se curvaram ao chamado “modelo chileno” e o tornaram ainda mais sofisticado, ampliando o mal-estar social. Mas o modelo da Constituição de 1980 se mostrou corroído e esgotado. Enquadrado em uma sociedade sem direitos desde o golpe de 1973, os chilenos foram lançados ao desamparo da sociedade neoliberal, ao individualismo de mercado e à guerra de todos contra todos.
O Estado Subsidiário, arquitetado por Jaime Guzmán e os Chicago Boys na ditadura, mercantilizou todas as esferas da vida e impôs à sociedade chilena os arbítrios das privatizações generalizadas em nome da liberdade das grandes corporações. A espoliação privada da terra, da água, dos recursos minerais e agrícolas, a perversa capitalização das aposentadorias, a mercantilização da educação e da saúde, foram promovendo um processo irreversível de desgaste do tecido social.
A campanha publicitária pela democracia, que disse “No” à Pinochet em 1988, tinha como slogan “la alegría ya viene”, mas a preservação do arranjo constitucional da ditadura impediu que a democracia entregasse sua promessa. O “pinochetismo sem Pinochet” comandou os últimos 30 anos de democracia no país.
Mas agora o “modelo chileno” está mais combalido do que nunca. Nas eleições de 15 e 16 de maio passado, os chilenos indicaram que a Convenção Constituinte será um evento democrático de grandes proporções, com força para refundar as relações entre Estado e sociedade em bases populares e verdadeiramente democráticas.
Os resultados eleitorais não se parecem com nada que eu já tenha visto. Os deputados independentes eleitos são 32% dos 155 membros da Convenção. Os deputados indígenas são 11%. Os três grandes blocos partidários somam 57%. Os independentes tiveram orçamentos pequenos e quase nenhum tempo de TV, mas obtiveram um terço dos votos, mostrando a corrosão do sistema partidário convencional. Entre os candidatos indígenas, os direitistas foram derrotados e os indígenas à esquerda venceram.
Até semana passada, muitos amigos me disseram que a pulverização das candidaturas poderia corroer a força eleitoral da esquerda. Era um reflexo da descentralização da revolta de 2019, um elemento positivo que poderia, na matemática eleitoral, se tornar negativo. Mas ocorreu o oposto: a força dos independentes desequilibrou o resultado em favor da esquerda.
Entre os blocos partidários, a direita teve 24% (Vamos por Chile – RN/UDI); o centro ficou com 16% (Lista de Apruebo – ex Concertación); e as esquerdas com 18% dos deputados (Apruebo Dignidad – PC/FA).
Entre os independentes, a Lista del Pueblo, de esquerda, teve 15%. A Lista Nueva Constitución, de centro-esquerda, teve 7%. Ainda há 8% dos independentes eleitos sem lista, com candidaturas de perfil local cuja posição ideológica ainda precisa ser mapeada.
Em resumo, temos:
Direita (Vamos por Chile): 24%
Centro-Esquerda (Apruebo + Nueva Constitución-ind): 23%
Esquerda (Apruebo Dignidad + Lista del Pueblo-ind): 34%
Indígenas (nenhum da direita): 11%
Independentes sem lista: 8%
A direita foi posta no canto do ringue. A arquitetura constitucional de Jaime Guzmán está prestes a ser desarmada.
Joana Salém Vasconcelos é doutora em história pela USP. Autora de História agrária da revolução cubana: dilemas do socialismo na periferia (Alameda).